A participação dos seguidores do Senado Federal no Facebook:
uma análise discursiva de comentários sobre a votação da Reforma Trabalhista
The participation of Senate followers on Facebook: a discursive analysis of comments on the Labor Reform vote
La participación de los seguidores del Senado en Facebook: un análisis discursivo de los comentarios sobre la votación de la Reforma Laboral
e-ISSN: 1605 -4806
VOL 26 N° 113 enero - abril 2022 Monográfico pp. 179-195
Recibido 31-01-2022 Aprobado 28-04-2022
Adriano Cruz
Brasil
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
adrianocruzufrn@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2085-302X
Karla Ferreira
Brasil
cacalofe@yahoo.com.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5230-5154
Resumo
Este artigo apresenta uma análise discursiva da participação dos seguidores durante transmissão ao vivo da votação da Reforma Trabalhista no Senado Federal do Brasil pelo Facebook em julho de 2017. O objetivo é entender como os seguidores interpretaram esse acontecimento histórico. Utilizamos o aplicativo Netvizz para coletar os comentários e os métodos de Análise do Conteúdo e Análise de Discurso. Identificamos os sentidos de polarização partidária e desconfiança nas instituições e representantes políticos, especialmente relacionados com a corrupção. Constatamos ainda a rememoração a contextos sócio-históricos como forma de edificar posicionamentos.
Palavras-chave: Participação política; Senado Federal; Facebook; Reforma Trabalhista.
Abstract
This article presents a discursive analysis of the participation of followers during the live broadcast of the vote on the Labor Reform in the Federal Senate of Brazil via Facebook in July 2017. The objective is to understand how the followers interpreted this historic event. We use the Netvizz app to collect the comments and the Content Analysis and Speech Analysis methods. We identified the senses of party polarization and distrust in institutions and political representatives, especially related to corruption. We also found the recollection of socio-historical contexts as a way to build positions.
Keywords: Political Participation; Federal Senate; Facebook; Labor Reform.
Resumen
Este artículo presenta un análisis discursivo de la participación de seguidores durante la transmisión en vivo de la votación sobre la Reforma Laboral en el Senado Federal de Brasil vía Facebook en julio de 2017. El objetivo es comprender cómo los seguidores interpretaron este histórico hecho. Usamos la aplicación Netvizz para recopilar los comentarios y los métodos de Análisis de contenido y Análisis de voz. Identificamos los sentidos de polarización partidaria y desconfianza en las instituciones y representantes políticos, especialmente relacionados con la corrupción. También encontramos el recuerdo de contextos sociohistóricos como una forma de construir posiciones.
Palabras clave: Participacion politica; Senado federal; Facebook; reforma laboral.
Introdução
No segundo semestre de 2017, um dos momentos mais importantes em votações no Senado Federal brasileiro foi a discussão da Reforma Trabalhista. O tema foi noticiado pela mídia tradicional e pelos veículos de comunicação e plataformas digitais do Congresso Nacional, entre elas o Facebook, que possui mais de 2,8 bilhões de usuários ativos1 e é considerada a rede social mais popular do mundo. A aprovação da lei recebeu 50 votos a favor e 26 contrários, com uma abstenção, e ocorreu durante vigência do governo Michel Temer (MDB-SP), que obteve a pior avaliação dos presidentes que terminaram seus mandatos desde 1989, segundo pesquisa do Instituto Datafolha2. O Brasil estava imerso em um contexto pós-impeachment, com escândalos de corrupção e polarizado politicamente. A gestão do emedebista foi considerada ruim ou péssima por 82% dos brasileiros, segundo levantamento do Datafolha3 em junho de 2018. Mais da metade, 51%, expressaram reprovação ao governo Temer (2016-2018) pela atuação na economia. Entretanto, outros fatores também contribuíram para uma apreciação negativa da gestão, como a corrupção e a desonestidade. No Senado Federal, o presidente em exercício na época, o senador Eunício Oliveira (MDB-CE), também era investigado por prática de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
Antes mesmo da aprovação da reforma, o levantamento4 mostrou que a maioria dos brasileiros já estava cética sobre a validação da lei. Nessa sondagem, 64% dos entrevistados acreditavam que os empresários seriam os mais beneficiados; enquanto 58% disseram que os trabalhadores perderiam direitos. O pessimismo foi verificado em 70% da parcela dos inquiridos pela pesquisa que tinham conhecimento das mudanças; entre os que não tinham conhecimento sobre o tema, 40% se mostraram pessimistas. Após a aprovação e antes da nova reforma entrar em vigor, estudo da CUT/Vox Populi5, realizado em outubro de 2017, apontou que 81% dos respondentes discordaram das mudanças.
A aprovação da lei gerou polêmica e manifestações. Dessa forma, temos como objetivo analisar discursivamente a participação dos usuários da fanpage do Senado Federal brasileiro por meio da produção e circulação dos comentários. Para isso, após uma revisão bibliográfico-documental, realizamos uma análise de conteúdo e, em seguida, uma análise discursiva.
Temos alguns pressupostos norteadores da pesquisa: entendemos, a partir de Dahlgren (2018), que a participação política é um local privilegiado de disputa e compartilhamento de poder; a análise de discurso tem uma ancoragem na perspectiva althusseriana (Pêcheux, 1995), dessa forma, advoga que a história se movimenta a partir da luta de classes e, por fim, defende que o discurso se constitui também em um espaço privilegiado de disputa ideológica entre posicionamentos distintos.
