Telejornalismo e a pandemia da Covid-19: novas práticas de produção
Telejournalism and the Covid-19 pandemic: new production practices
Teleperiodismo y la pandemia de Covid-19: nuevas prácticas de producción
e-ISSN: 1605 -4806
VOL 24 N° 111 Mayo - Agosto 2021 Varia pp. 212-235
Recibido 18-05-2021 Aprobado 20-08-2021
https://doi.org/10.26807/rp.v25i111.1777
Marcelli Alves da Silva
Brasil
alves.marcelli@yahoo.com.br
Marcos Fábio Belo Matos
Brasil
marcos.fabio@ufma.br
Resumo
Este artigo faz um mapeamento dos aspectos inerentes às rotinas de produção do telejornalismo brasileiro, a partir da análise de telerreportagens exibidas, no Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, no primeiro ano da pandemia da Covi-19, no Brasil. Foram analisadas 142 matérias, no período de 26 de fevereiro de 2020 a 24 de fevereiro de 2021. O material possibilitou perceberem-se alterações na rotina do telejornalismo, como a utilização de imagens geradas pelos próprios entrevistados (e a consequente concessão à sua qualidade técnica na utilização nas telerreportagens), a permissão de os entrevistados segurarem os microfones, sem canopla, para manter o distanciamento social exigido pelas normativas de garantia de segurança sanitária e a apresentação dos repórteres usando máscara. Tais alterações são vistas como adaptações necessárias ao momento da pandemia de Covid-19, como reestruturações contingenciais de aspectos da gramática telejornalística e como refacções necessárias para a manutenção do telejornalismo como observador e divulgador preferencial do presente.
Palavras-chave: telejornalismo. rotina de produção. pandemia. coronavírus.
Abstract
This article maps the aspects inherent to the production routines of Brazilian television news, based on the analysis of the telework reports shown in the Jornal Nacional, by Rede Globo de Televisão, in the first year of the Covi-19 pandemic in Brazil. 142 articles were analyzed, from February 26, 2020 to February 24, 2021. The material made it possible to perceive changes in the TV news routine, such as the use of images generated by the interviewees themselves (and the consequent concession to their technical quality when using teleporters), the interviewees’ permission to hold the microphones, without a canoe, to maintain the social distance required by the health safety guarantee regulations and the presentation of reporters wearing a mask. Such changes are seen as necessary adaptations to the moment of the Covid-19 pandemic, as contingent restructuring of aspects of television news grammar and as necessary refractions for the maintenance of television news as an observer and preferential disseminator of the present.
Keywords: telejournalism. production routine. pandemic. coronavirus.
Resumen
Se analizaron 142 artículos, del 26 de febrero de 2020 al 24 de febrero de 2021. El material permitió percibir cambios en la rutina informativa televisiva, como el uso de imágenes generadas por los propios entrevistados (y la consecuente concesión a su calidad técnica al usar teletransportadores), el permiso de los entrevistados para sostener los micrófonos, sin canoa, para mantener la distancia social requerida por las normas de garantía de salud y seguridad y la presentación de reporteros con máscara. Tales cambios son vistos como adaptaciones necesarias al momento de la pandemia Covid-19, como reestructuración contingente de aspectos de la gramática informativa televisiva y como refracciones necesarias para el mantenimiento de las noticias televisivas como observador y divulgador preferencial del presente.
Palabras clave: teleperiodismo. rutina de producción. pandemia coronavirus.
1. Introdução
A Covid-19 chegou ao Brasil em fevereiro de 2020. Mas foi em 31 de dezembro, do ano anterior, que a Organização Mundial da Saúde (OMS) recebeu o alerta sobre a incidência de diversos casos de pneumonia na cidade de Wuhan, província de Hubei, na República Popular da China. Revelou-se, então, ao mundo que os respectivos casos da doença eram decorrentes de um novo tipo de Coronavírus, antes não identificado em seres humanos. O vírus, chamado pelas autoridades de SARS-CoV-2, causa a doença COVID-19.
