Quando descontextualizar faz parte do contexto:
Um estudo da cobertura do Jornal Nacional sobre o sequestro na linha 2520d
When decontextualizing is part of the context: A study of Jornal Nacional coverage of the kidnapping on line 2520d
Cuando la descontextualización es parte del contexto: Estudio de la cobertura del secuestro de Jornal Nacional en la línea 2520d
e-ISSN: 1605 -4806
VOL 24 N° 111 Mayo - Agosto 2021 Varia pp. 362 - 374
Recibido 21-06-2021 Aprobado 28-08-2021
https://doi.org/10.26807/rp.v25i111.1794
Fábio Cruz
Brasil
fabiosouzadacruz@gmail.com
Arthur Freire Simões Pires
Brasil
grohsarthur@gmail.com
Estevan de Freitas Garcia
Brasil
estevanfreitasg@gmail.com
Resumo
Neste estudo, buscamos analisar a reportagem do Jornal Nacional sobre o sequestro do ônibus da linha 2520D a partir das perspectivas teóricas de Barthes (1964) e Kellner (2001). Com estes autores, estudamos como os jornalistas do Grupo Globo de Telecomunicações constroem e guiam a narrativa do caso. Detectamos, então, que descontextualizar faz parte do contexto das práticas, partindo de uma superficialidade a qual corrobora com engrandecimento de preceitos mercadológicos e hegemônicos.
Palavras-chave: telejornalismo; cultura da mídia; Jornal Nacional; fait divers.
Abstract
In this study, we sought to analyze a Jornal Nacional’s report on the 2520D bus hijacking from the theoretical perspectives of Barthes (1964) and Kellner (2001). With these autores, we studied how the Grupo Globo de Telecomunicações’ journalists build and guide the case narrative. We then detect that decontextualizing is part of the contexto of the vehicle practices, starting from a superficiality that corroborates to the enhancement of market and hegemonic precepts.
Keywords: broadcast journalism; media culture; Jornal Nacional; fait divers.
Resumen
En este estudio, buscamos analizar el informe del Jornal Nacional sobre el secuestro del autobús 2520D desde las perspectivas teóricas de Barthes (1964) y Kellner (2001). Con estos autores, estudiamos cómo los periodistas del Grupo Globo de Telecomunicaciones construyen y guían la narrativa del caso. Detectamos, entonces, que la descontextualización es parte del contexto de las prácticas, comenzando por una superficialidad que corrobora la ampliación del mercado y los preceptos hegemónicos.
Palabras clave: periodismo televisivo; cultura mediática; Periódico nacional; fait divers.
1. Aspectos introdutórios
Estamos em 2019 e, pouco mais de 19 anos depois de um famoso sequestro1 na cidade do Rio de Janeiro, um novo acontecimento inusitado pauta os jornais e a sociedade. Pela manhã, um jovem de 20 anos fez reféns os passageiros e o motorista de um ônibus que fazia o trajeto entre São Gonçalo (RJ) até a cidade do Rio de Janeiro (RJ).
Durante as quase quatro horas do evento em questão, o ônibus trancava a ponte Rio-Niterói e as forças policiais foram chamadas para negociações e execução da operação de resgate dos reféns. Justamente enquanto tudo ocorria, chegavam equipes de diferentes veículos jornalísticos brasileiros para a realização de uma cobertura jornalística. Entre os veículos estava a Rede Globo de Telecomunicações, representada pelos seus repórteres, cinegrafistas e demais profissionais envolvidos.
Fundada em 1925 pela família Marinho, o Grupo Globo teve o início de sua expansão alavancada para a televisão em 1962, partindo de um apoio de capital estrangeiro proveniente da Time-Life. Em 1965, ocorreu a primeira transmissão de fato e, pouco a pouco, a emissora foi conquistando parcerias em diferentes estados do Brasil e se consolidando como maior e principal canal do país.
O surgimento do Jornal Nacional é extremamente simbólico, pois o telejornal foi o primeiro da história do país a ser transmitido em rede nacional. Sua primeira transmissão ocorreu em setembro de 1969 e perpetuou-se até a contemporaneidade. Consequentemente, por se tratar de um programa consagrado dentro da grade televisa brasileira, por ter grande audiência e estar na emissora de maior visibilidade, escolhemos analisar a cobertura feita por ele de um caso imponderável.