A Reforma Trabalhista (Lei 13.467, de 2017) entrou em vigor em 11 de novembro de 2017 e foi criticada por retirar direitos já consolidados da classe trabalhadora garantidos pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) de 1943. Já os que defenderam as mudanças acreditavam que a nova reforma seria benéfica na geração de empregos no país.
Entre as alterações estavam as que incidiram sobre as férias, que eram de 30 dias corridos e passaram a ser parceladas em até três vezes; a contribuição sindical, que deixou de ser obrigatória; a jornada de trabalho, que era de 8 horas por dia e 44 horas semanas, passou a ser de 12 horas e 36 horas de descanso, sem ultrapassar 220 horas mensais; a permissão para grávidas e lactantes trabalharem em locais de baixa e média insalubridade; as regras para demissão, salários, uso de uniformes; direito à justiça gratuita; os acordos coletivos entre patrões e empregados, que prevalecem sobre o que está fixado na legislação e, por fim, a possibilidade do trabalho intermitente, reduzindo o tempo de contrato. A estabilidade do trabalhador também foi afetada com as novas regras.
É importante destacar que a CLT se presentifica de maneira positiva no imaginário dos brasileiros, especialmente da classe trabalhadora. Essa presença discursiva se reveste simbolicamente como um “lugar de memória”, conforme depreendemos de Nora (1993). A evocação desse enunciado remete a uma rede simbólica de sentidos ligados à melhoria nas condições, direitos e segurança dos trabalhadores. Segundo Nora (1993), os “lugares de memória” não são apenas territórios, mas podem se referir a símbolos investidos de sentido como, por exemplo, as constituições e outras legislações. Nesse sentido, as tentativas de flexibilização da legislação, via Reforma Trabalhista, levaram a intensa disputa nos campos discursivos graças ao funcionamento da memória.
As alterações nas leis trabalhistas se inserem num conjunto de reformas neoliberais que objetivam diminuir o papel do Estado e sua intervenção na economia. Essa transformação aconteceu em um momento histórico de derrubada do governo Dilma do poder, considerado um golpe jurídico-parlamentar (Souza, 2017), de intensa midiatização do combate à corrupção, centrado na Operação Lava Jato (Cruza, 2020) e de ruptura democrática (Castells, 2018).
Devido à relevância do tema e da repercussão gerada com a aprovação, que afeta milhões de brasileiros, este artigo analisa os comentários dos seguidores da página do Senado Federal no Facebook postados durante transmissão ao vivo sobre a votação da Reforma Trabalhista. Além da importância histórica, identificamos pelo aplicativo Netvizz que essa notícia foi a que recebeu mais posicionamentos no período entre julho e dezembro de 2017. Adotamos como ferramenta teórico-metodológica a Análise de Discurso de linha franco-brasileira para compreender como os usuários da página se posicionaram em meio à polêmica política que se instalou com a reforma. Também empregamos a Análise de Conteúdo na apresentação do corpus de pesquisa.
O Senado Federal é uma das mais importantes instituições políticas do Brasil, ao lado da Câmara dos Deputados. A página do Senado Federal no Facebook foi lançada em 11 de agosto de 2010. O objetivo da página, segundo Nazário (2017), é divulgar as atividades institucionais, políticas e legislativas.
Este artigo discutirá, na primeira parte, o conceito de participação e as experiências no ambiente digital. Na segunda parte, descrevemos o percurso metodológico. Em seguida, apresentamos uma descrição sobre a natureza dos comentários e as categorias de temas geradas pela postagem sobre a votação do texto da Reforma Trabalhista. Após essa parte, faremos a análise discursiva da categoria referente à menção dos parlamentares nas conversas. Por fim, apresentamos as considerações finais.
Participação política no ambiente digital
O conceito de participação, segundo Dahlgren (2018), está vinculado a relações de poder remotas ou mediadas e tem um envolvimento com o político, com contestação e/ou luta. Para o autor, a participação ocorre em determinadas conjunturas e sob práticas específicas. Dahlgren (2018) ressalta que a efetivação da participação real é dependente do contexto. Em democracias ocidentais, por exemplo, manifestações de rua, eleições e debates na esfera pública são realizados. No caso de governos autoritários, a participação adquire outra conotação, já que os cidadãos colocam suas vidas em risco no exercício de expressar suas opiniões.
Carpentier (2018) afirma que existem duas abordagens para a participação. A sociológica, na qual a participação envolveria muitos modelos de interação, em consonância com interações à base de textos e tecnologias. Nessa situação, o poder estaria presente, mas de forma secundária. A abordagem política se refere à igualdade de poder em processos de tomada de decisão, em que a participação está em jogo. O autor enfatiza que a tendência de modelos minimalistas de participação é privilegiar mais as opiniões da elite ao invés das expressões da não-elite. Carpentier (2012) menciona a legitimação do voto na urna como participação minimalista, pois é uma ação que faz parte da política institucionalizada. Outro exemplo são os programas de televisão, que realizam enquetes com os telespectadores, cujas opções oferecidas para votação popular são pré-determinadas. Nos modelos maximalistas, existe a defesa de um equilíbrio da participação e uma equalização dos posicionamentos da elite e da não-elite.