Ao observar o comportamento do vírus, percebeu-se que o isolamento social era fundamental e urgente para conter o avanço do contágio. A partir disso, o mundo se viu obrigado a adotar medidas visando a conter a disseminação da Covid-19. Para isso, foram necessárias providências como o fechamento do comércio e restaurantes, parte significativa das empresas passaram a adotar o home office, os alunos que frequentavam a educação presencial, da pré-escola à faculdade, passaram a se adaptar ao ensino remoto. Algumas profissões, eleitas como essenciais, não puderam parar, como a saúde, agricultura, caminhoneiros e outras. Inserido no contexto de “essencial”, o telejornalismo se viu também impelido a continuar em atividade. No entanto, mudanças na prática da atividade precisaram ser adotadas, por uma questão de segurança sanitária.
Assim, como dizem Ruellan (1992, 1993, 1994, 1997, 2004, 2006 e 2017), Pereira (2011), Travancas (2011), Berger (2008), Neveu (2006), Charron, J. e De Bonville (2004), os jornalistas são atores sociais e a realidade social impacta no modo de fazer o jornalismo, como um todo. Seguindo as concepções de tais autores, o referido trabalho analisa as mudanças na prática da atividade telejornalística, no primeiro ano em que o mundo se viu afetado pela Covid-19. Assim, como escreve Traquina (2001, p. 85):
[...] as notícias são o resultado de processos complexos de interação social entre os agentes sociais: os jornalistas e as fontes de informação; os jornalistas e a sociedade; os membros da comunidade profissional, dentro e fora da sua organização.
Partindo do princípio de que essa “interação entre os agentes sociais”, proposta pelo autor, no telejornalismo exige proximidade física, deslocamento, entre outros (em função da produção da imagem), acredita-se que, de alguma forma, isso ficou comprometido, pela necessidade do isolamento e distanciamento social. Essa situação levou à elaboração da pergunta que gerou esta pesquisa: de que forma, essa nova realidade imposta pela Covid-19 impacta na prática do telejornalismo, no Brasil?
Como metodologia, optou-se pelo mapeamento (Bueno, 2012 e Alves, 2017). O telejornal a ser utilizado como base para a pesquisa é o Jornal Nacional. A escolha do referido telejornal se justifica pelo fato de ser este produto da Rede Globo de Televisão considerado o líder de audiência no segmento por anos consecutivos e também por sua abrangência, influência e até estética moldarem a prática telejornalística, em todo o país (levando-se em consideração que o Manual de Telejornalismo da Globo é utilizado como referência nas universidades brasileiras e também em pesquisas acadêmicas no tocante à prática de produção noticiosa no meio televisivo.)
Rezende (2000) afirma que atualmente os telejornais possuem “um modo de fazer”, isto é, estabelecem-se a partir de regras de produção e apresentação, que os tornam padronizados. Neste sentido, o Jornal Nacional (JN), da Rede Globo, apresenta o que é conhecido como “Padrão Globo de “Qualidade”, uma vez que foi responsável por eliminar o tom de improviso do telejornalismo brasileiro e implantar inovações que foram sendo, paulatinamente, utilizadas nas demais emissoras do país e ainda estão.
2. Referencial Teórico
2.1 O Jornal Nacional
A estreia do Jornal Nacional aconteceu no dia 1º de setembro de 1969. Na época, o referido telejornal era apresentado por dois âncoras: Cid Moreira e Hilton Gomes. O seu início foi marcado pela “agressividade” do projeto: o referido telejornal foi o primeiro do Brasil a ser transmitido para diversas cidades do país, sendo um marco da história do telejornalismo brasileiro (Piccinin, 2008).