Assim, decidimos realizar um estudo que objetiva debater o fazer jornalístico dentro de uma cobertura, analisando não apenas as ferramentas e artimanhas presentes dentro da reportagem, mas seus efeitos e os vieses ideológicos que circundam as tais práticas. Ou seja, queremos entender como a mídia manifesta-se, por quais motivações e com quais resultados. Para tanto, adotaremos os pressupostos teórico-metodológicos de Douglas Kellner (2001), a partir da sua cultura da mídia, e de Roland Barthes (1964, 1993), com as noções dos fait divers, através dos seus tipos e subtipos, e dos estereótipos.
2. Apresentando o objeto de estudo
Em estudo anterior (Cruz, 2006), constatamos que, geralmente, as produções bibliográficas sobre telejornalismo no Brasil apresentam duas linhas de estudos: uma mais ligada a “aspectos técnicos e/ou normativos da prática jornalística” e outra que “ora alia técnica e história, (...) ora denota um viés mais crítico” (2006, p.23). Nesta segunda perspectiva de investigação, um dos destaques é a adoção, no início, do modelo norte-americano de fazer telejornalismo, mais objetivo e que leva menos em conta a análise e o comentário opinativo. Outro ponto bastante abordado, é a postura da Rede Globo de Televisão durante os 21 anos de regime militar no Brasil (1964 – 1985).
Surgida em 1965, em meio a um polêmico negócio que envolveu a então proibida injeção de capital estrangeiro oriunda do grupo estadunidense Time Life na empresa de comunicação de Roberto Marinho2, a Rede Globo, assim como uma parte considerável dos veículos tradicionais de mídia brasileiros, manteve-se de mãos dadas com o governo servindo de porta-voz deste. No entanto, quando o País clamou pela volta da democracia, posicionar-se favorável a esse novo momento consistiu em uma prática oportuna após “anos de silêncio e conivência ininterruptos” (Cruz, 2006, p. 26).
Foi justamente essa a linha adotada pela Rede Globo nas décadas seguintes: por trás do manto falacioso da imparcialidade, independente de quem esteja no poder, a postura clássica da emissora é a da conivência. Neste contexto, um dos principais programas televisivos que realizam essa promoção é o Jornal Nacional (JN)3.
Considerado o principal telejornal brasileiro, o JN conecta, há 50 anos, milhões de telespectadores nas noites de segunda a sábado. Consagrado como um dos principais agentes de mediação entre poder e sociedade civil, o JN legitima e fortalece, em suas edições, determinados discursos e posturas identitárias, sugerindo modos de pensar e agir. Considerando isso, o noticiário opta, muitas vezes, por trabalhar com um mix de elementos oficiais e outras possibilidades. Neste sentido, o fait divers4 é uma delas.
Muitas vezes atuando em sintonia com as forças hegemônicas da sociedade, percebemos que a ideologia5 transmitida pelo telejornal “é [geralmente] a do branco masculino, ocidental, de classe média ou superior; são as posições que vêem raças, classes, grupos e sexos diferentes dos seus como secundários, derivativos, inferiores e subservientes”. Assim sendo, o JN legitima a divisão/dualização entre “dominantes/dominados e superiores/inferiores, produzindo hierarquias e classificações que servem aos interesses das forças e das elites do poder” (Kellner, 2001, p.83).
Reproduzindo os embates entre setores hegemônicos e contra-hegemônicos da sociedade, o JN atua como uma espécie de palco democrático, que veicula diferentes discursos e posturas. Entretanto, a velha prática prevalece: enquanto alguns setores são blindados, outros são bombardeados de forma explícita ou implícita.
Dependendo do que está em jogo no picadeiro midiático, os discursos do supracitado noticiário podem vir a legitimar, inclusive, ações mais duras por parte de alguns aparelhos de Estado6 como, por exemplo, a polícia e a justiça. Tal prática é fortalecida por movimentos que fomentam o medo pelo espetáculo e que omitem e/ou manipulam informações através de noções simplificadoras e/ou descontextualizadas sobre determinados cenários.
3. Aportes teórico-metodológicos da investigação
Kellner (2001) traz em sua obra uma proposta de leitura para a compreensão das mais diversas produções culturais. O autor aponta que, após se tornarem objetos de mercado, estas começaram a ser produzidas em grande escala, com base em uma fórmula de sucesso, e sendo anunciadas como mercadoria. O objetivo, neste contexto, é chamar a atenção do público e, principalmente, vender. São desenvolvidos, assim, produtos que mostram posições conflitantes, a fim de agradar um público mais amplo, transformando a mídia, conforme Kellner (2001), em um campo de batalhas ideológicas, onde, conforme mencionamos antes, as visões hegemônicas e as contra hegemônicas de mundo se chocam. Assim, ao abordar os assuntos através de determinado viés – mesmo que de forma sutil ou imperceptível –, a mídia se coloca como um instrumento de dominação e de socialização, ditando gostos, valores, ideologias e, logo, comportamentos.