Carpentier (2012) e Dahlgren (2018) ressaltam que é preciso distinguir acesso e interação de participação. Segundo Carpentier (2012), acesso se refere à produção e recepção de conteúdos, e interação diz respeito às relações sócio-comunicativas entre pessoas e objetos, baseada em interesses e valores compartilhados, e necessitam de condições e espaços para sua efetivação. O autor cita algumas atividades que parecem ser participativas, como ativar o botão vermelho e assistir televisão, visitar várias páginas da Web ou trocar mensagens com colegas. Entretanto, essas ações são definidas como acesso e interação, considerados por Carpentier (2012) como pré-condições para a participação, que está ligada ao compartilhamento do poder e com a tomada de decisão. Gomes (2011) também considera que acompanhar e ler notícias sobre política, assistir vídeos e visualizar fotos e imagens são ações que não constituem participação política. Nessa perspectiva, para o autor, os atuantes na participação são aqueles que publicam e compartilham conteúdos, que tecem comentários nas postagens e constroem conversas com frequência. No entanto, na opinião de Gomes (2011), a participação dos que apenas observam não deve ser minimizada, pois pode servir como uma preparação de cidadãos no caminho de uma participação política. O autor acredita que a existência de canais digitais é uma iniciativa importante para habilitação e qualificação da participação.
No que tange à participação com a internet, nos primeiros anos do século XXI, o sentimento era de otimismo, considerando o espaço digital propício para discussões políticas e para práticas deliberativas (Papacharissi, 2002; Lemos, Lévy, 2010). Apesar disso, já naquela época, a literatura da área sinalizava para problemas como a quantidade de dados armazenados; a desigualdade no acesso; a capacidade individual para lidar com as mídias (media literacy); o anonimato (Papacharissi, 2004); o terrorismo digital; a organização de grupos contrários a debates (Maia, 2011); aumento da depressão e do estresse (Maia, 2011); suicídio (Dahlgren, 2013); ataques de hackers em sites de governo e outras instituições; vazamento ou repasse de dados para empresas comerciais ou serviços de inteligência. Nota-se que, em 2021, todos esses problemas ainda persistem e pode-se dizer que sofreram um agravamento no ambiente digital, principalmente nas plataformas de redes sociais. Além disso, esses problemas convivem com o aparecimento de outras atribulações, como as fake news, os algoritmos, a polarização e os discursos de ódio.
As fake news, informações falsas publicadas nos meios de comunicação e em sites e redes sociais na internet, já eram uma preocupação em 2017 pelo Senado Federal que, em dezembro do ano citado, realizou o seminário “Fake news e democracia” para discutir as notícias falsas sobre política publicadas nessas plataformas digitais e os desafios e limites no seu combate. Esse tipo de notícia causa desinformação, atende a interesses ilícitos e possui um poder viral, pois se espalha rapidamente, comprometendo o acesso a informações. Segundo D’Ancona (2018), a mentira, principalmente pela classe política, sempre existiu e, portanto, não é um fenômeno recente. Mas outro estágio pode ser alcançado pelas fake news por meio da propagação em plataformas de redes sociais. De acordo com Delmazo e Valente (2018, p. 11), “esse problema ganhou visibilidade pela capacidade de influenciar os sistemas políticos, especialmente processos eleitorais, e acentuar a polarização política”. D’Ancona (2018) ressalta que essa era da “pós-verdade” é emocional, pois se relaciona com nossa atitude diante da verdade, é a nossa reação em relação à desonestidade, à confiança nas instituições públicas e privadas.
Na perspectiva de Maia (2000), a apatia política dos cidadãos poderia explicar a não concretização da política deliberativa. A autora não considerou provável o interesse de todos pela participação em discussões políticas. Há os que se engajam em debates levados pela proximidade com seus interesses e por impactá-los diretamente. Em meio ao grande volume de informações na rede, muitas vezes contraditórias, D’Ancona (2018) afirma que o público passa a consumir notícias que garantam segurança e conforto emocionais, sem questionar sua validade e qualidade.
O relatório Digital News Report 2017, desenvolvido pelo Reuters Institute for the Study of Journalism at the University of Oxford, com 70 mil participantes de 36 países, aponta que as pessoas têm a chance duplicada de compartilhar ou comentar notícias em redes sociais virtuais quando as visões políticas com seus interlocutores são parecidas do que com pessoas cujos pensamentos são diferentes, ou com indivíduos cujas opiniões são desconhecidas. Comentar e compartilhar com mais frequência com quem tem ideias semelhantes dá a sensação de bem estar e, ainda segundo o relatório, pode estimular uma polarização hiper-partidária. De acordo com Janssen e Kies (2004), a internet possibilita liberdade aos usuários na escolha dos espaços online de discussões dos quais têm interesse em participar. Entretanto, isso pode gerar, segundo os autores, polarização e fragmentação social, além de um possível reforço de visões.
