Agustín Zarzosa e o melodrama audiovisual: entre “afetos capturados, sofrimentos humanos e objetos vicários”

 

Agustín Zarzosa and audiovisual melodrama: among “captive affects, elastic sufferings, and vicarious objects”

Agustín Zarzosa y el melodrama audiovisual: entre “afectos capturados, sufrimientos elásticos y objetos vicários”

 

e-ISSN: 1605 -4806

VOL 26 N° 113 enero - abril 2022 Varia pp. 247-262

Recibido 08-10-2021 Aprobado 28-12-2022

 

Anderson Lopes da Silva

Brasil

Universidad de São Paulo

anderlopps@gmail.com

 

Resumo

Este artigo objetiva apresentar o olhar de Agustín Zarzosa como uma forma de questionar o pretenso consenso de que a finalidade máxima do melodrama seja sempre a de evidenciar a virtude, o bem e o mal. Usando a pesquisa bibliográfica como a principal estratégia metodológica, apresenta-se a tese central de Zarzosa de que os modos melodramáticos têm por finalidade dar visibilidade e redistribuição ao sofrimento humano utilizando a dramatização moralizante da experiência como meio e não como um fim em si. O debate é estruturado em quatro partes: conceituação de modo melodramático, a tese central zarzosiana, o excesso como modo de troca e uma visão conjuntural. Por fim, atesta-se que a reiteração de aportes filosóficos (especialmente, hegelianos) tornam a obra zarzosiana demasiado hermética e especula-se que o desconhecimento do campo latino-americano dos estudos televisivos e cinematográficos acerca dele se dá, em grande medida, pela aridez referencial de autores e objetos empíricos latino-americanos não citados.

Palavras-Chave: Modo melodramático. Excesso. Sofrimento humano. Sistematização crítica.

Resumen

Este artículo se propone presentar el punto de vista de Agustín Zarzosa como una forma de cuestionar el supuesto consenso de que el propósito máximo del melodrama es siempre resaltar la virtud, el bien y el mal. Utilizando la investigación bibliográfica como principal estrategia metodológica, se presenta la tesis central de Zarzosa de que los modos melodramáticos pretenden dar visibilidad y redistribución al sufrimiento humano utilizando la dramatización moralizante de la experiencia como medio y no como fin en sí mismo. La discusión se estructura en cuatro partes: conceptualización del modo melodramático, la tesis central zarzosiana, el exceso como modo de intercambio y una visión coyuntural. Finalmente, se atestigua que la reiteración de aportes filosóficos (especialmente hegelianos) hacen demasiado hermética la obra zarzosiana y se especula que el desconocimiento del campo latinoamericano de estudios televisivos y cinematográficos sobre él se debe en gran medida a la aridez referencial de autores y objetos empíricos latinoamericanos no citados.

Palabras Clave: Modo melodramatico. Exceso. Sufrimiento humano. Sistematización crítica.

Abstract: This article aims to present Agustín Zarzosa’s vision as a way of questioning the supposed consensus that the ultimate purpose of melodrama is always to expose virtue, good and evil. Bibliographic research is the main methodological strategy to present Zarzosa’s central thesis, i.e, melodramatic modes aim to give visibility and redistribution to human suffering using the moralizing dramatization of experience as a means and not as an end in itself. The debate is structured in four parts: the conceptualization of melodramatic mode, the central Zarzosian thesis, excess as a mode of exchange, and a conjunctural overview. Finally, it is attested that the reiteration of philosophical contributions (especially Hegelian ones) makes Zarzosa’s work too hermetic, and it is speculated that the absence of information in the Latin American field of film and television studies about him occurs, to a large extent, due to his referential aridity of unmentioned Latin American authors and empirical objects.

Keywords: Melodramatic mode. Excess. Human suffering. Critical systematization.

 

1. Introdução

Tacitamente, existe uma ideia de que as conexões entre os temas do melodrama, do excesso e das narrativas audiovisuais sempre estarão estabelecidas pela finalidade moralizante. Em outros termos, não é raro que se postule um potencial consenso de que o melodrama é o gênero pelo qual a moralidade, a virtude e a evidenciação do bem e do mal são a máxima finalidade de sua produção e fruição.

Thomas Elsaesser (1991, p. 69) fala que a marca indelével de todo melodrama, ou seja, das narrativas acompanhadas de música (desde a Bänklliad/Bänkelsang ou Cantastoria), reside justamente no “padrão moral/moralista que fornece o conteúdo principal das tramas (crimes de paixão vingados com sangue, assassinos enlouquecidos pela culpa e que acabam se suicidando por afogamento, vilões roubando crianças de suas mães descuidadas, servos matando seus mestres injustos)”. Peter Brooks (1995, p. 20), por sua vez, apresenta a clássica triangulação entre melodrama e as lentes do modo de excesso, da estética do maravilhamento e da moral oculta para dizer que, especificamente no “reino da moral oculta”, o princípio básico é transparecer de modo sutil algum “ensinamento” no campo ficcional, ou seja, ele vê o melodrama como um “drama da moralidade”. Linda Williams (2004, 2018), ainda que aponte para o excesso como uma qualidade em potência no melodrama e não algo inerente a ele, ao fim, também se volta para a moralidade como uma característica fundamental do melodrama às sociedades que o vivenciam ficcionalmente: “O que é essencial, eu afirmo, é o reconhecimento dramático do bem e do mal e que, tomando consciência disso, ao menos a esperança é de que a justiça possa ser feita” (Williams, 2018, p. 215).