Cabe salientar aqui que no caso brasileiro, conforme afirmam Guareschi e Biz (2009), existem os chamados oligopólios de mídia nos ramos de televisão e rádio abertas. Esta configuração de mercado impõe uma não multiplicidade de olhares às produções midiáticas divulgadas, sendo produzidos conteúdos semelhantes, que seguem um mesmo viés ideológico, por diferentes emissoras de TV e rádio – se estendendo a jornais impressos, revistas, produtoras cinematográficas, etc. Desta forma, o conteúdo que circula na mídia, em sua grande maioria, tem um caráter neoliberal e, muitas vezes, conservador, legitimando os interesses econômicos e políticos dos grandes meios de comunicação, assim como de seus patrocinadores.
A fim de trazer ferramentas que nos ajudem a melhor compreender as produções midiáticas, Kellner (2001) elabora a Pedagogia Crítica da Mídia, que conta com três conceitos centrais: horizonte social, campo discursivo e ação figural. O horizonte social faz referência às práticas, experiências e aspectos reais do campo social, que ajudam na estruturação de um universo da cultura da mídia e a sua recepção. Pode ser compreendido, dessa forma, como o contexto ou o cenário da época em que a produção cultural foi desenvolvida. O segundo conceito central, o campo discursivo, refere-se aos atores envolvidos na produção midiática. Podemos trazer como exemplo, no caso de produções cinematográficas, os roteiristas, o público, empresas patrocinadoras, entre outros. Por fim, a ação figural se refere ao produto final da produção cultural, levando em conta o horizonte social e o campo discursivo. O que aquela produção se tornou de fato? O que ela transmite? Que características ela traz em sua versão final? Que ideologia pode ser percebida? Essas são algumas das respostas que a ação figural pode vir a responder.
No lado barthesiano, estereótipo e fait divers contribuirão para uma leitura do fazer jornalístico, enquanto na parte do intelectual norte-americano, dissecaremos os efeitos e sentidos do objeto empírico partindo dos pressupostos colocados nas categorias analíticas pedagogia crítica da mídia propostas por Kellner.
Inicialmente, a tradução (livre) literal do termo fait divers é “fatos diversos”, porém pode ser traduzida como “casos do dia” ou “fatos do dia”. Esta expressão ilustra tipos e subtipos de como as produções midiáticas se manifestam. Mais do que isso são uma forma de tentar prender a atenção do público espectador.
A teoria de Barthes (1964) alerta um viés capitalista que busca (mais do que qualquer coisa) números; maior público para maiores cifras de publicidade e assim por diante, uma lógica recorrente dentro do universo globalizado (Cruz e Pires, 2018). Mas estes números são buscados por meio de técnicas que exageram no uso do sensacionalismo, para manter a audiência cativa ao produto.
Existem dois tipos de fait divers que, por sua vez, deságuam, cada um, em dois subtipos. Causalidade e coincidência são os dois tipos. No fait divers de causalidade, existem duas subdivisões, a de causa esperada e a de causa perturbada. Enquanto no de coincidência, os dois subtipos são de antítese e repetição.
Neste sentido,
o conceito dos fatos diversos de causa esperada se dá pela identificação do público com o assunto tratado. Como seu próprio nome diz, a causa é esperada, ou seja, o desenrolar da notícia tende a ser dedutível. Mas uma outra tendência dele, tornando-se seu diferencial, por assim dizer, é o dramatis personae (personagem dramático). Desta forma, a história terá uma centralização em algum personagem em algum tipo de situação de risco ou vulnerabilidade, produzindo – esta é a intenção – uma forma de consternação para o público. (Cruz e Pires, 2017, p. 51)
No outro subtipo, estão os fatos excepcionais, ou seja, que causam perturbação decorrente de um efeito de origem imprecisa, desconhecida, ilógica. Então, o foco está voltado a esta no que (propriamente) perturba, o subitâneo.
Passamos para os outros dois subtipos, presentes no fait divers de coincidência. Primeiramente, o de antítese. Como o próprio nome diz, existe um encontro de ideias opostas, antagônicas e o cerne deste subtipo está no embate dessas duas linhas rivais em um mesmo ambiente. Por último, a coincidência por repetição “é o igual, que se reproduz, com diferença” (Ramos, 2001, p.126).