Na internet, principalmente nos sites de redes sociais, outro problema são os algoritmos que definem a visibilidade de informações e publicações. Na governança algorítmica, de acordo com Castro (2018), usuários diferentes obtêm resultados de busca também diversos em relação à mesma informação. “Cada consulta e cada alternativa clicada entre as respostas colabora para um incremento de personalização” (Castro, 2018, p. 180). Na visão do autor, o algoritmo potencializa afinidades e aproxima as semelhanças, afastando opositores e restringindo diferenças, o que pode gerar polarização e radicalização de posicionamentos. Para Miguel (2019), na política, a polarização impacta nas possibilidades de discussão e diálogo entre grupos políticos concorrentes. Além da polarização, o discurso de ódio é constante em plataformas digitais. “Refere-se a palavras que tendem a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou região, ou que têm a capacidade de instigar violência, ódio ou discriminação contra tais pessoas” (Brugger, 2007, p. 118). O discurso de ódio (hate speech) busca desqualificar e inferiorizar pessoas e grupos sociais, afirmam Freitas e Castro (2013).
Para Brugnago e Chaia (2015), a polarização entre esquerda e direita no Brasil se corporificou nos últimos pleitos eleitorais. Lemos e Coelho (2019) inferem que o Facebook potencializa a recusa da participação em discussões e dificulta o respeito pela opinião alheia, com a criação de bolhas.
Experiências participativas online incrementadas por governos e instituições políticas mostram que as expectativas na promoção de discussões online evidenciadas no limiar da tecnologia de comunicação digital não têm se concretizado na prática atual e os dilemas mencionados anteriormente impactam essas iniciativas. Nos estudos de Santini e Carvalho (2019), os resultados apontam que a tecnologia não constitui um obstáculo à participação online, mas sim o poder. Para as autoras, que realizaram revisões de literatura sobre estudos de casos no Brasil e no mundo do uso de plataformas virtuais entre 1995 e 2015, a elite política não demonstra interesse na construção de um ambiente inclusivo, transparente e as iniciativas são descendentes, com nenhuma ou pouca influência nos processos de tomada de decisão. A pesquisa de Alarabiat e Soares (2016) constata que os sites de redes sociais são utilizados para disseminação de informações do que o estímulo à participação nas decisões políticas. Os autores enfatizam que as ferramentas de participação são incorporadas para tranquilizar os cidadãos, falseando a participação. Apesar disso, os cidadãos valorizam a comunicação bilateral com governos, segundo Lovari e Parisi (2015), que investigaram experiências de e-participação no Facebook em 10 páginas de governos italianos. Guillamón et al. (2016) também procuraram mensurar o uso do Facebook no âmbito governamental por meio de pesquisa com 217 páginas de governos italianos e espanhóis. Os autores concluíram que os governos procuram dar transparência a informações públicas, o que possibilita a vigilância.
Na primeira década do século XXI, Boyd e Elison (2008) afirmaram que a participação no Facebook não era motivada para conhecer novas pessoas, mas para manter ou fortalecer a comunicação com contatos já materializados no espaço offline. No aspecto político, estudos recentes mostram que quem já participava da política offline constitui o público que irá também participar no online. Pesquisas de e-participação entre os jovens, como a desenvolvida por Waller (2013) com jamaicanos de 15 a 24 anos, preocupou-se em verificar se o Facebook estimula conversa política e quais fatores inviabilizariam tal ação. A conclusão do autor foi a de que os jovens que já tinham um engajamento cívico e político offline também adotaram a mesma postura no Facebook. Ainda de acordo com Waller (2013), esse site de rede social não fomentou conversas nos jovens jamaicanos considerados apáticos políticos. O principal fator relatado pela juventude para a não participação nesse espaço virtual foi o medo da vitimização política. Já nos estudos de Bode et al. (2014) com jovens entre 12 e 17 anos, o objetivo foi investigar o que os estimulavam para a expressão política em sites de redes sociais e seus efeitos sobre a participação. Os autores constataram que o uso dessas redes incentivou comportamentos políticos, e não os impossibilitou.
Resultado semelhante ao de Waller (2013) foi encontrado por Oser e Boulianne (2020) ao analisar a relação entre a utilização da mídia digital e a participação política. Com mais de 70 mil entrevistados nos Estados Unidos, Bélgica, Canadá, Chile, China, Dinamarca, Alemanha, Israel, Holanda, Coreia do Sul, Suécia, Taiwan e Reino Unido, as autoras verificaram que os sujeitos que já são ativos politicamente são estimulados a participar e que essa relação participação política e mídia digital é durável, ou seja, que ao longo do tempo existe o potencial na utilização da mídia digital e sua colaboração para o aumento da desigualdade na participação política.
Huffman (2017) ressalta que tecnologias virtuais, como o Facebook nas Filipinas, são fortemente cívicas para a promoção da e-democracia. As ações do governo filipino buscaram aprimorar os serviços de governo eletrônico, mas, segundo o autor, não estimularam e nem procuraram ampliar a participação cidadã. Em relação ao compartilhamento de informações e o fator participação, Halpern e Valenzuela (2017) coletaram dados do Facebook e do Twitter durante processo eleitoral no Chile. De acordo com os autores, o compartilhamento político de conteúdo gera a capacidade de ação individual e coletiva nos sujeitos, e isso amplia a participação política. Outra constatação é a de que as pessoas estão mais dispostas a compartilhar conteúdo político no Facebook do que no Twitter.
