“A Dilma é feia!”: insulto viril e humor cordial na constituição estética do “cidadão de bem”

 

“Dilma is ugly!”: Manly insult and cordial humor in the aesthetic constitution of the “good citizen”

“Dilma es fea!”: insulto viril y humor cordial en la constitución estética del “ciudadano de bien”

 

e-ISSN: 1605 -4806

VOL 26 N° 113 enero - abril 2022 Monográfico pp. 106-122

Recibido 10-02-2022 Aprobado 28-04-2022

 

Leandro Aguiar

Brasil.

Universidade de Brasília

aguiarff@hotmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9324-1214

 

Liliane Machado

Brasil.

Universidade de Brasília

lilianemmm@gmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3143-4680

 

Resumo

O recrudescimento da extrema direita no Brasil recolocou em discussão questões referentes a valores tradicionalistas da pátria e da família, os quais foram referenciados nos protestos de 2015 e 2016, favoráveis ao impeachment da presidente Dilma Rousseff. Nosso objetivo neste artigo é analisar como estes valores foram performados nestas manifestações e apontar o filão histórico ao qual eles se filiam e dão prosseguimento. Analisaremos três imagens dos protestos, que contém ataques virulentos ao governo e à pessoa de Dilma Rousseff e ao Partido dos Trabalhadores. Nossa hipótese é que esses imaginários, tributários das noções tradicionalistas de brasilidade, foram traduzidos por meio da performance do patriotismo conservador, congregando elementos reconhecíveis à maioria dos brasileiros. Tal performance deu o tom dos protestos, aí residindo sua força persuasiva perante boa parte da população. Nosso aporte teórico-metodológico baseia-se nas abordagens críticas de Freyre e Buarque de Holanda (2013; 1995) sobre a formação nacional do Brasil e nas proposições de Querè e Bazcko (2005; 1985), que afirmam que a constituição dos imaginários na contemporaneidade se processa desde o interior do aparato midiático. Em nossa análise, após observar a recorrência de representações sociais referentes à virilidade e ao patriarcado no imaginário da extrema direita, tratamos do impacto micropolítico da crise institucional da democracia, que tem no ressentimento classista um dos seus motores fundamentais.

Palavras-chaves: Protestos antipetistas; impeachment de Dilma Rousseff; estética reacionária; imaginário social.

Abstract

The resurgence of the far right in Brazil has brought issues related to traditionalist values of the motherland and family into discussion, which were referenced in the protests in favor of the impeachment of President Dilma Rousseff. Our objective is to analyze how these values were performed in these manifestations and to point out the historical thread to which they adhere and continue. We will analyze three images of the protests, which contain virulent attacks on the government and person of Rousseff and the Workers Party. Our hypothesis is that these imaginaries, tributaries of traditionalist notions of Brazilianness, were translated through a certain performance of conservative patriotism, bringing together elements recognizable to most Brazilians. This performance set the tone for the protests, and therein resides its persuasive force before a large part of the population. Our theoretical-methodological contribution is based on the approaches of Freyre and Buarque de Holanda (2013; 1995) on the national formation of Brazil and on the propositions of Querè and Bazcko (2005; 1985), who claim that the constitution of the imaginaries in contemporaneity it takes place from within the media apparatus. In our analysis, after observing the recurrence of social representations referring to virility and patriarchy in the imagination of the far right, we venture observations on the micropolitical impact of the institutional crisis of democracy, which has class resentment as one of its fundamental drivers.

Keywords: Anti-PT protests; impeachment of Rousseff; reactionary aesthetics; social imaginary;

Resumen

El recrudecimiento de la extrema derecha en Brasil volvió a poner en foco cuestiones referentes a valores tradicionalistas de la familia, los cuales fueron referenciados en las protestas de 2016, favorables al impeachment de la presidente Dilma Rousseff. Nuestro objetivo es analizar como estos valores fueron representados en estas manifestaciones y apuntar la línea histórica a la cual se vinculan. Analizaremos imágenes de las protestas, que contienen ataques al gobierno, a la persona de Rousseff y al Partido de los Trabajadores. Nuestra hipótesis es que estos imaginários, tributários de las nociones tradicionalistas de brasilidad, fueron traducidos por medio de la representación del patriotismo conservador, congregando elementos reconocibles para la mayoría de los brasileños, residiendo ahí su fuerza persuasiva frente a parte de la población. Nuestro aporte teórico-metodológico se basa en los abordages de Freyre y Buarque de Holanda (2013; 1995) sobre la formación nacional de Brasil y en las proposiciones de Querè y Bazcko (2005; 1985), que afirman que la constitución de los imaginários en la contemporaneidad se procesa desde el interior del aparato mediático. Después de observar la recurrencia de representaciones sociales referentes a la virilidad y al patriarcado en el imaginário de la extrema derecha, formulamos conclusiones sobre el impacto micropolítico de la crisis de la democracia, que tiene en el resentimiento clasista uno de sus motores fundamentales.

Palabras-claves: Protestas antipetistas; impeachment de Dilma Rousseff; estética reaccionária; imaginário social;

 

Introdução

Floriano Peixoto e Hermes da Fonseca, militares reacionários que se sucederam na liderança da República recém instaurada no Brasil no século XIX; Plínio Salgado, fundador do partido Integralista Brasileiro, de assumida inspiração fascista; os ditadores que se sucederam em Brasília de 1964 a 1982, e depois deles os conservadores Sarney, Collor, Aécio Neves com os antipetistas que exigiram a saída de Dilma Rousseff à tira colo, e então Temer e, por fim, o extremista de direita Jair Bolsonaro. E em escala regional, incontáveis governadores, senadores, deputados, prefeitos, vereadores, juízes, promotores, policiais, coronéis e caudilhos. Em diferentes épocas e contextos, estes homens públicos afirmaram agir em defesa da tradicional família brasileira. Família composta, é claro, pelos autoproclamandos cidadãos de bem.