Jesús Martín-Barbero (2009, p. 171), tendo o contexto latino-americano como seu destinatário, explica que as mediações do popular massivo produzem uma leitura do melodrama com base em uma linguagem duplamente anacrônica, isto é, operações simbólicas que recaem primeiramente na questão moralizante “[...] das relações familiares, de parentesco, como estrutura das fidelidades primordiais, e [secundariamente] a do excesso”. Finalmente, Mariana Baltar (2007), olhando diretamente ao cenário brasileiro a partir de conceitos como antecipação, simbolização exacerbada e obviedade, também segue a tônica moralizante do melodrama ao afirmar que: “através de uma pedagogia pautada nas sensações, os ensinamentos morais colocados em cena pela narrativa” oferecem uma espécie de “cartilha” ao espectador sobre as virtudes e desvirtudes presentes na trama (Baltar, 2007, p. 89).

Caminhos semelhantes são os tomados por Gledhill (1987), Oroz (1992), Huppes (2000), Singer (2001), Xavier (2003), Thomasseau (2005), Smit (2010) e tantos outros pesquisadores. Porém, ao contrário de todas as visões até então apresentadas, o que este artigo pretende colocar em destaque é justamente o quão frágil pode se tornar essa consensualidade quando outra ótica de análise é colocada em jogo. Diferentemente dos autores que se mantêm apegados à questão moralizante como finalidade do melodrama (ainda que transitem dos estudos canônicos sobre os melodramas familiares até as mais contemporâneas pesquisas sobre as teorias do embodiment), Agustín Zarzosa é um pesquisador que caminha no contra-fluxo dessas reflexões (fig. 1).

Figura 1: Agustín Zarzosa e sua obra mais contemporânea [montagem].

Homem de camisa vermelha

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Texto

Descrição gerada automaticamente

Fonte: purchase.edu / academia.edu

Nascido no México, Zarzosa atua nos EUA há um tempo considerável (tendo passado por instituições como New York University e University of Florida como espaços de sua formação acadêmica a nível de mestrado e doutorado consecutivamente). Professor associado na Purchase College (State University of New York, SUNY), o pesquisador faz parte do corpo docente da Escola de Cinema e Estudos de Mídia (atuando especificamente como catedrático no Programa de Estudos de Cinema). Atualmente, seus interesses de pesquisa estão principalmente na intersecção do cinema, televisão, filosofia e o estudo do melodrama. A obra mais hodierna que reúne as reflexões feitas por Zarzosa ao longo dos anos é “Refiguring Melodrama in Film and Television: Captive Affects, Elastic Sufferings, Vicarious Objects” [Reconfigurando o Melodrama no Cinema e na Televisão: Afetos Capturados, Sofrimentos Elásticos, Objetos Vicários], lançado pela primeira vez em 2012.

Dessa forma, o objetivo deste artigo é, antes de tudo, apresentar a visão de Zarzosa sobre o melodrama televisivo a partir de sua premissa de que a finalidade do melodrama é visibilizar e redistribuir o sofrimento humano —sendo a moralidade, a virtude e a evidenciação do bem e do mal apenas um meio de dramatização e não um fim em si. Nesse sentido, não existe abertura nestas linhas para que ocorra uma comparação entre a visão zarzosiana e a de outros autores à procura de argumentar ou criticar essa ou aquela posição como a mais correta. Secundária e com um interesse de pesquisa particular no campo televisivo, este texto também almeja preencher uma lacuna descoberta a partir da leitura dos anais do Grupo de Trabalho “Estudos de Televisão”, da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação – Compós, no Brasil (entre os anos de 2011 a 2020, 100 artigos), e dos anais do Grupo de Interesse “Ficção Televisiva e Narrativa Transmídia”, da Associação Latino-Americana de Investigadores em Comunicação – ALAIC (entre os anos de 2014 a 2018, 86 artigos), que nunca citaram nas referências bibliográficas ou sequer mencionaram os estudos de Zarzosa na totalidade de seus 186 trabalhos no dito recorte temporal.