De acordo com Maia (2007, p.45), o projeto arrojado deu certo e o JN (como é conhecido) comemora o fato de ser o telejornal brasileiro que está no ar há mais tempo, tendo completado 51 anos em 2020. Inicialmente, era apresentado em 30 minutos e, partir da década de 1980, aumentou o tempo exibição, passando para 40 minutos. Hoje em dia, o telejornal é transmitido entre 40 minutos e 1 hora, de segunda a sábado.
A bancada do telejornal, sempre composta de grandes nomes do telejornalismo brasileiro, como Cid Moreira, Hilton Gomes, Heron Domingues, Sérgio Chapelin e Willian Bonner, só foi ocupada por uma mulher em 1992, isto é, 23 anos após sua estreia. A jornalista Valéria Monteiro, após apresentar o Jornal Hoje e o Fantástico, passou a apresentar o JN junto com Cid Moreira. Depois dela, já ocuparam o mesmo espaço, respectivamente, Sandra Annenberg, Ana Paula Padrão, Mônica Waldvogel, Lilian Witte Fibbe, Carla Vilhena, Fátima Bernardes, Patrícia Poeta, Renata Vasconcellos, Maria Júlia Coutinho e outros nomes da casa. (Memórias Globo, 2004).
2.2 O líder de audiência padroniza práticas no telejornal
Não foi a Rede Globo de Televisão a responsável pelo nascimento do telejornalismo no Brasil, mas foi ela a responsável pelas mudanças nas práticas do telejornal e pela fixação das mesmas como regra telejornalística. Rezende (2000) é categórico quando afirma que foi a referida emissora que trabalhou para implantar um modelo padronizado no telejornal, eliminando o improviso, implantando cenários específicos para o noticiário, exigindo a revisão de texto, preocupando-se com entonação de voz e vestuário dos envolvidos.
Oliveira Júnior (2006) explica que todo o planejamento e cuidado destinados aos âncoras, a qualidade visual que inclui desde a captação até a edição de imagens foram responsáveis pela criação de uma “linguagem” telejornalística no Brasil. O autor explica, também, que um dos diferenciais apresentados pelo Jornal Nacional foi a inserção de depoimentos com entrevistados, dando voz às pessoas e, consequentemente, maior qualidade à informação. Outra inovação trazida pelo JN foi a utilização da imagem do repórter no corpo da telerreportagem. Isso exigiu treinamento, não apenas para os repórteres que se encontravam nos grandes centros, mas também para aqueles que estavam em regiões menores Brasil afora.
Souza (2010) explica que, desde o nascimento, o Jornal Nacional sempre se mostrou aberto à inovação. O autor destaca algumas que ainda permanecem, como a criação de editorias, a participação de comentaristas, implantação do quadro de previsão do tempo, das séries de reportagens, dentre outras.
Mesmo com o padrão estabelecido, o Jornal Nacional continuou a sofrer mudanças, buscando uma maior dinamicidade e aproveitamento das tecnologias disponíveis, bem como a adaptação às questões sociais de cada época. Sendo assim, em 2015, o JN passou por mudanças na estrutura física do cenário, na apresentação e na dinâmica do telejornal: os apresentadores Renata Vasconcellos e Willian Bonner passaram a circular pelo cenário, que ficou maior e mais moderno, operando telões de alta tecnologia; após 45 anos, o jornal apresentou uma moça do tempo negra, Maju Coutinho, que agora apresentava as previsões do tempo ao vivo, podendo interagir com Renata e Bonner (Soares; Dourado, 2016):
Ao longo dos últimos anos, esse modelo do Jornal Nacional foi se reformulando gradativamente e se traz algumas considerações sobre o novo formato, enquanto mais um espaço que apresenta a hegemonia desse padrão exemplar do quanto a emissora é hegemônica diante do panorama televisivo. (Soares; Dourado, 2016, p. 04)
Uma das regras do telejornalismo da Globo é em relação ao uso do microfone com a canopla da emissora. Este sempre deve estar de posse do repórter. O microfone nunca deve estar na mão do entrevistado. As entrevistas por meio de chamada de vídeo, como o Skype, por exemplo, devem ser utilizadas apenas em casos excepcionais (exemplo: quando o entrevistado está em outro país e lá não tem correspondente no local). No entanto, em meio à pandemia da Covid-19 e às restrições impostas por ela, muitas alternativas tiveram que ser adotadas na prática telejornalística para que a telerreportagem pudesse continuar sendo construída. E o resultado prático foi que muitas dessas “regras canônicas” do modus operandi da prática telejornalística precisaram ser ou readequadas ou, no limite, abandonadas para que a notícia pudesse ser produzida.