Finalizando a parte barthesiana do cabedal teórico, está o estereótipo. Nele ocorre uma elaboração simbólica com o intuito de manipular. Com característica de fácil absorção e superficialidade, eles podem se perpetuar no imaginário popular e se tornarem difundidos exatamente por estas características. Os estereótipos são cotidianamente reproduzidos pela mídia não só através da fala, mas também por textos e imagens. A consequência se dá no fortalecimento de forças hegemônicas7, uma vez que enfraquece o que se opõe.
Com relação aos aspectos metodológicos, em um primeiro momento, faremos a decupagem do vídeo da reportagem veiculada no telejornal. Na sequência, confrontaremos o conteúdo da reportagem com os pressupostos teóricos que vão ser descritos na continuação deste item para, então, descrevermos o que foi obtido dentro do estudo proposto.
4. Análises
Dia 20 de agosto de 2019. Cidade do Rio de Janeiro (RJ). Ponte Rio-Niterói. Por volta das 5h30 da manhã, o ônibus da linha 2520D, que vinha de São Gonçalo – região metropolitana do Rio de Janeiro – é sequestrado. O sequestrador – William Augusto da Silva, de 20 anos – dá ordens ao motorista para que o veículo pare atravessado na pista, trancando o trânsito de carros neste sentido. Dentro do ônibus, 39 pessoas são mantidas reféns. No período de negociação entre sequestrador e polícia – que durou mais de 3 horas e meia – 7 reféns são liberados. Por fim, às 9h04 da manhã, o sequestro tem fim: William Augusto da Silva é alvejado com 6 disparos de atiradores de elite e cai morto.
No mesmo dia, durante a noite, no Jornal Nacional, a notícia ganha destaque. O homônimo do responsável pelo sequestro e âncora do jornal, William Bonner, anuncia: “A Polícia do Rio libertou hoje 39 pessoas ameaçadas por um sequestrador dentro de um ônibus. Depois de 3h e meia, ele foi alvejado por 6 disparos de atiradores de elite e caiu morto. Os tiros não feriram nenhum refém”. Enquanto isso, são mostradas na tela imagens do ônibus, da ação policial, e de um dos reféns na janela do ônibus, que ressalta: “Terror psicológico e muito medo. Todo mundo pensa na família, nos filhos. Ameaçou: se a polícia encostasse no ônibus ele ia tacar fogo no ônibus, em todo mundo”.
Outro refém acrescenta em entrevista: “O momento mais tenso foi quando ele botou gasolina no ônibus, nos potinhos, amarrou. Foi muito tenso, né. Foi brabo”. Na sequência, outro refém entrevistado pela reportagem conta: “Ele falou que não queria nossos pertences nem machucar a gente, que só queria entrar para a história e que ‘vocês vão ter muita história para contar’”. Na tela, começam a ser transmitidas imagens do ônibus sequestrado e da ponte. O repórter responsável pela matéria narra:
o sequestrador interrompeu a viagem do motorista e de 38 passageiros que estavam a caminho do trabalho às 5 e meia da manhã. Todos vinham de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio, e cruzavam a ponte Rio Niterói. O sequestrador deu a ordem para o motorista deixar o ônibus atravessado na pista. Pouco depois de passar pela base da Polícia Rodoviária Federal, 10 minutos depois, às 05:40 da manhã, a Polícia Rodoviária Federal chegou ao local. Os reféns contam que puderam usar o telefone celular dentro do ônibus.
Em seguida, outro refém é entrevistado e conta, enquanto exibe folhas de papel com palavras escritas em letras grandes8: “teve passageiro que falou com a família - eu falei com os meus familiares – e os familiares falando com a polícia”. O jornalista continua: “O repórter Genilson Araújo acompanhou toda a ação do Globocop”, e logo passa a palavra para esse, que coloca: “Policiais cercando neste momento esse ônibus da empresa que faz a ligação São Gonçalo x Rio de Janeiro. Policiais Militares e também Policiais Rodoviários Federais”.
Imagens de dentro do ônibus ganham as telas dos telespectadores. O repórter responsável pela reportagem continua:
Essas imagens, obtidas com exclusividade pelo Jornal Nacional, mostram a movimentação do sequestrador dentro do ônibus. Ele fala várias vezes com o motorista e também com os passageiros, que permanecem sentados. A polícia fechou o trânsito na ponte Rio x Niterói nos dois sentidos. Às 6:19, a porta do ônibus se abriu. O primeiro refém foi libertado. Quase 20 minutos depois, mais um passageiro saiu do ônibus. Às 6:30 da manhã, o sequestrador lançou um coquetel molotov na pista, que logo se apagou. Depois foi possível ver imagens de fogo dentro do ônibus. O BOPE, o Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar, assumiu as negociações. Às 07:44, o sequestrador apareceu na porta do ônibus. William Augusto da Silva olhou a movimentação e voltou. Atiradores de elite do BOPE se posicionaram. O sequestrador deixou mais 5 reféns saírem. A última mulher liberada desmaiou do lado de fora. Dentro do ônibus ficaram 33 reféns amarrados.