Em diversas oportunidades, a família tradicional organizou-se em think tanks e agremiações políticas e religiosas, e mais de uma vez ocupou as ruas para expor suas noções moralistas da vida em sociedade. Que agrupamentos são estes que se pretendem representantes exclusivos da família brasileira, pretensamente monopolizando seus significados e o direito de falar em nome deles? De que se aproximam, do que se afastam, e onde traçam a linha que os separa daqueles que não seriam “de bem”, constituindo uma ameaça ao seu modo de organização familiar, social e econômico?

Foi amparado nesse espírito tradicionalista que irrompeu nos últimos anos uma estética de desprezo aos valores democráticos nas redes cibernéticas e nas ruas do Brasil, o que abriu espaço para o restabelecimento de uma vertente política reacionária que por mais de três décadas havia sido relegada ao ostracismo institucional – mas que, cuidadosamente, não foi extirpada – pela transição da ditadura para a democracia (tutelada pelos ex-ditadores) que resultou na Constituição brasileira de 1988.

Embora em momento algum os representantes dos ideais reacionários tenham deixado de exercer influência nos centros de poder brasileiros – afinal, muitos congressistas do extinto partido governista, a ARENA, sobreviveram aos seus generais em partidos direitistas como o PFL e o PDS –, do ponto de vista cultural, seus apologistas perderam, durante a abertura política nos anos 1980, o que hoje seria chamado de “guerra de narrativas”. Isso porque a redemocratização brasileira representou também uma expansão dos horizontes em torno das ideias de povo e nação: as mulheres conquistaram crescente força de mobilização, atuando de forma decisiva, para a aprovação da lei do divórcio; a partir de publicações alternativas como O Lampião da Esquina e de marcante presença no mercado fonográfico, nas pessoas de Ney Matogrosso, Cazuza, Ângela Ro Ro e outros, os homossexuais deixaram o submundo a que estavam condenados; os povos indígenas e o movimento negro influenciaram na redação de alguns dos trechos mais emblemáticos da Constituição; apoiado pela MPB de Chico Buarque e Milton Nascimento, o movimento pelas Diretas Já gestou dois dos partidos mais importantes da nossa história recente: o PT e o PSDB; e nas redes de TV, em humorísticos que ocupavam o horário nobre (Casseta&Planeta, TV Macho, Os Trapalhões) o moralismo dos generais “defensores da família” era diariamente ridicularizado.

Assim, movimentos como a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, antes influente junto ao governo, caíram no ostracismo. Mas o que houve foi um recuo tático, e em reação a concepções progressistas, ideias e imaginários conservadores reapareceram, primeiro nos espaços virtuais e midiáticos, depois nos protestos contra Dilma Rousseff de 2015-2016 e, por fim, na política institucional. Retrógrada, moralista e entusiasta da violência como “política” de segurança pública tal qual seus antecessores da época da Guerra Fria, a ultradireita restabeleceu-se no Brasil com o apoio não só da elite e da classe média, mas de setores das classes empobrecidas, como se confirmou na eleição presidencial de 2018, vencida por Bolsonaro.

Nosso objetivo é compreender algumas questões relativas aos valores e imaginários postos em jogo pelos autoproclamados “cidadãos de bem”. Partiremos da análise de três imagens dos protestos em favor do impeachment de Rousseff que contêm críticas virulentas ao governo e à pessoa da então presidenta. Nossa hipótese é que os imaginários performados por estes manifestantes, constituidores de certas noções tradicionalistas de “brasilidade” fortemente calcadas na supremacia dos homens ante as mulheres, deram o tom de boa parte dos protestos antipetistas, o que ajuda a compreender a força persuasiva dessas manifestações para parcelas expressivas da população.

Marco referencial

Por muito tempo, os estudos sobre estética concentraram-se na compreensão do que era considerado belo. Mas veio o século XIX, e a atenção desse ramo da filosofia voltou-se para a política e sua violência fundante. Não por diletantismo: quando Marx, em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (2006), disseca a ascensão do sobrinho de Napoleão, ele observa que o apelo de Luís junto ao lumpesinato era antes de tudo estético; sua retórica e a maneira como se portava dialogavam com preconceitos em torno dos quais construiu-se certa noção do que era ser francês. Poder, ideologia, cores, ritmos e ênfases fundem-se na figura de Napoleão III, e é impossível compreender um desses aspectos sem refletir sobre os demais.

Algo semelhante empreendeu Arendt em sua autópsia do III Reich. Em As Origens do Totalitarismo, a filósofa investiga a atração que Hitler exerceu sobre o que ela chamou de “ralé” (1975, p. 159) – refugo da burguesia fruto da derrota na 1a Guerra, esmagado entre o proletariado e a elite –, levando em conta o afago psíquico que a retórica do führer ofereceu frente à decadência das estruturas econômicas e sociais do país. Sem tradição de participação na vida republicana, a ralé viu na rejeição ao diálogo e às contradições que a política encerra o principal atrativo ao nazismo, o que Arendt relaciona ao gozo da anulação do eu em nome da liderança mítica e à pulsão de morte que essa entrega satisfaz. Às diferenças inerentes à democracia, opôs, não “porque seja estúpida ou perversa, mas porque essa fuga lhe permite manter um mínimo de respeito próprio” (1975, p. 159), o recrudescimento de mitologias acerca da raça e da nação; violência simbólica e material, ódio e cinismo, tornaram-se métodos naturais do que ela entendia por ação política.