3. Metodologia
O trabalho em questão efetiva um estudo quantitativo e qualitativo, de acordo com as premissas cartográficas (Bueno, 2012; Alves, 2017). O objeto de análise foi o Jornal Nacional, exibido na Rede Globo de Televisão. O mapeamento do referido telejornal cobriu um ano, sendo realizado do período que consta a identificação do primeiro caso de Covid – 19 no Brasil, 26 de fevereiro de 2020 a 24 de fevereiro de 2021.
Para separar os episódios a serem analisados, os mesmos foram definidos por meio de amostra não probabilística de meses compostos (Júnior, 2006), técnica a partir da qual foi escolhido um dia de cada mês para alcançar os resultados pretendidos. No intuito de padronizar os dias a serem analisados, optou-se por toda última quarta-feira do mês, uma vez que a primeira telerreportagem sobre a pandemia apareceu no jornal justamente nesse dia da semana (dia 26 de fevereiro). Ao todo, foram analisados os produtos de 13 quartas-feiras, distribuídas pelos respectivos dias do mês do ano de 2020: 26 de fevereiro, 25 de março, 29 de abril, 27 de maio, 24 de junho, 29 de julho, 26 de agosto, 30 de setembro, 28 de outubro, 25 de novembro e 30 de dezembro. E, do ano de 2021, os dias 27 de janeiro e 24 de fevereiro.
4. Resultados
4.1. A análise
Os 13 telejornais analisados resultaram em 241 produtos, divididos entre telerreportagens, notas (seca/pelada e coberta), link e mapa tempo. Como a intenção do trabalho foi investigar a mudança de práticas no primeiro ano da Covid-19, optou-se por excluir do objeto da análise as notas secas (ou peladas), as notas cobertas e o mapa tempo. Isso se justifica, uma vez que esses referidos materiais são, via de regra, feitos dentro do estúdio e, dessa forma, não sofreram impacto no seu processo de produção por conta da pandemia. Os referidos números são apresentados, em percentuais, no gráfico abaixo:
Gráfico 1. Divisão em percentual dos materiais encontrados
Fonte: (os autores, 2021)
4.2. A análise das telerreportagens
Ao todo, foram analisadas 142 telerreportagens, incluindo as internacionais, exibidas neste período e 32 links. Os repórteres envolvidos na produção foram: Zileide Silva, Fábio Turcci, Ilze Scamparni, Alan Severiano, Alessando Torres, Delis Ortiz, Tiago Eltz, Mônica Teixeira, Pedro Vedova, Renata Ribeiro, Claudia Bontempo, Felipe Santana, Bianca Rothier, Carlos Gil, Erick Faria, Julio Mosquera, André Trigueiro, Jalilia Messias, Elaine Bast, Marcos Losekann, Alexandre Hisayasu, Vladimir Neto, Jonas Campos, Bete Lucchese, Marcelo Courrege, Graziela Azevedo, Claudia Gaigher, Ricardo Soares, Carolina Cimenti, Ismar Madeira e Felipe Santana.