Outro refém conta: “amarrou todo mundo com lacre”. O repórter prossegue:
a multidão de motoristas e motociclistas presos no engarrafamento esperava o desfecho. No pior momento, o congestionamento em toda cidade chegou a 114 Km. A polícia diz que o sequestrador entrou no ônibus com uma arma de brinquedo, um aparelho de dar choques, uma faca e gasolina. Ele obrigou uma das passageiras a pendurar partes de garrafas pet com o combustível no teto.
Outro refém relata: “acendia o esqueiro, mas falava que não ia fazer nada. Mas mesmo assim ficava brincando com o isqueiro, que era algo perigoso, né?”. Sendo assim, nesse momento, ganham a tela imagens de outra repórter, direto da ponte Rio-Niterói, no momento do sequestro, e o repórter responsável continua narrando: “Às 9:01 da manhã, a repórter Livia Torres falava ao vivo da ponte Rio x Niterói quando ouviu tiros”. Então as imagens de Torres no momento do ocorrido ganham espaço: “A situação aqui ainda é muito tensa. A gente começa a ouvir alguns barulhos agora. Um barulho muito forte, muito forte. A gente se abaixou aqui agora. Barulho de muitos tiros gente, muitos tiros mesmo”. Na tela, aparecem as imagens da jornalista, que escuta o momento dos tiros, corre e se abaixa. O responsável pela narração afirma: “dá pra ouvir pelo menos 6 tiros”, enquanto são transmitidas imagens de pessoas se jogando no chão e correndo, e gritos de “ai meu Deus” de Lívia Torres ganham espaço no áudio da reportagem.
As imagens da reportagem gravada por Lívia Torres prosseguem: “Ali um policial atirador de elite, em cima do caminhão do corpo de bombeiros, ele fez um sinal de comemoração. O que nos leva a crer que o criminoso, enfim, acabou sendo atingido por esses tiros”. Neste momento, é possível escutar o som de comemoração das pessoas que se encontravam ao redor da repórter. O repórter principal continua: “essas imagens da TV Record mostram o momento em que o sequestrador foi atingido. William desceu do ônibus e jogou um casaco para os policiais. Quando voltava, foi baleado”. Outro jornalista, que se encontrava ao lado do ônibus, após o acontecimento, conta:
aqui do lado do ônibus dá pra ver que o sequestrador pintou de preto alguns vidros da lateral e também aqui da frente, para tentar se esconder da polícia. O terror dos passageiros aí dentro durou cerca de 3h e meia. Só terminou quando o sequestrador foi atingido pelos policiais. Ficaram marcas dos tiros aqui no farol e também na porta do ônibus, onde o sequestrador caiu.
O repórter responsável prossegue: “os 33 reféns que estavam no ônibus foram liberados sem ferimentos. Cerca de 40 minutos depois dos tiros, o governador Wilson Witzel pousou na ponte Rio x Niterói. E, ao descer do helicóptero, comemorou”. Enquanto isso, imagens de Witzel descendo do helicóptero e comemorando com gestos ganham a tela. Na sequência, o político, em entrevista, afirma: “A primeira preocupação nossa é salvar os reféns. É rapidamente solucionar o problema e o que nós assistimos foi um trabalho muito técnico da Polícia Militar”.
Na sequência, o repórter coloca:
A ponte Rio x Niterói foi totalmente liberada às onze da manhã. À tarde, na delegacia, um primo do sequestrador William Augusto da Silva pediu desculpas. Quase todos os passageiros da linha 2520D se conhecem, pegam o ônibus juntos. Depois de prestarem depoimento, só pensavam em seguir adiante.
Logo após, são trazidas as imagens de um dos reféns, que afirma: “agora é ‘livramento’ e seguir a vida. Viver a vida como se fosse a última, que depois disso… a gente acha que nunca vai acontecer com a gente mas acaba acontecendo”, conclui.
4.1 Encontrando o referencial teórico
Ao analisarmos a reportagem, percebemos um horizonte social marcado pelo espírito do contexto atual vivido pelo Brasil, leia-se a promoção de discursos de ódio por setores ligados ao Governo Federal - incluindo o próprio presidente da república - e endossados por uma parcela significativa da população9. Neste sentido, destacamos, também, a forte difusão de uma ideia contrária aos direitos humanos, ridicularizando-os e/ou menosprezando-os.