Seguindo a deixa de Bruno Latour (1994), para quem os fenômenos sociais são aquilo que outros conectores (economia, tecnologia, ideologia, uma história social etc.) amalgamam, deduz-se que a estética é a forma como esse amálgama apresenta-se aos sentidos: o “cidadão de bem”, sua “família tradicional” e o recrudescimento da extrema direita, portanto, não podem ser compreendidos sem se ter em conta a estética de um Brasil imaginado a que dão vazão.

Para Benedict Anderson, a efetividade de ideias como as de “nação” ou “povo” depende de que os que a elas aderem “tenham muita coisa em comum, e também que tenham esquecido muitas coisas” (2008, p. 32). De fato, o que as manifestações pelo impeachment colocaram em cena foram também disputas em torno da memória: a comunidade imaginária, o Brasil ali feito em performance, trouxe consigo amnésias características que se expressam, por exemplo, no esforço da direita online em negar as evidências das desigualdades de gênero e suas violentas consequências, taxando de “feminazis” quem questiona seus discursos1.

Outra noção dos estudos culturais ingleses é válida para a compreensão dos acontecimentos midiáticos e políticos: as estruturas do sentimento. Raymond Williams descreveu estas estruturas como “as categorias que organizam a consciência empírica de um determinado grupo social”, dando às suas expressões “sua unidade, seu caráter estético específico” capazes de nos revelar “o grau mais elevado possível da consciência” desse grupo (1967, p. 15).

É aí que a performance, descrita por Zumthor (2007, p. 9) como “momento decisivo em que todos os elementos cristalizam em uma e para uma percepção sensorial”, adquire função central na compreensão das estruturas do sentimento do “cidadão de bem”. Por meio das performances nas redes e nos protestos de rua estas estruturas, antes dispersas e em estado potencial, adquiriram corpo e articularam discursos: a performance “aparece como uma ‘emergência’”, explica Zumthor, atualizando “virtualidades mais ou menos numerosas, sentidas com maior ou menor clareza” (2007, p. 9) no corpo social.

Assim a performance, prossegue o autor2, “realiza, concretiza, faz passar algo da virtualidade à realidade” (2007, p. 9). Parafraseando outra vez Benedict Anderson, performou-se nas ruas, em 2015-16, um Brasil imaginado, o que “implica e comanda uma presença, uma conduta, um Dasein comportando coordenadas espaço-temporais e fisiopsíquicas concretas, uma ordem de valores encarnada em um corpo vivo” (2008, P. 16). Estes “enunciados performativos”, seguindo agora o pesquisador Carlos Mendonça, nasceram “atravessados por saberes específicos, configurados a partir de uma ética e uma estética própria” (2018, p. 4).

E também por um conjunto de materialidades, acrescentaria André Brasil. Pois a subjetividade moderna, analisa ele, faz-se cada vez mais como exterioridade mediada por aparelhos eletrônicos, constituindo-se “no ato mesmo de sua publicização” (2010, p. 17). De modo que as imagens que circulam entre nós têm ressaltada sua dimensão performativa: “não estamos no domínio da pura representação, mas da representação tornada performance, da performance tornada jogo e, por fim, do jogo generalizado como estratégia de gestão” (2010, p. 17).

Metodologia

Como encarar tal performance que, deliberadamente, mais confunde do que explica? Para André Brasil, compreender o apelo das imagens que irrompem nos meios digitais demanda identificar não apenas quais poderes “emolduraram tal visibilidade e por meio de quais estratégias” (2010, p. 17), mas descobrir o que estas imagens pretendem ocultar, seus “resíduos impensáveis, os dejetos intratáveis, os gestos invisíveis” (2010, p. 17).

Santaella mostra um dos caminhos que leva a tais resíduos. “O mundo das imagens se divide em dois domínios”: o das imagens materializadas, representações visuais coletivamente aceitas (desenhos, pinturas, fotografias, imagens televisivas etc); e o de nossas imagens internas (fantasias, esquemas mentais, sonhos, delírios). Os dois não existem separadamente, estando ligados já em sua gênese: “não há imagens como representações visuais que não tenham surgido de imagens na mente daqueles que as produziram, do mesmo modo que não há imagens mentais que não tenham origem no mundo concreto dos objetos visuais” (١٩٩٧, p. ١٥).

Também para Phillipe Dubois as características essenciais das imagens devem ser procuradas “não no resultado, mas em sua gênese” (1993, p. 33). É preciso ter claro que a imagem é índice de algo, e que “tudo o que chama atenção é um índice. Tudo o que nos surpreende é um índice, na medida em que assinala a junção entre duas posições da experiência” (1993, cit. por Pierce, p. 39). Esse traço indiciário não apenas atesta que algo aconteceu (ele não só mostra um sujeito indignado erguendo um cartaz contra o governo), “mas, mais dinamicamente ainda, designa” - dá um nome, fazendo o nomeado passar da virtualidade à realidade. Por isso os protestos antipetistas são tão centrais para a compreensão da cultura reacionária que vem reconfigurando a paisagem política brasileira: deu-se, nas ruas, um nome ao imaginário tradicionalista – e assim o “cidadão de bem” ganhou concretude.