4.3. A linguagem telejornalística no contexto da pandemia
É de Charron e De Bonville (2004) a informação de que, atualmente, estamos vivendo o paradigma chamado Jornalismo de Comunicação. Trazendo esses conceitos dos canadenses para esta análise, é evidente que existem muitas mudanças nas práticas jornalísticas como um todo, incluindo o telejornalismo. Os autores enfatizam o que ocorre neste paradigma:
O processo poderia ser resumido assim: o uso repetido de uma fórmula implica na imitação, a imitação implica em multiplicação das práticas, a multiplicação das práticas implica em densificação das práticas, a densificação das práticas implica em banalização das práticas. A banalização, por outro lado, provoca a busca por distinção, a qual implica em outras maneiras de cobrir o mesmo domínio. E o ciclo recomeça. (Charron e de Bonville, 2004, p. 67-68)
É fato que, embora o paradigma esteja definido, o mesmo pode sofrer mudanças. O que se percebe, de forma geral, é que, de acordo com os avanços dos protocolos de saúde voltados à contenção do contágio da Covid-19 em todo o mundo, o telejornalismo foi se adaptando a cada um deles, efetivando alterações na sua gramática de produção. Para exemplificar a afirmação, relata-se que os materiais analisados nos meses de fevereiro, março, abril de 2020 foram muito semelhantes quanto à adoção da prática telejornalística. O que marcou o referido período, entre outros aspectos, foi a adoção em massa de entrevistas online - ou seja, por celular ou computador. Essa prática das entrevistas online não é nova. Utilizava-se esse tipo de expediente antes da pandemia. Porém, a frequência com que isso ocorria era bem menor do que no contexto da pandemia instaurada. Na rotina produtiva dos telejornais, uma entrevista feita online era utilizada apenas em casos extremos, que podem aqui ser pontuados como:
As duas situações acima mencionadas são exemplos de maneiras, até então consideradas justificáveis, para a utilização de uma entrevista online que seria inserida em uma telerreportagem. Uma discussão muito acirrada quanto à resistência desses produtos de maneira frequente era o tipo de equipamento técnico a ser utilizado, uma vez que o Padrão Globo de Qualidade sempre prezou por ressaltar a qualidade técnica dos seus materiais. Alves (2017) discute essa questão, quando trata do vídeo amador no contexto da telerreportagem e diz que existe uma depreciação do produto final do seu trabalho (a imagem amadora), principalmente em termos técnicos e isso, muitas vezes, justifica o crédito amador dado ao material, contrapondo-o ao profissional. Ainda sobre o equipamento, Becker (1982, p. 71) ressalta:
O equipamento utilizado, em particular, engendra esse tipo de saber universal. Quando o equipamento incorpora as convenções [...] qualquer pessoa capaz de manipular os aparelhos sabe fazer o que é requerido para desenvolver a atividade coordenada. (Becker, 1982, p.71)
Não raro, o equipamento engendra o status da imagem no telejornal e, dessa feita, quando feita por equipamentos móveis e não pelo repórter cinematográfico da emissora, a imagem ganha status de amadora ou de cinegrafista amador. Se, até então, a discussão estava atrelada também ao equipamento utilizado para que esse material não ganhasse status de profissional, como fica a situação das entrevistas feitas por dispositivos móveis durante o processo da pandemia da Covid-19? Essa discussão ainda é muito recente, até mesmo em função de que a pandemia ainda está presente no dia a dia das pessoas, e, portanto, ainda é uma discussão que precisa ser amadurecida. Porém, ela está cada vez mais presente da linguagem do telejornal em período pandêmico.
5.Discussão
5.1. Reportagem feita com entrevistas apenas com dispositivos móveis
É possível afirmar, após a análise dos materiais aqui mencionados, que a entrevista online esteve presente em 120 das 140 telerreportagens analisadas do Jornal Nacional no primeiro ano da pandemia, no Brasil. Ou seja, 85% dos materiais utilizaram, de alguma forma, esse recurso. A primeira telerreportagem, no contexto de nossa análise, que foi feita com entrevistas integralmente por dispositivos móveis foi exibida no dia 29 de abril de 2020 e tratava sobre o tema: “Mapa da Fiocruz mostra em que estados o ritmo de expansão da Covid-19 é maior”. O repórter foi André Trigueiro e o local foi a cidade do Rio de Janeiro - RJ.