Esse panorama remete diretamente à dispersão de demandas e reivindicações que originalmente seriam estudantis e apartidárias, partindo das manifestações de rua de 201310, oriundas tanto de setores conservadores quanto progressistas. Junto a isso, podemos acrescentar a insatisfação com o status quo político, marcado por três eleições vencidas consecutivamente pelo PT (Partido dos Trabalhadores), e o prognóstico favorável de uma quarta. Além disso, está incluído, também, o desgaste da classe política, mais do que apenas as siglas, envolvida em diversos casos de corrupção.
Tal cenário foi aprofundado durante a última eleição presidencial e seus efeitos colaterais. Para ilustrar isso, destacamos manifestações pró-ditadura e endossamentos públicos de torturadores, o que detecta a tendência de uma aproximação com o autoritarismo. Em conexão com esse panorama, a ideia de “bandido bom é bandido morto” é amplamente propagada. Esta noção é cotidianamente divulgada em razão do conceito de banditismo ser vinculado a uma crença de atentar contra o patrimônio privado, bem mais precioso em uma sociedade regada pelos preceitos neoliberais.
Parte desse discurso ou, dependendo do caso, a sua totalidade, é corroborado pela mídia tradicional, uma vez que seus interesses (sejam eles lucrativos, culturais, comportamentais etc.) encontram-se intrinsecamente de acordo com as premissas ideológicas supracitadas. De caráter corporativista, determinados veículos de comunicação encaixam-se nos tais ideais neoliberais, e, assim, buscam uma consolidação de cunho hegemônico nos espaços de disputa.
Considerando isso, a Rede Globo, por exemplo, embora, muitas vezes, não conteste medidas do atual ministro da economia, Paulo Guedes, concomitantemente, vem adotando uma postura mais clara de resistência seja em alguns noticiários e espaços de opinião da TV fechada ou em revistas eletrônicas e programas humorísticos da TV aberta. Isto demonstra que a tradicional postura de conivência com os atos do poder, mencionada anteriormente, tem-se mostrado de certa forma abalada.
No que tange ao campo discursivo, podemos elencar, além da própria Rede Globo e seus profissionais, a figura de William Augusto da Silva11 e o seu primo, os tripulantes do ônibus, Wilson Witzel12, o BOPE, a Polícia Rodoviária Federal, as pessoas que se encontravam presas no trânsito e os receptores de uma forma geral.
Com relação à ação figural, o produto final consiste em uma reportagem típica do telejornalismo brasileiro, que é praticada por uma parte notável da mídia tradicional, e que pode ser desmembrada em dois aspectos: primeiramente, destacamos questões estruturais de produção. Como afirmamos anteriormente, por questões de estilo e de mercado, a matéria exibida pelo JN tende a ser objetiva. Neste sentido, sem aprofundar os “comos” e os “porquês”, o telejornal não traz outros possíveis lados, no caso específico, o de William13. Podemos elencar, além disso, o uso de elementos sensacionalistas como, por exemplo, a ênfase à gasolina dentro do ônibus, ao desmaio da refém e aos gritos dos presentes tanto no momento dos tiros quanto na comemoração do feito da polícia.
Em segundo lugar, constatamos uma ligação direta com o contexto atual vivido no Brasil. Conforme apontamos no horizonte social, a ideia de “bandido bom é bandido morto” permeia a matéria do JN. Considerando isso, a reportagem apresenta um discurso que, implicitamente, renega tudo aquilo que não se encaixa dentro dos valores hegemônicos da sociedade, difundidos por segmentos da mídia tradicional.
Em um contexto onde a maioria das narrativas defende o perfil do “cidadão de bem” como sendo o de um homem branco e de classe média ou alta, além de outros fatores, tudo aquilo que não se encaixa nessa lógica deve ser renunciado. Levando em conta esses aspectos, o “terror” só acaba quando o dito seqüestrador, aquele que aprisiona e ameaça, é alvejado.
Sob esse prisma, a reportagem legitima e enaltece a ação da polícia, braço armado do Estado, que impõe, muitas vezes através da violência, alguns dos valores impostos socialmente acima colocados. Tal postura também é reforçada no pronunciamento de Witzel, quando este afirma que a morte de William seria a resolução do problema. Cabe destacar, ainda, que a matéria traz um tom de final feliz, que é comemorado pelo governador, pela polícia e por pessoas que se encontravam na ponte, e conclui com uma mensagem de “superação” de um dos reféns.