Posto isso, a estrutura do artigo é subdividida em quatro momentos: a) um debate (inacabado) em busca da definição de modo para pensar o melodrama em contraposição à conceituação de gênero; b) a tese central de Zarzosa sobre a finalidade do melodrama em termos de visibilidade, redistribuição, amenização e eliminação do sofrimento humano; c) uma discussão sobre a compreensão do excesso como modo de troca de valores incomensuráveis; e, por fim, d) uma visão de sobrevoo que intenta sintetizar a natureza, a composição relacional, a finalidade e algumas das temáticas mobilizadas por Zarzosa quando de sua discussão sobre o melodrama. Como uma nota metodológica, reforça-se que estamos dentro de um trabalho com ares mais ensaísticos do que propriamente um artigo ao estilo IMRD (introdução, método, resultado, discussão) e, por isso, a estratégia mobilizada aqui é tão somente a pesquisa bibliográfica em um enfoque no tensionamento teórico-metodológico entre os conceitos apresentados pelo autor em estudo.

2. Modo melodramático e suas (in)definições

Agustín Zarzosa tem se mostrado um pesquisador muito preocupado, num nível impressionante de detalhamento, em demonstrar como o melodrama pode ser entendido como um “modo” (e não como um gênero). Além disso, tal escolha terminológica do termo “modo” precisa, de acordo com ele, de uma urgente e minuciosa análise. Por uma extensividade de uso sem maiores explicações vernáculas, o autor pontua que: “Talvez por causa de seu escopo substancial, modo tem se mantido como um conceito mal-definido, vago” (Zarzosa, 2010b, p. 236). Como forma de superar esse obstáculo de imprecisão, ele afirma que é preciso localizar o nível dos modos como abaixo – e não acima ou além – do nível do gênero. Isso porque: “Modos transitam por meio das linhas que conformam os gêneros (e se aplicam a mais obras do que os gêneros) não porque são mais amplos ou abstratos, mas, ao contrário, porque eles envolvem a necessidade primária que é a dramatização da experiência” (Zarzosa, 2010b, p. 237).

Por conseguinte, Zarzosa avança nessa busca terminológica ao identificar quatro conceituações de modo nos estudos do melodrama, a saber: 1) modo como parte de um grupo taxonômico maior que o dos gêneros; 2) modo como um imaginário cultural; 3) modo como uma estratégia representacional; e 4) modo como uma categoria que segue princípios classificatórios incompatíveis com o dos gêneros. (Zarzosa, 2013b, p. 4). Em uma tentativa de diálogo, além destes quatro aspectos, um quinto poderia ser acrescentado a partir da visão elucidativa de Frye (1973, p. 56) ao esclarecer que “[...] um modo constitui a tonalidade básica de uma obra de ficção”.

Entretanto, ao passo que as explicações em busca de uma definição de modo sejam quase extenuantes no trabalho do autor, paradoxalmente, a ausência de aprofundamentos sobre o que seria então o gênero acaba por criar indefinições no espectro comparativo. Ainda que saibamos que esta é uma seara de pouco consenso a depender de onde se olha o termo, esta é uma parte do trabalho de Zarzosa que poderia ser facilmente preenchida caso o autor se detivesse em um posicionamento epistemológico, por exemplo, do gênero como tipos relativamente estáveis de enunciado a nível primário ou secundário (Bakhtin, 2000, p. 279), do gênero como uma categoria cultural genealogicamente relacionada às relações de poder para além da materialidade textual (Mittell, 2004, p. 30), do gênero como conformação narrativa dotada de tematizações, motivos e estruturas arquetípicas específicas (Elsaesser, 1991, p. 84), do gênero como uma esfera discursiva exterior à narrativa e situado em um viés antropológico e social da cultura (Martín-Barbero, 2009, p. 189), e assim por diante.

Em outros termos, seja o gênero algo “abaixo” ou algo “incompatível” com a noção de modo, o que paira no ar é justamente sobre que concepção de gênero estamos a colocar como referência classificatória. Assim, ainda que tenhamos uma visão até bem nítida sobre o que significa modo melodramático na visão zarzosiana (calcada na questão da dramatização da experiência como seu ponto basilar), restam dúvidas sobre o que ele considera gênero (novamente, por oposição ou distanciamento de categoria apriorística).

Outro ponto válido de discussão é que em sua obra (pensando no arcabouço teórico formado pelos artigos e livro) a discussão sobre modo acaba por dialogar muito pouco com outra potente forma de leitura do melodrama: os modos melodramáticos apresentados por Linda Williams (2018, p. 214). Assim, ao falar da natureza do melodrama, Williams também postula que os “modos de melodrama” podem estar presentificados em outras obras, outras produções e mesmos outros gêneros que, em um primeiro momento, pudessem “não conversar” tão tradicionalmente com o melodrama. Logo, seria possível compreender modos de melodrama que enfatizariam ora o pathos, ora a ação ou mesmo as sensações de repressão e sublimação em narrativas infinitamente diferentes entre si. Isso demonstra como o caráter pulverizante e modular do excesso está atrelado também a um entendimento de melodrama não mais apenas como um rígido conjunto de elementos que o configurariam como um gênero stricto sensu em caráter distintivo ou exclusivo a outros gêneros. Logo, uma hipótese possível do distanciamento implícito entre os dois autores pode ser, em termos ontológicos, a relação entre melodrama e excesso (que para Williams é vista de modo mais fluido e pervasivo do que algo essencialista ou exclusivista ao melodrama, algo próximo de uma qualidade em potência, posição esta que também causa dualismos analíticos entre os autores do campo posto que, entre outros assuntos, Zarzosa (2013b, 107-108) acaba por inclinar-se mais à visão do excesso como algo intrínseco ao melodrama em termos de troca e não necessariamente de representação).