Figura 1 – Passagem de André Trigueiro
Fonte: (Jornal Nacional, 2020)
O material deixa claro que o Brasil é um dos países do mundo onde o ritmo da expansão do vírus que causa a Covid-19 é mais preocupante. O número de óbitos pela doença, à época, dobrava, em média, a cada cinco dias. O telejornal diz também que, entre os estados da federação, o Maranhão é o que apresenta a mesma velocidade de óbitos que a verificada nos Estados Unidos. Enquanto o texto traz dados estatísticos, as imagens que cobrem os offs1 são de pacientes em hospital e gráficos feitos em computação gráfica.
Figura 2 – imagens que cobriram a telerreportagem
Fonte: (Jonal Nacional, 2020)
Na sequência, aparece o primeiro entrevistado, Christovam Barcellos, sanitarista da Fiocruz. A entrevista com ele, aparentemente, foi feita via computador por meio de programas que permitem ver no canto superior da tela a imagem da pessoa com quem o entrevistado está conversando – neste caso, o repórter André Trigueiro.
Figura 3 – Entrevista por computador
Fonte: (Jornal Nacional, 2020)
Após isso, segue-se a complementação das informações, por meio de um segundo off, também coberto com imagens gráficas, em sua maioria. E, então, a telerreportagem fecha com a sonora2 do Secretário Estadual de Saúde do Rio de Janeiro, Edmar Santos. Esta última sonora chama a atenção pela sua qualidade técnica. O então secretário encontra-se em um carro em movimento, por isso, a imagem aparece um pouco trêmula. Aparentemente, o material foi feito por celular. Por não ter prezado por qualidade técnica, a luz que entra pela janela deixa o rosto do entrevistado escurecido, o que na linguagem técnica se chama “estourar” a imagem. É fato que, em uma situação na qual a entrevista fosse gravada com cuidado técnico, com o apoio do repórter cinematográfico, e, por algum motivo, apresentasse esse tipo de problema, a referida entrevista, provavelmente, não conseguiria espaço no telejornal.
Esse tipo de situação também foi diagnosticada, em diversas vezes, por Alves (2017), no tocante à utilização de imagens geradas por amadores e aproveitadas em telejornais. A autora explica que, em muitas ocasiões, imagens creditadas como amadoras conseguem espaço no telejornal, mesmo que sua situação técnica apresente problemas técnicos graves, sempre com o crédito de amador para justificar o seu espaço. O que se percebe, nestes casos de entrevistas online no contexto da pandemia, é que isso não vem ocorrendo, e as imagens captadas nestas situações não são identificadas com o crédito de amadoras, deixando em evidência a mudança de uma base convencional até então institucionalizada.
Figura 4 – Entrevista por celular
Fonte: (Jornal Nacional, 2020)
É possível perceber, por meio de análise empírica, que essa temática tem sido aberta a novas discussões, a partir da prática do telejornalismo, no contexto da pandemia da Covid-19.
5.2. O uso de máscara nas passagens dos repórteres
Outro item a ser analisado, a partir do mês de maio de 2020, foi a adoção da máscara pelos repórteres, inclusive no momento da realização das passagens3. Embora o uso de máscara tenha sido recomendado pelo, à época, Ministro da Saúde, Luis Henrique Mandetta, desde o dia primeiro de abril do ano de 2020, em coletiva à imprensa, a normativa (Lei 14.019/2020) que prevê a obrigatoriedade do uso de máscara em circulação de espaços públicos e privados foi sancionada pelo Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, somente em 02 de julho de 2020. A partir de então, é possível afirmar que, na maioria dos materiais exibidos no JN, os repórteres gravaram as passagens e links com a utilização da máscara. No período de nossa análise, foram encontradas apenas duas situações que fugiram à regra.