Uma definição-chave, defendida por Carpentier (2018) e Dahlgren (2018) para a participação, é o engajamento, que requer disposição subjetiva para a prática política e diz respeito à existência de um laço social entre grupos ou pessoas com uma comunidade maior, objetivando seu fortalecimento. Para Dahlgren e Alvares (2013, p. 50, tradução nossa), “se os cidadãos não estão engajados, a democracia torna-se funcionalmente paralisada e potencialmente deslegitimada”. O engajamento em sites de redes sociais constitui uma métrica relevante e pode potencializar visibilidade e alcance de publicações. As ações de curtir, compartilhar e comentar mostram, de certa forma, como as informações são recebidas pelos usuários e é um termômetro do engajamento da página. Existem estudos que buscam identificar quem são os usuários que comentam e leem notícias online, como a pesquisa de Stroud, Duyn e Peacock (2016) nos EUA. Os que comentam notícias afirmam que essa prática propicia expressar opinião ou emoção, especialmente em assuntos sobre a política norte-americana.
Tecer comentários em publicações nos sites de redes sociais constitui uma das métricas para o engajamento. Nessa perspectiva, nosso objetivo é entender como os seguidores do Senado Federal no Facebook interpretaram a votação da Reforma Trabalhista. Na próxima seção, apresentamos uma análise geral sobre a comunicação pública desenvolvida na página do Senado e as categorias construídas a partir dos temas encontrados nos comentários. Em seguida, apresentamos a análise discursiva da categoria escolhida de conversas.
Percurso teórico-metodológico
Adotamos como método a Análise de Discurso, a partir de Gregolin (2020), Orlandi (2012) e Pêcheux (1995), para analisar as práticas discursivas dos comentários e como estes significaram para os seguidores. A construção do corpus e a análise estão intimamente ligadas, segundo Orlandi (2012, p. 63): “decidir o que faz parte do corpus já é decidir acerca de propriedades discursivas”. Portanto, empreendemos uma série de escolhas para a análise desses comentários. Identificamos os elementos estruturantes dos discursos, a utilização de termos e de recursos linguísticos na construção do sentido.
Recordamos que, em uma perspectiva discursiva, o ato de categorizar não é algo natural, mas um trabalho do analista, a partir das questões colocadas pelo problema de pesquisa, das hipóteses, do referencial teórico-metodológico e, por fim, de suas imbricações como sujeito situado em um contexto sócio-histórico e político.
No total, foram analisados 12 comentários, transcritos da mesma forma como foram redigidos na página do Senado Federal no Facebook. Não fizemos as correções linguístico-gramaticais por entendermos que a maneira de edificação das conversas constrói os sentidos pelos usuários.
Em princípio, recordamos que discurso não se restringe a uma troca de informações ou a uma mensagem nas redes sociais, por exemplo. Por conseguinte, o discurso é algo dinâmico, mutável e suscetível às relações sociais e históricas, como esclarece Gregolin (2020).
O discurso tem uma dimensão não somente comunicativa ou imagética, mas também ideológica. Na perspectiva desse artigo, o discurso é um efeito de sentido que brota do cruzamento entre história, sujeito e ideologia, conforme compreendia Pêcheux (1995). Dessa forma, se constrói em espaço de embate entre posicionamentos diferentes, denominados de “formações discursivas”.
Nesse sentido, a teoria discursiva não esgota as análises no espaço das imagens e textos, mas considera o contexto amplo denominado de condições de produção, ou seja, o quadro sócio-histórico e ideológico que o sujeito do discurso está imbricado. Conforme afirma Gregolin (2020, p. 392), é tarefa do analista “investigar as condições complexas (que são, ao mesmo tempo, da ordem da linguagem e da ordem da história) nas quais se realizou um determinado enunciado”. Os comentadores se inscrevem em uma determinada formação discursiva, que constrói efeitos de sentidos a partir dessa posição social.
Recordamos que, nessa rede social, há um processo de hiperconexão entre os usuários que podem realizar processos de interação por meio das ações de “publicar, curtir, comentar e compartilhar”. Todavia, as condições de produção discursiva no Facebook, em razão da lógica dos algoritmos, ocorrem em um processo de aparente fechamento dos usuários em bolhas. Dessa forma, se constrói afinidade apenas entre sujeitos de uma mesma bolha em oposição aos outros que assumem outras posições ideológicas. Dessa forma, a bolha funciona como uma formação discursiva que constrói sentidos de pertencimentos para os usuários. Ao ler comentários semelhantes a seus posicionamentos, os seguidores se motivam mais a produzir discursos semelhantes (Digital News Report, 2017)
É no interior dessas “bolhas” que o sujeito faz interações favoráveis ou desfavoráveis à reforma. Dessa forma, são nesses lugares sociais que os sujeitos interpretam os sentidos a partir da história, da ideologia e dos lugares que ocupam na sociedade.