Bronislaw Baczko notou que toda a forma de poder, o poder político especialmente, produz “um sistema de representações que simultaneamente traduz e legitima a sua ordem” (1985, p. 9). Com efeito, estes signos concebidos como realidades, fusão de verdade e normatividade, informações e valores, operam como verdadeiros guardiões do poder.

“A ideologia engloba as representações que uma classe social dá de si própria, das suas relações com as classes suas antagonistas e da estrutura global da sociedade”, diz Bazcko (1985, p. 10). É por meio dessas representações que uma determinada classe “exprime aspirações”, se justifica moralmente, “concebe o passado e imagina o futuro” (1985, p. 10). As lutas pelo poder passam necessariamente pelo campo da representação, já que o social é produzido por “uma rede de sentidos, marcos de referência por meio dos quais os homens se comunicam, se dotam de uma identidade coletiva e designam suas relações com as instituições políticas” (1985. p. 12). A disputa pela hegemonia na construção dos imaginários, enfim, é também estética.

Passamos agora à exposição e análise de três fotos dos manifestantes nas paradas antipetistas. Para preservar suas identidades, uma tarja foi inserida nos rostos3. Como a intenção é compreender a performance do “cidadão de bem”, o critério para a seleção das imagens é situacional: os três cliques se deram in loco, no meio das manifestações, não se tratando de panorâmicas que abarcam as multidões. Além disso, as três fotos, que circularam em sites jornalísticos, captam manifestantes que posaram voluntariamente, não se tratando de “flagrantes”. Os gestos, sorrisos, a seriedade ou irreverência dos fotografados, a maneira como performaram sua revolta e sua brasilidade, foi negociada com os fotógrafos – ressalvando que se eles quiseram se fazer ver de determinada maneira, a câmera sempre guarda a capacidade de captar o imprevisível (Dubois, 1993).

Em seguida, em um esforço para encontrar o fio genealógico das performances dos protestos antipetistas, retomaremos alguns aspectos de um dos imaginários sociais fundantes de certa cultura política brasileira, o da “família tradicional”, erguido em torno da figura patriarcal e que reúne em si valores como a virilidade e a submissão das mulheres ao jugo masculino.

Descobertas e discussão

Imagem 14 – Protesto em Belo Horizonte, 15 de março de 2015

Imagem 25 – Protesto em São Paulo, 12 de abril de 2015

Imagem 36 – Protesto em São Paulo, 15 de março de 2015

Vários elementos reincidem nas imagens: o humor jocoso, a festa popular, símbolos nacionais e cívicos misturados aos símbolos futebolísticos, agressividade masculina, atributos distintivos de classe, imaginários relacionados ao feminino e ao masculino. Com maior ou menor sutileza, estes elementos, cristalização sensível da formação social, econômica e cultural da sociedade brasileira, destacam-se, unificados no que Sodré e Paiva chamam de “teatro simbólico da festa” (2006, p. 52).

Na primeira imagem, um homem branco de meia idade aparenta disfarçar um sorriso ao erguer acima da própria cabeça uma cartolina branca, que, em tinta verde, declara: A DILMA É FEIA!. Manifestantes como este, encarados majoritariamente pela mídia brasileira no máximo como um piadista de mal gosto, reverberam na verdade imaginários sociais seculares em torno dos quais ergueu-se certa ideia de brasilidade. É sobre estes imaginários, e as culturas políticas que deles decorrem, que nos basearemos para a análise das representações presentes nessa e nas demais imagens que compõem nosso corpus.

O historiador Rodrigo Pato Sá Motta define a cultura política como uma série “de valores, tradições, práticas e representações partilhada por determinado grupo, que expressa uma identidade coletiva e fornece leituras comuns do passado, assim como inspiração para projetos políticos direcionados ao futuro” (2009, p. 21). A cultura política de um país, de um partido ou de uma classe social – que pode ser mais ou menos democrática, amiga ou não da cidadania, pacifista ou belicista etc – está intimamente ligada à imaginação social; na verdade, a imaginação social é o lugar mesmo em que ela fecunda e estrutura suas práticas. É neste terreno que parte relevante da disputa política acontece; mas como? Para Sá Motta, por intermédio de “representações que configuram um conjunto que inclui ideologia, linguagem, memória e iconografia”, mobilizando “mitos, símbolos, discursos, vocabulários e uma rica cultura visual” (2009, p. 21).

Tornemos à primeira imagem. Ao lado do senhor revoltado, porém alegre, vemos um rapaz envolto com a bandeira do Brasil que sorri e, com os dedos, aponta para a cartolina, prefigurando a arminha bolsonariana, gesto com os dedos simulando uma pistola e que seria fartamente explorado nas eleições de 2018. Ele usa óculos escuros, e em um dos punhos ostenta um relógio prateado que aparenta ser caro. No plano anterior, uma garota de pele clara levanta a cabeça e sorri também; atrás dela, outro homem de verde está sorridente – o clima geral é de indignada alegria. Mais atrás, vê-se outros manifestantes auriverdes, e, ao fundo, a varanda de um sobrado, novamente na cor verde: trata-se de um restaurante no bairro belo-horizontino da Savassi, repleto de boutiques, boates, bares e cafés.

É em acontecimentos midiáticos como as paradas antipetistas, defende Querè (2005), que tensões recalcadas sob o tecido social se esgarçam. Eles rompem com a normalidade, descortinam sentidos, falam da nossa experiência cotidiana e expõem as condições e contradições de sua irrupção na história. Para tanto, acionam memórias, imaginários e tradições, e baseados no que os precede visam a provocar uma reação no presente. De fato, os protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff colocaram em cena, por meio de um jogo performativo que incluiu a mídia, disputas simbólicas – com tremendas consequências materiais, como atestariam os anos seguintes – presentes no seio da sociedade brasileira e que revelam anseios, medos e rancores de classe, gênero e raça.