Finalmente, em sua busca por falar dos modos melodramáticos, nota-se a aridez referencial de obras latino-americanas (como as telenovelas) a exemplificarem a dramatização da experiência pelas vias do sofrimento humano (um dos assuntos primordiais do folhetim). Logicamente, como cada escolha ou recorte analítico, é compreensível que arbitrariamente o autor prefira abordar a temática das séries e soap operas estadunidenses já que esse é o ambiente de vida prática do pesquisador, contudo, ao não citar as telenovelas, a reflexão zarzosiana acaba por dar margens interpretativas de aplicação teórica e metodológica muito amplas. Ou seja, ao mesmo tempo que se abre um espaço profícuo de debate para o campo dos Estudos Televisivos (especialmente, latino-americano, no caso das pesquisas sobre telenovela), é preciso ressaltar que também estamos a falar de interpretações realocadas para materialidades empíricas distintas da reflexão originária.

Então, pensar a telenovela segundo o melodrama de Zarzosa (2013b) é, sim, possível, mas demanda um olhar metodológico muito mais cuidadoso na abordagem. Como exemplo dos loci enunciativos sobre os quais o autor fala, destaca-se que dos seis capítulos discutidos no livro do autor, quatro deles se reservam ao cinema e dois à televisão. Para o pesquisador não faz sentido separar demasiadamente o melodrama em subgrupos (teatral, cinematográfico, televisivo) já que, ao se deter no exagero de classificações dos meios, perde-se de vista o olhar conjuntural sobre como o sofrimento humano é dramatizado nesses meios. Contudo, Zarzosa (2013b, p. 5) lembra que sua posição não é a de que o melodrama opera independentemente do meio em que aparece: “O melodrama redistribui a visibilidade do sofrimento trabalhando por meio do texto - isto é, por meio dos limites e possibilidades mutáveis de cada meio e entre os próprios meios de comunicação”.

3. Sofrimento humano: visibilidade e redistribuição

Como uma característica divisora de águas em seus escritos, sem tergiversações, Zarzosa (2010b, p. 246) adverte: “Minha compreensão do melodrama como um modo de mediação está em desacordo com uma das ideias mais arraigadas sobre o melodrama, ou seja, que seu objetivo final é evidenciar a presença de bem e do mal”. Assim, o autor abarca uma definição de melodrama que é muito peculiar. Deixando de lado a lógica central do melodrama (evidenciação clara do bem e do mal) trazida por autores como Elsaesser (1991), Brooks (1995), Williams (2004, 2018), Martín-Barbero (2009) e Baltar (2007), o pesquisador pensa o assunto, antes de tudo, a partir de uma premissa na qual:

[...] o melodrama não tenta realmente reconstruir uma ordem ética destruída; pelo contrário, o melodrama opera em um terreno social no qual as ideias [sobre ética] desmoronam-se uma sob às outras, mostrando como o sofrimento é gerado, logo adiante, por outras ideias concorrentes. Nesse sentido, o melodrama é mais ambicioso que a tragédia; o melodrama busca não apenas explicar o sofrimento, mas também eliminar completamente o sofrimento. Em outras palavras, em vez de dramatizar o sofrimento para demonstrar a existência da virtude e do mal, o melodrama dramatiza a virtude e o mal para eliminar ou melhorar o sofrimento. A evidenciação da virtude e do mal não é um fim em si, mas um meio - entre outros - de melhorar o sofrimento. (Zarzosa, 2010b, p. 246).

Desse modo, na visão crítica que Zarzosa (2013b, p. 70) faz da obra de Brooks (1995), ao invés de pensar o melodrama como o estabelecedor de uma moral e sacralidade em um mundo carente de direção sobre como identificar a virtude da desvirtude, ele propõe pensar os sistemas de troca conflituosos como sistemas em disputa. Assim, a esfera do tradicionalmente sagrado (contendo os mitos da cristandade, monarquia e sociedade hierárquica) versus a esfera da pós-sacralização (contendo os mitos da individualidade, democracia e economia de mercado) duelam entre si por um estatuto de qual valoração seguir. “O modo melodramático não é um imaginário cultural que resulta de uma perda do sagrado, mas uma disputa entre sistemas de troca que competem para determinar valor”, insiste Zarzosa (٢٠١٣b, p. ٧٠, grifo do autor). A especificidade da imaginação cultural depende do conteúdo desses dois sistemas conflituosos de troca; claramente a visão do mundo não é o modo melodramático em si, mas o resultado das ações do modo melodramático sobre o mundo (Zarzosa, 2013b, p. 70).