Na análise discursiva, defende-se o pressuposto da heterogeneidade discursiva, ou seja, há uma necessária interação entre discursos, em razão dos movimentos da memória e da história. Conforme Gregolin (2020), deve-se “analisar discursos a partir do acontecimento discursivo, em sua heterogeneidade – isto é, considerando que as FDs (formações discursivas) são complexas pois os sentidos são instáveis”. Dessa forma, devemos entender que todo discurso é “interdiscurso”, ou seja, se ancora no movimento da memória discursiva. Segundo Orlandi (2012, p. 31), o interdiscurso é o “saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob forma de pré-construído, o já dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra”. Ou seja, pode-se dizer que o interdiscurso é um princípio constitutivo da linguagem, marcado pela presença da “alteridade”, já que não existe discurso sem gênese na história. Conforme Gregolin (2020, p. 391), “não se deve perder de vista o fato de que o discurso acontece sempre no interior de uma série de outros discursos, com os quais estabelece correlações, deslocamentos, vizinhanças”.
Às vezes, é possível reconhecer a presença dessa interdiscursividade pelas marcas materiais nos textos e imagens, tais como: citações, discurso direto, ironias, refutações, paródia, paráfrase, silêncios, entre outros. É, em razão do efeito dessa “memória discursiva” que nós produzimos sentidos no interior de formações discursivas, como veremos nos comentários.
Análise dos comentários
A publicação sobre a Reforma Trabalhista (Figura 1) resultou de uma transmissão ao vivo, com duração de três horas, 35 minutos e 32 segundos, em 11 de julho de 2017, e recebeu 18.490 comentários, segundo o aplicativo Netvizz. A coleta de dados ocorreu em 9 de outubro de 2018. A oferta desse recurso de comunicação, que possibilita uma participação política com interação ao vivo, segundo Dalghren (2018), é revigorante e pode contribuir para reforçar a identidade coletiva dos sujeitos.
Figura 1. Postagem sobre votação ao vivo da Reforma Trabalhista
Fonte: Facebook do Senado Federal
Em relação à forma de escrever e a linguagem expressa nos comentários, podemos inferir que se assemelham ao discurso oral, sem a preocupação com as regras linguísticas disponíveis em livros de ensino gramaticais. Por meio da Análise de Conteúdo, identificamos os temas que foram tratados nas conversas e os agrupamos nas seguintes categorias: menção a parlamentares nas conversas; decepção com a política brasileira; contrários e a favor da reforma; polarização partidária; mobilização; comparação do Brasil com outros países; e pró-intervenção militar. Reiteramos que é no contexto de uma disputa polarizada entre direita e esquerda, de midiatização do combate à corrupção, de luta de classe6 e de crise econômica que se produzem discursos sobre a Reforma Trabalhista.
Pela limitação inerente de espaço neste artigo, optamos por analisar apenas uma categoria, a que se refere à menção a parlamentares nas conversas. Consideramos relevante ressaltar que a palavra que mais apareceu nos comentários foi corrupção, além de adjetivações do termo. O assunto, inclusive, foi mencionado por 63% dos entrevistados de uma pesquisa da FGV/DAPP em 2017 como o mais angustiante. Para Castells (2018), a corrupção é considerada, inclusive, um dos motivos para a eclosão de uma crise de legitimidade política. O termo vergonha, ao se referir à representatividade política, à nacionalidade brasileira, à retirada de direitos trabalhistas e à corrupção também figurou nas conversas. Outra palavra que foi lembrada é escravidão. Devido à repercussão do tema, apresentamos também a análise de alguns comentários a seguir.
Quadro 1. Palavras mais citadas nos comentários dos seguidores
Usuário 1: “Golpistas, traidores estão revogando a Lei Áureaaaaaa!!!! Entreguistasssss, vendidossssssss, traidoressssss!!!!!!” |
Usuário 2: “Hora extra transtorno em banco de horas, 30 minutos para almoço, férias a ser negociado com o patrão, grávida trabalhando em função insalubre...e por aí vai ... Escravidão do caramba” |
Usuário 3: “Hoje tenho vergonha de ser brasileira, de um país tão corruptível.” |
Usuário 4: “se nao bastasse a vergonha dos desvios,das malas de dinheiro...da compra de votos...dde um sub presidente sem representatividade......quero ver se o povo fizer maioria no senado e no congresso......” |
Fonte: Elaboração própria
A memória discursiva é mobilizada na comparação com a escravidão e suas designações, como escravagista, escravista, escravo, como referência a alguns pontos da reforma e ao favorecimento de empresários e parlamentares.
O usuário 1 comparou o momento de aprovação da reforma, com a perda de direitos trabalhistas conquistados ao longo dos anos, com a revogação da Lei Áurea, que simbolizou uma grande conquista ao garantir liberdade aos escravos no Brasil no século XIX. Existe uma conexão metafórica entre essa perda — que poderia ser entendida como um golpe — e o processo escravocrata.
Por vias interdiscursivas, se presentifica o eco discursivo do golpista que, no interior de uma formação discursiva à esquerda, foram os sujeitos que se colocaram favoráveis ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff (2016). As repetições de letras finais e os pontos de exclamação produzem os sentidos de ênfase e dramatização.
O usuário 2 elencou algumas mudanças da reforma e as relacionou como um retrocesso nas questões trabalhistas. Inserido em uma formação discursiva progressista, evidencia a relação assimétrica entre patrões e empregados numa sociedade desigual como a brasileira. Dessa forma, o seguidor polemiza com os pressupostos da reforma, construindo sentidos de resistência.