Após o que colocamos anteriormente, dentro da ação figural, ainda conseguimos notar manifestações de quase todos os casos que dizem respeito à categoria barthesiana dos fait divers, por absoluto. Além da presença dos dois tipos - causalidade e coincidência - e de três dos quatro subtipos barthesianos - causa perturbada, repetição e antítese -, percebemos outro conceito do mesmo autor, o estereótipo.
De modo geral, a reportagem apresenta como eixo central o fait divers de causa perturbada justamente por se tratar de um acontecimento inesperado (em relação ao dia a dia da cidade), e pela impossibilidade de precisar a causa. Neste sentido, a única passagem que faz menção a uma possível explicação para o fato está presente na fala de um dos reféns, quando este afirma que “ele [William] falou que não queria nossos pertences nem machucar a gente, que só queria entrar para a história e que vocês vão ter muita história para contar”.
O fato da narrativa jornalística focar em um evento que quebra elementos do cotidiano (neste caso, um suposto sequestro em um simples deslocamento de um ônibus entre uma cidade e outra) ocasiona uma perturbação. Durante a matéria, em trechos como “o sequestrador interrompeu a viagem do motorista e de 38 passageiros que estavam a caminho do trabalho às 5 e meia da manhã. Todos vinham de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio, e cruzavam a ponte Rio Niterói”, há uma exemplificação perfeita para a diretriz geral da produção do JN. Existe, na fala citada, uma ênfase no rompimento da normalidade.
Depois daí, o fait divers de coincidência, através do subtipo repetição, se destaca junto à categoria barthesiana do estereótipo. Em nenhum momento, foi feita uma apuração quanto ao personagem do evento, William Augusto da Silva. Contudo, este foi chamado 14 vezes de sequestrador14, uma pelo seu nome próprio e outra por “criminoso”. Ou seja, há uma redução drástica do rapaz ao título de “sequestrador”, o que é consonante à ideia de um estereótipo de um dos elementos da narrativa jornalística. A manifestação dessas categorias barthesianas deságua e conversa com outro subtipo.
Bem contra o mal, luz contra trevas, água contra fogo, o fait divers de antítese é um dos que mais aparece em toda a decupagem da matéria jornalística. Os exemplos do início do parágrafo ilustram que a narrativa (de imagens e palavras) direciona para uma luta de personagens que simbolizariam um protagonismo – polícia, reféns e governador – contra alguém que simboliza antagonismo – William Augusto da Silva, o “sequestrador”, o “criminoso”.
Imagens de comemoração do assassinato, cercamento policial ao ônibus e uma sonora com um refém mostrando dois papéis nos quais estão escritos os dizeres “ele está sentado na fileira” e “ele está de pé na frente” corroboram exatamente com a manifestação dessa categoria. Isso se dá pela ideia de caça contra aquela personagem, bipolarização de uma situação, na qual existe uma grande operação contra um malfeitor específico.
Especialmente pelas imagens de comemoração, a matéria passa a ideia de que tudo o que há de ruim é expurgado com os tiros dos atiradores de elite. Então, falas descritivas da chegada, posicionamento e protagonismo do BOPE, comemorações de pessoas e (mais ainda) de policiais enaltecem o subtipo barthesiano previamente citado. Mas o elemento mais acachapante da coincidência por antítese é a reprodução da imagem de William Augusto da Silva sendo baleado.
Considerando isso, a imagem do sequestrador descendo do ônibus, atirando um casaco em direção aos policiais e sendo alvejado por tiros é reproduzida pelo Jornal Nacional. É possível ver, ainda, o corpo perder a vida e cair no chão e, em seguida, imagens e descrições das comemorações dos presentes. Além disso, a fala do repórter conecta a antítese e o estereótipo e ilustra perfeitamente a diretriz da matéria: “o terror dos passageiros aí dentro [do ônibus] durou cerca de três horas e meia. Só terminou quando o sequestrador foi atingido pelos policiais”. Partindo da última fala citada, o terror só termina com a morte, dando a entender que não existia outra solução e que o fim de William Augusto da Silva simbolizou uma salvação.
5. Considerações finais
Considerada um dos agentes de maior influência no que tange à consolidação e aprofundamento da democracia nas sociedades modernas, a mídia tradicional como um todo necessita problematizar questões complexas da sociedade. Ao lançar mão da superficialidade e do espetáculo, programas como o JN acabam prestando um desserviço à sociedade além de, conforme já colocamos, construir paisagens convenientes que recrudescem a hegemonia de uma classe sobre outra e acabam por se instaurar no imaginário social.
Optando por essa postura, o JN influencia negativamente a consolidação da democracia. Ao trazer uma narrativa simplificada e, consequentemente, descontextualizada, norteada pelos valores de uma das forças sociais – a dominante – o telejornal abre mão, dessa forma, do seu papel de incitar uma discussão a respeito do caso. Legitimando determinadas posturas, a produção sugere modos de pensar e agir que vão de encontro à defesa dos direitos humanos.