Por isso, um dos pontos centrais da maior crítica que o autor faz em relação a Brooks (1995) diz respeito à compreensão das origens do melodrama na Revolução Francesa e sua forma de apontar uma ordem moral como resposta às desestabilizações do sagrado naquele momento. Colocando em confronto a universalização versus a especificidade histórica do melodrama, Zarzosa (2013b, p. 238-242) aponta que se observamos apenas o ângulo proposto em Brooks, as funções responsivas do melodrama estariam circunscritas (historicamente) a representar um novo baluarte da moral e da virtude como reação à perda de um ideal sacrossanto que guiava a sociedade naquela era. O que ele propõe é pensar na função responsiva do melodrama de modo universalizante (e não restrito à origem de um período histórico) como forma de lidar com algo maior que iluminar a moral e a virtude, isto é, o melodrama apareceria, assim, como uma estratégia de lidar com o sofrimento humano que permeia o tecido social de modo ininterrupto para além de um momento histórico específico. Desse modo, ele conclui que: “Uma vez que nós definimos modo como uma articulação estética fundamental que molda as experiências humanas ao invés de uma resposta artística a uma determinada experiência social específica [Revolução Francesa], os problemas de tradução cultural desaparecem” (Zarzosa, 2010b, p. 241). Por fim, acerca dessa dualidade (universalização e especificidade histórica), é necessário entender que:

À ideia de que o modo melodramático deve ser concebido como um fenômeno histórico, o argumento de Zarzosa afirma que o melodrama opera fora da história – ou, ao invés disso, ele é “o terreno no qual a história toma seu lugar”. Esse terreno, o modo melodramático, afirma Zarzosa, deve ser entendido “como um sistema de modulação” – um sistema que apenas pode expressar um todo social ou providenciar a sua perspectiva sobre ele por meio do sofrimento (Stewart, 2014, p. 5).

O pensamento do modo melodramático enquanto “[...] um aparato que redistribui a visibilidade do sofrimento através de um todo social” ganha força na medida em que o autor estabelece que: “O melodrama concebe o sofrimento como uma totalidade, isto é, uma expressão do todo social em termos de uma paixão [de um pathos]” (Zarzosa, 2013b, p. 5). De maneira mais particular, ele separa o sofrimento em dois planos confluentes: “[...] o primeiro plano diz respeito à totalidade dos corpos que se afetam uns aos outros; e o segundo é o que distribui essa visibilidade do sofrimento” (Zarzosa, 2013b, p. 5).

As bases teóricas sobre as quais se assentam esse entendimento dos modos melodramáticos e seu endereçamento aos problemas do sofrimento humano estão situadas na tríade hegeliana do estoicismo, ceticismo e infelicidade consciente. Zarzosa segue, por meio da dialética do senhor e do escravo hegeliana, uma “[...] tríade que detalhe as questões do sofrimento no contexto do bondage [...]. De uma maneira análoga, assim como Hegel dramatiza ideias filosófica para demonstrar como elas caem em contradição, o melodrama encena ideias sociais para analisar como elas geram o sofrimento” (Zarzosa, 2010b, p. 243).

Ainda sobre o critério de escolha do pensamento hegeliano para compor uma visão de melodrama com a finalidade maior de visibilizar e redistribuir o sofrimento humano, faz-se necessário citar ipsis litteris a explicação dada por Zarzosa de que:

Em primeiro lugar, como filosofias práticas, essas figuras constroem uma grade conceitual para abordar um problema específico da existência, a saber, a servidão e o sofrimento que ela implica. Ao contrário do zeitgeist, essas grades conceituais não estão associadas a um período particular, mas sim a um problema existencial específico. Essas grades conceituais configuram cenários dramáticos para lidar com a escolha (real ou imaginária) da obediência em vez da morte. Na Fenomenologia do Espírito, essas figuras seguem imediatamente a famosa dialética senhor/escravo em que o escravo passa a existir por meio dessa escolha da obediência à morte. Minha premissa é que o modo melodramático procede de uma imaginação servil mais geral que estabelece uma dicotomia entre o mundo e o eu: a escravidão como quintessência do mundo empírico e a liberdade como destino do eu. O problema da obediência reside no cerne da questão dos modos, porque as soluções dramáticas para esse problema envolvem, em primeiro lugar, uma concepção do self; segundo, uma ideia do mundo; e, terceiro, uma estratégia dramática para perceber a essência do eu no mundo. Esses modos são, em suma, os cenários dramáticos através dos quais o eu (servil) se projeta em um mundo hostil. Essa tríade específica constitui um espaço teórico ideal para inscrever minha concepção de melodrama por outro motivo ainda. A figura que resulta do fracasso final da tríade em resolver o problema do sofrimento com sucesso - figura a que Hegel se refere como Razão - não distingue entre um reino empírico de escravidão e um reino espiritual de liberdade, mas postula que as ideias governam o mundo empírico. Essa concepção de um mundo governado por ideias, afirmo, constitui a base do melodrama (Zarzosa, 2010, p. 243).