Figura 5 – Passagem com máscara
Fonte: (Jornal Nacional, 2020)
A telerreportagem exibida no dia 29 de julho do ano de 2020 trouxe a informação de que o ministro do Supremo Tribunal Federal – STF, Dias Toffoli, defendia prazo para que juízes e procuradores se candidatem, após deixarem cargos. Neste material, o repórter foi Marcos Losekan, e o mesmo gravou uma passagem, em ambiente interno, sem máscara.
Figura 6 – Passagem sem máscara
Fonte: (Jornal Nacional, 2020)
No dia 30 de setembro de 2020, uma telerreportagem sobre o aumento do comércio eletrônico no período da pandemia traz uma passagem com o repórter Fábio Turci, de São Paulo, em ambiente interno, também sem máscara.
Figura 7 – Passagem sem máscara
Fonte: (Jornal Nacional, 2020)
Todas as demais telerreportagens (após o decreto), analisadas no período de um ano da pandemia, foram gravadas com máscara. Isso leva a inferir que as duas exceções citadas aqui foram efetivadas em função de o repórter estar em ambiente fechado, sem circulação de outras pessoas (com exceção da equipe). Isso evidencia, também, o que afirma Alsina (1996, p.18) sobre o papel do jornalismo: “papel socialmente legitimado para produzir construções da realidade que são publicamente relevantes”.
5.3. A posse do microfone
As normas do telejornalismo evidenciam que o microfone sempre deve estar em posse do repórter. Rosário (2004) explica que as repetições do modo como o jornalista segura o microfone, as expressões faciais de ênfase ou reprovação ajudam na credibilidade e segurança do telejornal. A canopla4 no telejornalismo exerce um papel importante. Ela sempre deve acompanhar o microfone. Essas regras fazem parte da história da criação do telejornalismo na Rede Globo de Televisao. Em 1974, a emissora iniciou um treinamento geral de repórteres, buscando a padronização das práticas no telejornalismo. Nos cursos, ensinava-se como “segurar microfone, evitar gesticulação excessiva, moderar as reações fisionômicas e colocar a voz” (Memória Globo, 2004, p. 91).
Uma das medidas de biossegurança no controle da disseminação da Covid-19 é o distanciamento social. De acordo com Smith e Freedman (2020), essa medida busca reduzir as interações em uma comunidade, que pode incluir pessoas infectadas, ainda não identificadas. Como a doença da Covid-19 (SARS-CoV-2) é, comprovadamente, transmitida por gotículas respiratórias, é fato que é preciso certa proximidade física entre o contaminado e o não contaminado para que ocorra o contágio. Os mesmos autores explicam que “O distanciamento social é particularmente útil em contextos com transmissão comunitária, nos quais as medidas de restrições impostas, exclusivamente, aos casos conhecidos ou aos mais vulneráveis são consideradas insuficientes para impedir novas transmissões”(Smith e Freedman, 2020, p. 12).
No Brasil, a existência da transmissão comunitária da Covid-19 foi declarada em todo o território nacional no dia 20 de março de 2020, por meio da portaria número 454, do Ministério da Saúde. A partir de então, percebe-se, no decorrer de nossa análise, que quando as entrevistas não eram feitas online (que passaram a ser a forma mais comum), elas passaram a ser realizadas de uma forma que quebra a regra da telerreportagem referendada nos manuais de Telejornalismo. Na tentativa de conseguir o distanciamento social e evitar o compartilhamento de objetos, os entrevistados passaram a ter um microfone apenas para eles (sem a canopla) e segurá-lo sozinhos, ao responder as perguntas do repórter.
Figura 8 – Fonte segurando o microfone
Fonte: (Jornal Nacional, 2020)
A figura 8 evidencia o que está descrito acima. O microfone na mão do entrevistado passou a fazer parte da rotina de entrevistas presenciais, no período da pandemia da Covid-19.