Fator determinante para a eclosão dessas disputas e para a forma como elas se expressam é o baixo grau de desenvolvimento de uma cultura democrática no Brasil7, o que tem sido sistematicamente dificultado por traços da formação nacional que se deixaram ver em performance nos últimos anos. Esta performance busca naturalizar seu sectarismo, amparando-se em imaginários sobre a ideia de povo e nação.

Esta constatação é o ponto de partida da moderna sociologia brasileira, que tem em Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, um de seus marcos. Publicado em 1933, o autor propõe-se a investigar as construções imaginárias e a reafirmação simbólica desse jogo de poder, bem como suas consequências no país que então se industrializava. É um fato que a obra encerra deslizes que apontam para a posição privilegiada que Freyre ocupava na sociedade – ele era herdeiro de uma rica família pernambucana, e em mais de um momento demonstra saudosismo quanto a alguns aspectos da convivência entre senhores e escravizados. O que não invalida o argumento central de sua obra:

A família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado nem nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVI o grande fator colonizador no Brasil, o capital que desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos, bois, ferramentas, a força social que se desdobra em política, constituindo-se na aristocracia colonial mais poderosa da América. (Freyre, 2013, p. 40, grifo nosso)

Não se trata, é certo, de qualquer família, mas da família caucasiana, cristã, obediente a um patriarca que via na senzala seu estoque de mão de obra e um prostíbulo pessoal – e é dessa violência fundante que surge a miscigenação tantas vezes assinalada pelos adoradores da “brasilidade”. Nesta família, a jovem era desposada cedo, entre os 12 e 16 anos, e seus rebentos, quando tinham a sorte de nascerem machos, eram comemorados como herdeiros do pai e introduzidos ainda no final da infância aos jogos sádicos das senzalas, ao passo que as moças, diz Freyre, viviam “em isolamento, tendo por companhia escravas passivas; sua submissão diante dos homens, a quem se dirigiam com medo, talvez constituíssem estímulos poderosos ao sadismo das sinhás” (2013, p. 45). Em um resumo das peculiaridades dessa sociedade que gravitou em torno da senzala e da casa-grande, Freyre enumera “o patriarcalismo escravocrata e polígamo”, parte da explicação para os atuais e assustadores números de mulheres assassinadas por homens no Brasil anualmente; o gosto pelo ócio e pelas “sinecuras republicanas”, visível ainda hoje na corrupção persistente em variados níveis nos governos; e o “sadismo do mando, disfarçado em princípio de autoridade ou defesa da ordem”, o que os desmandos do poder estatal nas periferias do país tristemente atualiza ano após ano.

Cada um desses aspectos, somados e assimilados pelas leis e instituições, caracterizam certa cultura política nacional e são sedimentados por uma densa acumulação imagética: da produção pictórica de Debret, que no século XIX escolheu por tema a escravidão na cidade do Rio de Janeiro, à Tropa de Elite, filme nacional de 2007 que trata do combate ao tráfico de drogas, passando pelos programas policialescos à la Datena, na TV Bandeirantes, aprendemos que a violência contra os negros, no ambiente doméstico ou na praça pública, nada mais é que parte integrante do cotidiano brasileiro.

No que tange às mulheres, seja a Mulata Assanhada, cantada por Ataulfo Alves, “a menina que vem e que passa”, estrofe da música Garota de Ipanema, de Vinicius de Moraes e Tom Jobim ou Vai Malandra, de Anitta, são expressões da música popular que promovem o corpo das brasileiras como algo a ser admirado. Não pretendemos sugerir que a bossa nova, o samba, o funk ou determinados artistas e cineastas devam ser descartados sob o rótulo simplista de “racista” ou “machista”; ressaltamos, entretanto, que a produção cultural dialoga com as representações sociais8 presentes em uma determinada sociedade, estando impregnada dos imaginários nela inscritos.

Os brados de moralistas da estirpe de um Oscar Maroni9 nos atos da Avenida Paulista e a maneira como se representou a Rousseff em cartazes e bonecos infláveis, em que se assinalava sua presumida raiva, fealdade e mal humor, reverbera essa imaginação patriarcal da história. “Negou-se tudo que de leve parecesse independência” às mulheres, escreveu Freyre, “até levantar a voz na presença dos mais velhos” (2013, p. 271), e não por menos muitas das críticas à presidente diziam respeito ao seu trato tido como “insuportável” para com ministros e congressistas (quase todos homens), já que insubmisso. Nos protestos antipetistas, Rousseff incorpora o oposto do que se espera da mulher brasileira.

Um protótipo exagerado e satírico, porém sincero do que se espera da “mulher perfeita” no Brasil se vê na na segunda imagem. Duas jovens magras, de pele clara, maquiadas e portando óculos escuros, uma com o longo cabelo negro alisado e que segura a bandeira brasileira, a outra com o cabelo igualmente liso, porém tingido de louro, posam para a foto protestando contra o governo com o dorso e os seios a mostra, e os mamilos devidamente ocultados. A nudez parcial e os cartazes feitos a mão, além de expressar indignação pretendem a um efeito humorístico. Um homem com a cabeça raspada e a bandeira brasileira pendurada na gola da blusa, lembrando um babador gigantesco, fotografa ou filma com seu celular a passagem das duas mulheres; outro homem mais velho, vestido com o uniforme da seleção brasileira, sorri em aprovação ao vê-las passar.