Ao fim, trazendo o pensamento de Hegel atrelado ao de Nietzsche, Zarzosa (2013b, p. 146) assenta teoricamente a compreensão do “melodrama como o resultado da morte da tragédia”. Para o autor, teoricamente, a substituição da tragédia pelo melodrama não decorre da transição de uma cosmovisão grega para uma cristã, mas sim da oposição melodramática entre essas duas cosmovisões como uma forma de embate “[...] Da mesma forma, os argumentos que distinguem tragédia e melodrama por meio de outros conjuntos de binários (divisão-totalidade, irracional-racional, público-privado) pressupõem esse gesto melodramático” (Zarzosa, 2013b, p 147). Explicita-se, assim, o quão forte é o enlace entre os estudos de melodrama e o campo filosófico para Zarzosa, já que o autor se detém sobremaneira nas reflexões dos filósofos já citados e ainda acrescenta às suas reflexões observações provenientes de autores como B. Espinoza, J. Locke e F. W. J. Schelling.

4. Excesso e troca

É preciso ressaltar, mesmo que o autor faça críticas severas e coloque sob questionamento algumas das teses clássicas de obras seminais do campo melodramático, que Zarzosa (٢٠١٣b, p. ٦٧-٦٨) não ignora a importância do trabalho de Elsaesser e Brooks, por exemplo. Ao contrário, ele resgata uma leitura empreendida por estes dois autores a partir do estatuto dualístico do melodrama (enquanto experiência social específica e retórica representacional). Porém, novamente, ele revisita essas teses ao seu modo, dessa vez colocando em pauta a sua noção de excesso pela centralidade da “troca” (Zarzosa, 2013b, p. 107).

A título introdutório, Zarzosa (2013b, p. 79) faz, de maneira muito pontual, uma aproximação entre o seu entendimento de excesso (como um modo de troca envolvendo valores incomensuráveis) com a noção de excesso a partir da lógica da “economia geral caracterizada pela centralidade do dispêndio e subordinação da produção” em relação ao gasto em Bataille (2016). Todavia, as correlações não são aprofundadas a ponto de o autor explicitar como as reflexões bataillianas se relacionariam, por exemplo, com as lógicas de excesso e transgressão ou de excesso e corporalidade junto ao seu pensamento.

Como pano de fundo, é preciso entender que Bataille entende o excesso a partir do que ele chama de gasto, despesa ou dispêndio necessário à manutenção da vida dos sujeitos no tecido social, dos sistemas e fluxos econômicos e, extensivamente, até mesmo ao ambiente das ciências naturais. Criticando a insuficiência do princípio de utilidade clássica, o autor francês anuncia o “princípio da perda” como uma alternativa para pensar a atividade humana além da redutibilidade dos processos de reprodução e conservação (Bataille, 2016, p. 21). Outro dado que seria de extrema importância, mas acaba obnubilado no texto zarzosiano, diz respeito às correlações entre o pensamento batailliano e as questões de excesso e sacrifício (enquanto Zarzosa debate a temática do sacrifício como um dos pontos de análise do melodrama, Bataille (2016, p. 22-24) já antecipava o sacrifício e o excesso por meio dos rituais indígenas de plotatch
na América do Norte e na Melanésia).

Sobre o tema do excesso, primeiramente, faz-se necessário compreender que, ao trazer o debate sobre as combinações epistemológicas entre o excesso e o melodrama, Zarzosa (2013b) pontua que o estado da arte sobre o tema divide seus entendimentos em três percepções: o excesso enquanto ação, o excesso enquanto qualidade e o excesso enquanto estado de ser. Em outras palavras: “Apesar dessa dispersão [de entendimentos] por vários níveis, os críticos do melodrama têm regularmente teorizado sobre o excesso em termos de representação [...] (Zarzosa, 2013b, p. 107). Assim, o autor continua, excesso é um termo que evoca sentidos muito potentes e, ao mesmo tempo, fragmentados, como: “o ato de violar um limite ou lei; exuberância, luxúria ou algo supérfluo um estado de mente em êxtase aliado à intemperança” (Zarzosa, 2013b, p. 107).

A conceituação do excesso enquanto modo de troca na visão de Zarzosa se dá pela afirmação de que: “A troca é o meio primário pelo qual o melodrama redistribui a visibilidade do sofrimento na esfera social” (Zarzosa, 2013b, p. 4).

[...] o melodrama não dramatiza a relação quantitativa entre as commodities (isto é, seus valores de troca) e nem seus aspectos qualitativos (ou seja, seus valores de uso), ao contrário, [o melodrama dramatiza] a qualidade das coisas e pessoas que devem permanecer completamente para além da dimensão da troca, uso e valor. O melodrama policia as fronteiras entre a troca e uma esfera que está assentada para além da troca, dramatizando as consequências de colocar em circulação ideias e objetos nos quais não deveriam ser atribuídos um valor de troca, isto é, a esfera do sagrado: assim, o melodrama tenta determinar que coisas, pessoas e ideias são objetos de troca adequados e o que disso tudo não deve ser trocado em nenhuma circunstância (Zarzosa, 2010a, p. 397).