No comentário do usuário 3, o termo vergonha se conecta, por vias interdiscursivas, à nacionalidade devido aos escândalos de corrupção de políticos; retoma-se, portanto, o discurso crítico ao ser brasileiro. Assim, por efeitos da memória, retoma-se a imagem do “jeitinho brasileiro” que circula no imaginário e em diversos textos sobre a identidade nacional.
Já o usuário 4 rememora alguns acontecimentos de corrupção que foram marcantes no País, como o de um deputado que foi filmado pela Polícia Federal após receber uma mala de dinheiro. O “sub”, que antecede a palavra presidente, sinaliza falta de legitimidade do governante na época, Michel Temer (MDB), que assumiu o cargo após o impeachment7 de Dilma Roussef (PT). Esse prefixo denota o sentido de inferioridade do chefe de Estado, ecoando interdiscursivamente os sentidos de deslegitimidade do político, acusado de golpista por sujeitos filiados a ideologias progressistas.
Quadro 2. Menção a parlamentares nas conversas
Usuário 5: “E, com essa reforma, sr Magno Malta, teremos melhorias no sistema empregatício do Brasil? Poupe-me! Vocês >>> Roubaram ontem, roubam hoje e sempre roubarao! Pense mais no povo e pare ficar se alfinetando!” |
Usuário 6: “Senadoras Guerreiras, muito respeito e orgulho pela postura honrosa de vocês pela defesa dos direitos dos trabalhadores, em especial dos direitos das mulheres!” |
Usuário 7: “Senador Eduardo Braga, tirar direitos de trabalhadores alegando que vai gerar mais empregos, é uma mentira destes senadores alinhados com este governo golpista, muito bem!” |
Usuário 8: “olha só Collor bosferando. Fico me perguntando, como e em que situação um ser depois de ser deposto ainda surgir no cenario federal como senador.” |
Fonte: Elaboração própria
A personalização foi um traço característico na maioria dos comentários (quadro 2), com direcionamento das opiniões a um senador (a) específico (a), a partidos ou a um grupo de senadores. Para chamar atenção do interlocutor, notamos o uso do vocativo, separando o nome do senador (a) por meio de vírgulas do restante da frase.
Podemos apontar um exemplo de personalização que avança para a totalização na voz do usuário 5, que dirige seu comentário a determinado senador. O emprego da palavra vocês e do verbo “roubar” no plural generaliza o posicionamento sobre corrupção a todos os outros. O emprego do advérbio de tempo “sempre” reforça a ideia de que a corrupção não tem fim e constrói o discurso de imutabilidade negativa para a política.
A ideia de totalidade e universalidade também está expressa no comentário do usuário 6, ao se referir a senadoras guerreiras. Mobiliza-se a metáfora da guerra que constrói a imagem das mulheres como desbravadoras, empoderadas e condutoras. O não dito no discurso é que a ação das senadoras que se posicionaram contra as políticas de precarização do trabalho das mulheres.
No comentário do usuário 7, a adoção da palavra “mentira” constrói o efeito de sentido de descredibilidade da política e se conecta, interdiscursivamente, com a falta de legitimidade do chefe do Executivo, por meio do termo “golpista”.
O comentário do usuário 8 mobiliza efeitos iônicos a usar um termo inexistente no dicionário, bosferar8, ao se referir ao discurso na tribuna do Senado de Fernando Collor de Melo (Pros- AL). O texto remonta a fatos passados da história brasileira e à memória, à relação interdiscursiva por meio da frase “o brasileiro tem memória curta”, ao questionar como esse senador conseguiu voltar à vida política após ter sofrido impeachment em 1992.
Quadro 3. Comentários sobre representatividade parlamentar e renovação
Usuário 9: “A maioria só trabalha pra defender os interesses de seus amigos empresários. Vamos anotar os nomes de que voltar a favor e não eleger nunca mais!” |
Usuário 10: “Foi a democracia ou o dinheiro quem elegeu essas criaturas?” |
Usuário 11: “Senadores não representam o povo brasileiro!! Infelizmente, o povo está pagando o preço caro do voto inconsciente que muitos tomam.” |
Usuário 12: “Serão todos demitidos em 2018 .povo tem esse poder no voto” |
Fonte: Elaboração própria
No último conjunto de comentários, encontramos também discursos de não representatividade dos políticos aos interesses do povo brasileiro e de renovação do Senado Federal. Essa discursividade é possibilitada por um contexto histórico de descrença na representatividade política que se agudizou a partir das manifestações de junho de 2013 e culminou com o afastamento da presidenta Dilma, em 2016 (Souza, 2017).
Os comentários do quadro 3 mostram a insatisfação com os senadores e a importância da memória para aprimorar a escolha dos eleitos no futuro. A frase “não eleger nunca mais” e o uso do advérbio “nunca” e do verbo “anotar”, ditas pelo usuário 9, apontam a relevância da memória e da escrita como registro para o não esquecimento. Na materialidade discursiva em análise, aparece interdiscursivamente a relação entre capital x trabalho, ilustrando assim assimetria de interesses do empresariado, adjetivado como “amigos dos políticos”. No comentário do usuário 10, retoma-se a interdiscursividade que questiona a eleição de parlamentares e o atendimento a interesses privados e econômicos, como o do empresariado, retornando sentidos históricos de resistência e da luta de classes.