Dentro dessa lógica, destacamos o uso de estereótipos e do sensacionalismo, este de forma explícita ou não, como uma prática que corrobora o viés ideológico acima descrito. Não obstante, tal atitude também favorece interesses mercadológicos. Neste sentido, ao captar a atenção do público, esses elementos acabam atingindo o emocional dos receptores.
Portanto, aliando o fortalecimento de uma determinada visão de mundo com fins comerciais, o JN fornece elementos de persuasão, que são, concomitantemente, duradouros. Produzindo determinados rótulos através de discursos e imagens cumulativos e reducionistas, simplificadores e excludentes, o referido telejornal tece julgamentos ao mesmo tempo em que nega a reflexão e, por conseguinte, avanços em prol da democracia. Em tempos nebulosos, que flertam com uma espécie de viés autoritário, ao que parece, descontextualizar faz parte do contexto.
Referências bibliográficas
Barthes, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993.
Barthes, Roland. A estrutura dos fait divers – íntegra. Disponível em <https://bibliotecadafilo.files.wordpress.com/2013/10/barthes-a-estrutura-dos-fait-divers.pdf>. Acesso em: 11 de set. 2019.
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1 Em 2000, no Rio de Janeiro, um fato inusitado parou a cidade e o jornalismo nacional com o sequestro do ônibus 174.
2 Falecido em agosto de 2003.
3 O telejornal foi ao ar, pela primeira vez, no dia 1º de setembro de 1969.
4 Esta categoria barthesiana (1971) será trabalhada no referencial teórico deste artigo.
5 Inerente a essa discussão, Thompson (1995) faz menção ao conceito de ideologia, articulando-o às formas como o sentido (significado) serve para estabelecer e sustentar relações (assimétricas) de poder em contextos específicos.
6 Em alusão à obra clássica de Louis Althusser, “Aparelhos ideológicos de estado”.
7 Fica clara, aqui, a influência da teoria gramsciana da hegemonia, que prega ser a cultura um autêntico campo de lutas entre diferentes forças. Esta abordagem pressupõe dominação e resistência dos sujeitos sociais em um mesmo sistema. Segundo Souza (1995, p.26), “a teoria da hegemonia não elimina a prioridade da análise dos conflitos sociais e psicossociais, mas destaca os interlocutores do processo de negociação política no interior das classes sociais, identifica os espaços dessa negociação e, dessa forma, atualiza a análise das modernas interações entre infra-estrutura econômica e superestrutura política, redirecionando a relação entre ideologia e cultura”.
8 A primeira mensagem afirmava: “Ele está sentado na fileira”; já a segunda avisava: “Ele está de pé na frente”.
9 Por outro lado, não podemos deixar de mencionar, também, o uso de práticas similares por parte de setores contrários ao atual governo, em determinados momentos dentro desse contexto. Como exemplo, apontamos para a agressão sofrida pelo jornalista da Rede Globo de Televisão, Caco Barcellos, em 2016, durante protesto contra o pacote de ajuste fiscal proposto pelo então governador do Rio de Janeiro, Fernando Pezão.
10 Inicialmente, as manifestações baseavam-se em reivindicações relativas a valores de passagens de transporte público coletivo.
11 Segundo relatos de familiares à Policia do Rio de Janeiro, William “era introspectivo, vivia na internet, tinha dificuldades de se relacionar ao vivo e sofria de depressão”. Disponível em <https://gauchazh.clicrbs.com.br/seguranca/noticia/2019/08/sequestrador-de-niteroi-tinha-depressao-e-vivia-na-internet-dizem-familiares-cjzkcme3100h601navcqzqorx.html> Acesso em: 5 set. 2019.
12 Advogado, ex-juiz federal, ex-fuzileiro naval e atual governador do Rio de Janeiro. É filiado ao PSC (Partido Social Cristão) e conhecido por seu discurso sobre segurança.
13 No máximo, a reportagem exibiu a imagem do primo de William, sem, no entanto, mostrar o áudio. Neste sentido, segundo premissas barthesianas, apresentar informações superficiais acusa uma prática sensacionalista de fazer jornalismo. Para o autor, omitir elementos essenciais em uma matéria denota o uso do fait divers, categoria que será trabalhada em seguida dentro das análises, ao mesmo tempo em que acusa o posicionamento ideológico da produção.
14 Em uma das vezes, o tratamento utilizado foi “o sequestrador William Augusto da Silva”.