Tais trocas de valores incomensuráveis envoltas no excesso e nos modos melodramáticos precisam, de acordo com o autor, terem seu sentido alargado para além da noção de troca como o ato que envolve dar algo e receber outra coisa em troca no mesmo espaço de tempo. Por isso, ele exemplifica três possibilidades de ampliação semiótica do termo troca: a) a troca na qual não necessariamente se recebe algo reciprocamente no mesmo tempo, isto é, uma troca onde a contrapartida é retardada (“dar presentes é um tipo de troca na qual o retorno [de ser presenteado por quem presenteou] é adiado”); b) a troca que não envolve essencialmente uma segunda pessoa em seu processo de “transação” (“‘Linda trocou o marido chato por um amante emocionante’. Nesse exemplo, ninguém necessariamente receberá o marido chato de Linda”); c) a troca que não exclusivamente registra atos suportados pelo seu valor de uso, mas sim uma troca que vê nas escolhas entre diferentes possibilidades o seu foco maior (“a escolha entre dois cônjuges possíveis, duas carreiras possíveis ou, mais simplesmente, duas mercadorias”) (Zarzosa, 2013b, p. 70-71). Dessas, a terceira colocação é a que mais se faz perceber no melodrama, no entendimento desse trabalho, por envolver a dramatização constante das escolhas entre amores impossíveis ou mesmo as consequências advindas de uma decisão (errada/acertada) tomada em um momento de extrema agonia, desespero ou suspense, por exemplo. Assim, de acordo com o autor, nessa terceira definição de troca: “[...] alguém renuncia a algo que não é propriamente seu ou não o possui, mas de fato poderia ter possuído; a coisa não é dada, mas sim abandonada” (Zarzosa, 2013b, p. 71).

Sob essa ótica, o pesquisador destaca ser salutar perceber que o melodrama e o excesso têm seu caráter de representação evidenciado na medida que as próprias práticas que conformam o processo de troca (bem como suas dramatizações) envolvem também o registro das representações: “A troca é necessariamente representacional porque ela se baseia na equivalência quantitativa entre coisas de valor incomensurável. [...] O melodrama expressa a incomensurabilidade que as equivalências de representação necessariamente envolvem” (Zarzosa, 2010a, p. 397). Em uma alusão às teorias antropológicas, Zarzosa (2010a, p. 398) reforça esse argumento ao propor pensar que os objetos sagrados (como simbolização representacional da origem da vida e da fonte de riqueza) têm a capacidade criar um reino imaginário “no qual as relações sociais trazidas acerca da troca adquirem significado, de onde o valor dos objetos aparece como uma realidade objetiva”. E, por extensão: “Para representar uma ideologia como eterna, os objetos sagrados devem ser retidos de sua circulação. [Logo] A imaginação melodramática
é preocupada com as práticas das trocas justamente porque elas criam, sustentam e derrubam ideologias” (Zarzosa, 2010a, p. 398).

Vale ressaltar que há ainda mais especificidades na composição relacional entre melodrama e excesso quando o debate toma o rumo do que o autor tem chamado de “melodrama animal” e “melodrama pós-humano”. Esse é um assunto sui generis em suas discussões e por isso mereceria um enquadramento especial de análise, algo que o artigo em questão não dá conta de resolver. Por isso, aos interessados, indica-se fortemente a leitura dos capítulos “Sacrifice and the Animal Melodrama” e “The Excesses of the Posthuman Melodrama” (Zarzosa, 2013b).

5. Um rápido olhar de sobrevoo

Levando em consideração que ainda são escassos os trabalhos em língua portuguesa que citam as abordagens e considerações de Zarzosa sobre o melodrama, este trabalho ainda propõe pensar em uma tentativa de compilação das ideias do autor a partir do título de sua obra mais completa: “Refiguring Melodrama in Film and Television: Captive Affects, Elastic Sufferings, Vicarious Objects” (2013b). Assim, em uma tentativa de exposição didática, o pesquisador explicita que:

[A expressão] Afetos Capturados alude à condição de possibilidade do melodrama; para o melodrama aparecer, torna-se necessário que os afetos sejam capturados pelas ideias. Como resultado dessa captura, os corpos interpretam as afecções como efeitos de ideias sobre os corpos. Primeiramente o melodrama molda as afecções dos corpos pelo sofrimento – isto é, em efeitos corporais que traduzem a moral e as ideias sociais. (Zarzosa, 2013b, p. 3)

[A expressão] Sofrimentos Elásticos se refere à operação central do melodrama que consiste na redistribuição da visibilidade dos sofrimentos. Essa elasticidade se torna aparente a partir dos movimentos contrastantes pelos quais o melodrama contrai ou dilata o escopo de uma comunidade [onde atua]. (Zarzosa, 2013b, p. 3)

[A expressão] Objetos Vicários designa os atos materiais – trocas e substituições – através das quais o melodrama sustenta ou altera a esfera para além da troca, uma esfera identificada com o sagrado. Pelo monitoramento das fronteiras entre a esfera da troca e seus limites, o melodrama identifica a composição de uma comunidade e seus valores. (Zarzosa, 2013b, p. 3-4).