A discussão sobre escolhas políticas “mal feitas” e o descaso pelos interesses da coletividade é retratado na frase “preço caro do voto inconsciente” (usuário 11). Esse tipo de voto poderia ser explicado por problemas relativos à formação política, educacional e ao grau de informação que os cidadãos têm. À época, a desinformação pululava no espaço virtual, o que poderia afetar as decisões de voto.
O usuário 12 lembra que o voto empodera os eleitores e é considerado um dos principais instrumentos que os cidadãos têm para realizar uma mudança no contexto político. O termo “demitidos”, empregado numa rescisão contratual de trabalho, é deslocado discursivamente para o âmbito da política e, dessa forma, dá sentido aos não eleitos, exemplificando o processo de deslizamento de sentido em que uma palavra é deslocada de um contexto para significar em outra situação comunicativa.
Considerações finais
A votação da Reforma Trabalhista foi um acontecimento social e histórico relevante e chamou atenção da classe trabalhadora, empresarial e de pessoas que não faziam parte desses dois grupos. Esses sujeitos se colocaram em disputa em torno das mudanças a partir de seus lugares sociais e ideológicos, ou seja, em diferentes formações discursivas e, também, pelo retorno de imagens presentes na memória sobre a CLT e as históricas lutas trabalhistas.
A partir do instante em que o Senado Federal disponibilizou uma transmissão ao vivo sobre a votação, criou-se uma oportunidade para a participação e o diálogo entre os seguidores no Facebook. Utilizamos os métodos de Análise de Conteúdo e Análise do Discurso para analisar os dados coletados pelo aplicativo Netvizz.
O tempo verbal dos comentários foi o presente, mas encontramos conversas que utilizaram o pretérito e o futuro. Notamos que a linguagem escrita dos comentários se aproximou do discurso oral, sem preocupação com regras linguísticas gramaticais. Uma insatisfação com a política brasileira foi percebida na maioria das conversas, reforçada pelas condições de produção: crise política pós-impeachment e pela intensa midiatização do tema corrupção pela chamada Operação Lava Jato (2014-2021).
O uso de palavras pejorativas e xingamentos, compostos por acentuação exclamativa, repetição de letras e frases em caixa alta revelaram sentimentos de revolta e descontentamento com a aprovação da reforma. Uma das palavras mencionadas nas conversas foi corrupção. Termos correlatos, como “corruptos, ladrões, golpistas, traidores, mentirosos”. Além disso, “vergonha” e “escravidão” foram expressas nos comentários. Esses enunciados foram construídos por sujeitos inseridos em uma formação ideológica distinta do empresariado e dos defensores da economia neoliberal.
Os comentários da publicação sobre a votação da Reforma Trabalhista, transmitida ao vivo pelo Facebook do Senado Federal, refletiram o momento político pós-impeachment do Brasil no segundo semestre de 2017. É importante ressaltar que esse acontecimento histórico colocou em polos opostos discursos e sujeitos distintos: os apoiadores foram categorizados como “golpistas” pelos críticos ao afastamento de Dilma Rousseff. Identificamos um clima de polarização, a insatisfação com o governo, as opiniões de apoio e repúdio pelos votos dos senadores, a discordância de pensamentos sobre a reforma e a descrença na política brasileira face à corrupção que despontaram entre os temas discursivos debatidos. Dessa forma, percebemos a circulação das disputas ideológicas realizadas no e pelo discurso contrário à Reforma Trabalhista.
Diante do otimismo atribuído às tecnologias digitais no início desse século e tecendo o olhar para 2021, os problemas gerados nos ambientes virtuais (os mais recentes como a propagação de fake news, a regulação de conteúdo pelos algoritmos, os discursos de ódio e a polarização política) faz-nos suscitar reflexões sobre até que ponto é possível ampliar ou adquirir conhecimentos nesses locais. Pelas análises empreendidas, verificamos que não existiu um debate produtivo nos comentários, pois o tom de raiva e xingamento tomou conta desse espaço. Experiências positivas foram relatadas nas discussões teóricas deste artigo, mas também há práticas que confirmam que iniciativas de participação estão longe do ideal democrático.
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3 Recuperado de https://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2018/06/1971978-economia-puxa-reprovacao-a-temer.shtml.
4 Recuperado de https://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2017/05/1880398-maioria-rejeita-reforma-trabalhista.shtml.
5 Recuperado de https://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2017/11/reforma-trabalhista-e-rejeitada-por-81-dos-brasileiros-diz-pesquisa-cut-vox-populi/.
6 A análise de discurso compreende que a mediação entre ideologia e linguagem se constrói sob a perspectiva do materialismo histórico. Dessa forma, a partir da leitura althusseriana, Michel Pêcheux e seus discípulos, como Eni Orlandi, constroem os alicerces teóricos dessa disciplina de “entremeio” (Orlandi, 1996).
7 Veremos que há resistência ao uso do termo para nomear o afastamento da presidente da República em 2016.
8 Acreditamos que houve um deslizamento de sentido do verbo vociferar, que tem seu sentido dicionarizado como bradar aos berros. Essa falha intencional ou não construiu a significação irônica, reforçando a crítica.