6. Considerações finais
Fernandes (2017) destaca que o telejornalismo tem um “papel social” e o jornalista é o mediador desta função. Partindo do princípio acima, e após proceder ao mapeamento do telejornal da Rede Globo de Televisão, Jornal Nacional, entre os dias 26 de fevereiro de 2020 e 24 de fevereiro de 2021, por meio de amostra não probabilística de meses compostos (Junior, 2006), ficam evidentes as seguintes ponderações:
- As entrevistas realizadas por meio de dispositivos móveis, já presentes nos telejornais antes da pandemia, porém, de forma tímida, passam, a partir da declaração de transmissão comunitária no Brasil da Covid-19, a fazer parte do dia a dia do telejornalismo. 85% dos materiais analisados na coleta utilizaram, de alguma forma, esse recurso. Isso leva também à discussão quanto ao equipamento utilizado. Ora, se, antes da pandemia, o equipamento utilizado (dispositivos móveis, principalmente celular) engendrava um status que levava o telejornal a tratá-lo de forma diferenciada, muitas vezes como amador (ALVES, 2017), a partir da necessidade da utilização do mesmo por parte do telejornalismo, de forma intensa, isso passa aos poucos a mudar a sua posição no telejornal, perdendo, em um primeiro momento, o crédito de amador.
- A posse do microfone na mão do entrevistado, mesmo que sem a canopla, mostra a ruptura de uma convenção, antes pré-estabelecida e institucionalizada, de o microfone ser “imaculado” e pertencer sempre ao repórter.
- Quando os repórteres passam a utilizar máscara, mesmo que em local aberto e sem circulação de pessoas, ressaltam a necessidade de fortalecer novas práticas do dia a dia da população que, mesmo definidas por meio de instituições jurídicas, são necessárias como uma medida sanitária. É como aponta Lipovetsky (2004, p. 68):
A capacidade midiática de criar, em grande escala, fenômenos comportamentais e de emoções similares expressa-se em best- sellers, em hits, na idolatria de stars, na adesão às modas, no sucesso do mês, etc. Mesmo os gestos mais cotidianos tendem a homogeneizar-se.
Essas e outras questões que acometeram o telejornalismo, como prática de produção e divulgação de notícias, ainda estão por ser mais densamente analisadas. Certamente, haverá muitos debruçamentos teóricos e metodológicos sobre esta como que mudança na rotina de produção, tanto do JN quanto de outros telejornais. Quantas dessas refacções ficarão, no pós-pandemia? Quantas foram apenas adaptações momentâneas para um “momento possível”? Quantas se configurarão mais eficazes à economia das práticas comunicacionais dos veículos? Quantas, enfim, se juntarão às já existentes para configurar a gramática do telejornalismo? São pontos em aberto, para uma análise no porvir.
O que se tem, de mais factível, é a demonstração da imensa capacidade de o telejornalismo se adaptar ao contexto pandêmico, reestruturar-se, rapidamente, para tornar-se protagonista também deste momento, demonstrando seu papel de sujeito necessário à crise instalada e, principalmente, exercitando suas estratégias para não perder credibilidade nem ferir de morte o contrato de leitura que tem com seus telespectadores.
Referências
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1 É o texto gravado (pelo repórter ou apresentador) para ser editado junto com as imagens da reportagem. Quando o repórter escreve o off, ele tem que se preocupar com as informações obtidas, as aberturas, as passagens ou encerramento gravado no local, as entrevistas e imagens produzidas pelo cinegrafista (PATERNOSTRO, 1999, p. 152)
2 Parte do trecho da entrevista que é inserido no corpo da telerreportagem
3 Passagem é o ato de o repórter de televisão “aparecer” no vídeo, numa forma de “assinar” a matéria.
4 Canopla ou microphone flag é a peça que contém o logotipo de uma emissora e que envolve o microfone. No Brasil, elas começaram a ser utilizadas na década de 1960.