Com aponta a cientista política Daniela Rezende, mesmo após as muitas mudanças pelas quais o estado brasileiro passou ao longo do século XX, algo em sua estrutura patriarcal manteve-se intocado, ou, antes, se atualizou para perdurar. O patriarcado, enfim, trata-se “não apenas de uma forma de dominação tradicional, datada historicamente e fadada a desaparecer, mas de um sistema de opressão que se atualiza com o avanço do capitalismo e da democracia liberal” (2016, p. 14).

Em um estudo sobre os mitos em torno da beleza feminina na sociedade contemporânea, Naomi Wolf (1992, p. 8) sublinha o que para ela é a essência das funções de tal mito: remeter as mulheres à imanência anterior às conquistas do feminismo. Uma vez que as mulheres romperam as amarras do lar e da maternidade, que em alguma medida já não lhes aparece como destino manifesto mas como opção de vida, ameaçam transcender os espaços a elas determinados pelos homens, “invadindo-lhes” o terreno.

Disponível ao olhar e votada ao deleite masculino, engajada num narcisismo masoquista que a leva a querer emagrecer, tornear a silhueta, modelar os seios, e crendo religiosamente nessa restrita acepção de como deve ser e se comportar: “as qualidades que um determinado período considera bela nas mulheres”, resume Wolf, “são apenas símbolos do comportamento feminino que aquele período julga desejável” (1992, p. 13).

A foto das duas modelos exemplifica bem isso: obedientes aos padrões de beleza correntes, a sua nudez não atenta contra a rígida moral cristã da família tradicional, como os desfiles de carnaval há muito nos ensinou. Já a “feiura” de Dilma, bem como a das feministas “feias e sujas”10 (nos dizeres de Eduardo Bolsonaro), essa sim é absolutamente incômoda.

Ocorre que o medo da mulher que foge aos padrões impostos, “mais agressivo ou desdenhoso no homem que duvida de sua virilidade” (Beauvoir, 1960, p. 20), é tanto mais atávico quanto mais a sociedade se assenta em bases patriarcais e patrimonialistas. “Ainda hoje”, afirmou Beauvoir ainda na década de 1940, “é entre os ricos proprietários que subsiste a família patriarcal; quanto mais poderoso se sente o homem, social e economicamente, mais se vale da autoridade de pater familias” (1960, p. 124).

Chegamos, assim, à terceira imagem. Um rapagão de sorriso maroto, com a língua no canto da boca, ergue orgulhoso com o braço musculoso um cartaz de papelão onde declara em letras negras disformes: DILMA PUTA. Ele usa barba, traz na outra mão uma corneta azul, veste o boné virado para trás e um nariz de palhaço.

Por odiosas que essas expressões possam ser, semelhante reafirmação grosseira da virilidade busca ocultar fragilidades de uma masculinidade em crise permanente desde pelo menos o início do século XX – e, seguindo a deixa de Beauvoir, crise ainda mais intensa em sociedades erguidas em torno da violência e da defesa intransigente do patrimônio. O privilégio masculino, explica Pierre Bourdieu, “é também uma cilada e encontra sua contrapartida na tensão e contensão permanentes, levadas as vezes ao absurdo” (2007, p. 31), constituindo uma carga portanto, já que “o homem ‘verdadeiramente homem’ é aquele que se sente obrigado a estar à altura da possibilidade que lhe é oferecida de fazer crescer sua honra buscando a glória e a distinção” (2007, p. 31).

Se durante os séculos da colonização do Brasil estar à altura das possibilidades masculinas tinha a ver com o exercício bruto da “honra”, da “coragem” e do “apetite sexual” (sendo a captura dos indígenas e o estupro das escravizadas sua elevação ao absurdo), em um mundo em que a imagem do sucesso e do poder está umbilicalmente ligada ao dinheiro, no dinheiro estará ancorada a virilidade. Acrescente-se aí crises econômicas, desemprego e carestia, e teremos o restante dos elementos que intensificam a atual crise masculina no Brasil. Diversas pesquisas de campo e de opinião, como as conduzidas pela socióloga Esther Solano e pela antropóloga Rosana Pinheiro-Machado (2017; 2019), atestam a correlação entre a frustração de homens em atender os desígnios inalcançáveis de um sucesso pretensamente viril e o apoio a políticos cuja retórica se baseia no antifeminismo e no combate violento à “criminalidade”. O “insulto viril” vocalizado por estes políticos e seus apoiadores é uma forma de amenizar a masculinidade ferida, e, em alguma medida, voltar a “ser homem de novo” (Pinheiro-Machado, 2019; Solano, 2017).

Inclusive esse “sadismo do mando” de que tratou Freyre precisou se ajustar para que pudesse se manter vigente. Se a escravidão é seu formato clássico, ele se reformulou, afirmou o sociólogo Francisco de Oliveira, nas ideias do “jeitão” e do “jeitinho”, “peculiar modo nacional de livrar-se de problemas, ou de falsificá-los” (2012, online11). Em sua abordagem destas expressões tão brasileiras, Oliveira relaciona o fim da escravidão à predominância atual da informalidade no mercado de trabalho:

Em vez de incorporar os ex-escravos à cidadania, fornecendo-lhes meios de cultivar a terra e se incorporarem ao trabalho regular, foram importar a mão de obra europeia, transformando São Paulo na maior cidade italiana do mundo. O jeitão da classe dominante obrigou os dominados a se virarem por meio do jeitinho do trabalho ambulante, dos camelôs, das empregadas domésticas a bombarem de Minas e do Nordeste para as novas casas burguesas dos jardins Europa, América, Paulistano. Assim, o chamado trabalho informal tornou-se estrutural no capitalismo brasileiro. (Oliveira, 2012, online)

O “jeitão” se aproxima de outro traço da cultura política brasileira: a conciliação populista das aspirações da maioria da população com os interesses exclusivos dos grupos econômicos dominantes. Os sucessivos “acordões” de que a história nacional é testemunha justificam a si próprios a partir de uma lenda muitas vezes repetida: de que o povo é “naturalmente” pacífico. Tal mentira ressona a ideia da brasilidade como um valor “cordial”, buscando amparo erudito em interpretações equivocadas de outra obra fundamental do ensaísmo nacional, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda.

“Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições e ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil” (Holanda, 1995, p. 31), o colonizador cordial preferiu suas relações de afeto e interesse à frieza dos códigos legais, o que, segundo Oliveira, é a encarnação mesma do “jeitinho brasileiro”. Não se trata, enfim, de uma suposta amabilidade inerente aos trópicos. A faceta cordial do “cidadão de bem” – cuja etimologia que se refere àquilo que é “do coração” – diz da tendência para burlar regras para favorecer amigos, familiares, aliados políticos etc, o que deságua, muitas vezes, em atos de corrupção.

A cordialidade é para Buarque de Holanda um traço constitutivo da formação da sociedade brasileira e se expressa inclusive em suas relações mais violentas e traumáticas – não eram incomuns, por exemplo, os senhores de engenho que apadrinhavam filhos de negros escravizados (Nacif, 2014). Uma de suas variáveis contemporâneas se observa em uma forma curiosa de se expressar opiniões autoritárias, intolerantes e controversas: por intermédio do humor que, ainda que chulo, é só uma piada

Anos antes dos protestos antipetistas, isso que podemos chamar de “humor cordial” ou “humor viril” já se anunciava nos meios de comunicação brasileiros. O semanário televisivo “CQC”, exibido pela TV Bandeirantes, tinha no ultraje à classe política e na procura pelo que nela existe de mais exótico sua fórmula de sucesso, o que lhe valeu recordes seguidos de audiência; o “Pânico na TV”, na RedeTV!, reunia dançarinas seminuas a imitadores infames de Dilma Rousseff e Lula. Já em programas na rádio Jovem Pan e no SBT, jornalistas como Rachel Sheherazade “denunciavam” um maquiavélico “plano petista” para transformar em homossexuais as crianças. Também no jornalismo tradicional, ataques de colunistas como Azevedo e Pondé, na Folha de S.Paulo e na revista Veja12, eram desferidos contra o “politicamente correto” - isto é, contra as posições feministas, defensoras da diversidade sexual e da igualdade racial.

Mas talvez a principal vitória do “sadismo do mando” convertido em humor cordial tenha ocorrido na internet, como nota Alves (2016). Após catalogar os sites e perfis antipetistas nas redes sociais, Alves identificou grupos que convergiam na defesa do impeachment: os reacionários declaradas, partidários de uma intervenção militar na política; os liberais anticomunistas, de discurso pretensamente técnico; os “anticorrupção”, que demonizam a política na mesma medida em que endeusam a operação Lava Jato; e os “trolls”, o mais popular destes grupos, “que acionam a retórica do humor, ironia ou escárnio em suas publicações” (2016, p. 137). De maneira “hiperbólica e apocalíptica” e não raramente escatológica, os trolls identificados por Alves empreendiam “uma perseguição hostil e intolerante” ao deputado Jean Wyllys (PSOL) e à deputada Maria do Rosário (PT), dois dos principais antagonistas políticos de Bolsonaro e defensores reconhecidos de pautas feministas e que dizem respeito aos direitos LGBTs.

Em resumo, o sucesso da extrema-direita na disputa pela hegemonia dos imaginários sociais, base para sua vitória eleitoral na eleição presidencial de 2018, se deu concomitante a uma sofisticada rede comunicativa, e seus combates iniciais tiveram lugar não nas tribunas do Congresso ou nas avenidas das grandes cidades, mas no interior da mídia nacional.

Conclusões

É notável que esses ressentimentos, que já se expressavam com alguma timidez desde princípio dos governos petistas, tenham recrudescido em ٢٠١٤, quando as forças de direita perdiam sua quarta eleição presidencial seguida. Sentimentos represados de raiva e medo, preconceitos históricos e divisões regionais que o bom senso mandavam calar vieram à tona, encarnando no PT, e especificamente em Dilma, os únicos culpados pelas mazelas sociais e fracassos individuais. Afinal, “o derrotado só se torna um ressentido”, explica Maria Rita Kehl, “quando deixa de se identificar como derrotado e passa a se identificar como vítima inocente de um vencedor que, nesses termos, passa a ocupar o lugar de culpado” (٢٠٠٤, p. ١٩).

O humor chulo da TV e da internet, a cobertura sensacionalista de certos apresentadores de telejornais, o anonimato da internet (onde a ultradireita astuciosamente cavou suas trincheiras) e finalmente os protestos massivos cooperaram na retirada do véu que encobria esses rancores. Freud, citando Le Bon, aponta que “o indivíduo na massa adquire, pelo simples fato do número, um sentimento de poder invencível que lhe permite ceder a instintos que, estando só, ele manteria sob controle” (2011, p. 15). Os ataques misóginos a Dilma e pela “eliminação do gayzismo e do comunismo” obedecem a essa lógica. Mas estas características “aparentemente novas” do indivíduo que integra a massa, adverte Freud, “são justamente manifestações” do inconsciente coletivo: “quanto mais forte as coisas em comum, mais facilmente se forma, a partir dos indivíduos, uma massa psicológica, e mais evidentes são as manifestações de uma ‘alma coletiva’” (2011, p. 25).

Castells, ao discutir sobre a formação das identidades na “sociedade conectada em rede”, afirma: “a identidade está se tornando a principal e, às vezes, única fonte de significado em um período caracterizado pela ampla desestruturação” (2016, p. 2), o que ajuda a compreender a grande adesão observada nos protestos antipetistas – mas não só neles – a tantas ideias e discursos sectários.

Castells observa que essa constituição subjetiva da sociedade, “base das instituições que a organizam” (2015. p. 1), constrói-se cada vez mais na interação com os meios de comunicação, o que se aprofundou vertiginosamente com o advento da internet e do que ele chama de “sociedade em rede” - transformação que, para o autor, explica a crescente relação “entre emoção, cognição e comportamentos políticos” (2015, p. 5).

O que não quer dizer que o “cidadão de bem” foi “criado” pela grande imprensa (embora tenha sido alimentado por ela) ou pela exposição continuada a vídeos delirantes no Youtube (pois uma mensagem, nota Castells, só é efetiva quando chega aos que estão preparados para recebê-la). Tal autoritarismo, com o qual o “espírito conciliatório” dos poderosos é conivente ou tolerante, trata-se de um traço perene da nossa cultura política e há muito pairava sobre o imaginário social do país, aguardando o momento oportuno e as condições para se manifestar. Abordamos, a partir de imagens dos protestos antipetistas, elementos em torno dos quais se ergueram os imaginários e a cultura política daqueles que nos últimos anos foram às ruas em defesa da família tradicional. Trata-se de um esforço que deverá ser complementando, já que diversos temas ficaram de lado, como o lugar reservado nestes imaginários aos que lutam contra o racismo, aos artistas e defensores da educação inclusiva, aos povos originários e aos ambientalistas, entre outros atores. Ainda, aspectos importantes da cultura política e dos imaginários do “cidadão de bem”, como os usos que fazem da religião e da retórica belicista e anticomunista, foram apenas pincelados, e merecerão tratamento mais minucioso no futuro.

Após a análise das imagens e dos seus contextos, pudemos compreender parte das emoções e dos imaginários que essa composição estético-discursiva produz e as formas de prazer que as permeiam. Arraigado na formação histórica brasileira, o ideal da submissão feminina aos homens foi acionado nas performances dos protestos antipetistas, de modo que a saída de Rousseff da presidência da República representaria também, no plano simbólico, o afastamento das mulheres das posições de poder que não lhes seriam destinadas. No entanto, mesmo este ressentimento patriarcal não pôde se expressar às claras, servindo-se, então, da piada “cordial” e do xingamento viril, outros aspectos da dita brasilidade ancestral mobilizado nas manifestações.

A componente estética, portanto, não é desprezível. Como explicam Sodré e Paiva, “o campo social é afetado pelas aparências sensíveis, não necessariamente instaladas na ordem do real, mas também do possível e do imaginário” (2016, p. 18). Por isso, o que os jornais chamam de “onda conservadora”, avassaladora no Brasil e em diversos outros países, antes de conquistar espaços na política institucional precisou se instalar no mundo sensível, “esse rumor persistente que nos compele a alguma coisa, sem que nele possamos separar real de imaginário” (2016, p. 18).

Bibliografia

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1 Abundam postagens nas redes sociais do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL) em que líderes mulheres da oposição recebem semelhante alcunha. Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/eduardo-bolsonaro-ataca-deputadas-da-oposicao-raspem-o-sovaco/ , acessada em 16/02/2021.

2 Zumthor se refere às performances ao vivo. No entanto, seus conceitos não perdem utilidade quando aplicados às performances eletronicamente mediadas.

3 Adotamos tal medida em respeito ao artigo 20 do Código Civil brasileiro, lei 10406/2, que versa sobre a utilização de imagens de terceiros em publicações comerciais e acadêmicas.

4 Disponível em: https://www.socialistamorena.com.br/galeria-podrera-do-protesto-contra-a-dilma/feia/, acessada em 16/02/2021.

5 Disponível em: http://ego.globo.com/famosos/noticia/2015/04/jennifer-pamplona-faz-topless-em-ato-contra-governo.html , acessado em 16/02/21.

6 Disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/politica/sp-faixas-com-ofensas-e-micaretaco-marcam-ato-anti-dilma,ea5dbf22d8f1c410VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html?fbclid=IwAR3Fh4XNbrznGMW5zncvuOwGTL4AdTmE2ROwV-j263gc2D1IZ8TCk4-2fTE, acessada em 16/02/21.

7 José Murilo de Carvalho expôs, em “Cidadania no Brasil” (2002), algumas razões para tanto, sendo a principal o descompasso entre os direitos sociais, políticos e civis no país, bem como sua errática trajetória desde a independência até a abertura política nos anos 1980.

8 Usamos a noção de representações sociais a partir do que é proposto por Denise Jodelete em “Representações Sociais; um domínio em expansão” in JODELET, Denise (org.). (2001). As Representações Sociais. Rio de Janeiro: Eduerj.

9 Dono de casas de prostituição em São Paulo e um dos principais agitadores antipetistas nos protestos de 2015-16.

10 Ver nota 4.

11 Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/jeitinho-e-jeitao/ , acessada em 16/02/21.

12 Ver, por exemplo, https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1611200919.htm e https://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/cade-o-homem-branco-democrata/. Acessadas em 2/9/21.