Finalmente, como a imagem a seguir demonstra (fig. 2) é possível “ler” a obra de Zarzosa em quatro direções: a) a partir do seu entendimento da natureza do melodrama (como modo), b) por meio da composição relacional entre o excesso e o melodrama sob um olhar de inerência (vendo o excesso como um modo de troca muito mais do que propriamente uma forma representacional da desmesura), c) pela finalidade do melodrama (como o ponto nevrálgico que o distancia da visão de que o melodrama é o responsável pela evidenciação da moral, mas o aproxima da ideia de que o melodrama é o responsável por dar visibilidade e redistribuir o sofrimento humano por meio de dramatizações moralizantes), e, enfim, d) a partir das temáticas mais mobilizadas em suas reflexões. Sobre as temáticas abordadas por Zarzosa, vê-se que elas se distribuem por variadas frentes, entretanto, é possível destacar ao menos oito principais temas que são mobilizados para pensar o melodrama no decorrer de sua obra: objetos, corpo, afeto, pós-humano, animalidade, coincidência, sacrifício e exterioridade. Como se objetiva dar uma visão conjuntural sobre o assunto, não haverá aqui uma procura por extenuar o debate sobre tais temáticas e nem muito menos produzir uma visão acabada de todas elas (principalmente porque, alguns temas como os objetos, por exemplo, já renderiam outro artigo).

Especificamente acerca do tema dos objetos, é interessante observar como essa questão vai se desenhando ao longo do trabalho de Zarzosa quase que como um assunto à parte. Exemplos disso podem ser vistos na correlação que ele faz entre o pensamento kantiano e hegeliano para pensar três tipos de significação dos objetos (estóicos [da escravidão à racionalidade], céticos [problemas de identidade como solução para a escravidão] e devocionais [da representação à divindade]) até a transição do objeto melodramático não mais como via de significação moral, mas como espaço de corporificação das ideias relativas à opressão humana (Zarzosa, 2007, pp. 1-2; 9). Posteriormente, vê-se que o autor desenvolve as concepções de objeto sagrado e objeto vicário como formas ainda mais bem elaboradas de se pensar a falibilidade representacional como algo aquém da concepção de troca no melodrama (Zarzosa, 2013b).

Figura 2: Esquema de leitura sobre o melodrama na obra zarzosiana

Diagrama

Descrição gerada automaticamente

Fonte: O Autor.

6. À guisa de conclusão

São dois os motivos principais que fizeram surgir o interesse na escrita de um trabalho que privilegiasse as reflexões de Agustín Zarzosa. O primeiro deles, indiscutivelmente, é a originalidade das reflexões colocadas por Zarzosa em comparação ao panorama intelectual vigente e o segundo, visto de maneira bem mais pragmática, diz respeito à escassez (ausência?) de trabalhos que se debruçavam sobre o viés zarzosiano para entender o melodrama nas narrativas midiáticas.

Dessa forma, como maneira de apresentar as ideias do autor, este artigo tentou sistematizar o pensamento de Zarzosa em três vias principais: a busca pela natureza do melodrama em sua concepção de modo melodramático (constituído para o autor como uma forma de dramatização da experiência), a tese central sobre a finalidade do melodrama centrar-se na visibilidade e redistribuição do sofrimento (em oposição completa à tão difundida ideia de que o melodrama objetiva evidenciar a moralidade como foco final, algo que, para o autor, é apenas um meio e não um fim em si), e o entendimento de excesso, na composição relacional com o melodrama, como algo balizado pela troca de valores incomensuráveis. De modo menos aprofundado, como a quarta via, o artigo ainda procurou mostrar uma lacônica visão de sobrevoo a fim de explicitar as questões pontuadas acima e ainda mencionar as oito principais temáticas mobilizadas por Zarzosa ao longo de sua obra.

Uma reflexão da qual não podemos nos furtar se assenta no uso reiterado de aportes filosóficos trazidos pelo autor em sua leitura do melodrama no campo audiovisual (cinema e televisão). Mais do que uma constatação, esse entrelaçar de filosofia e melodrama cria uma sensação de hermeticidade que parece sugerir que estamos diante de uma obra que, para ser entendida, necessariamente, precisa ser antecipada por leituras prévias de outros autores e campos. Tal traço característico de sua escrita, à parte de juízo de valor, sugere não apenas o quão hermético é o seu texto, mas, acima de tudo, como essa necessidade de leitura paralela talvez afaste suas reflexões do campo estritamente comunicacional. Quer dizer, há uma infinidade de autores do campo dos Estudos Televisivos que também fazem uso de conceitos e autores filosóficos, todavia, o empenho de Zarzosa em basear-se em Hegel, por exemplo, é um gesto nitidamente singular.

Na mesma toada, a aridez de referenciais (teóricos, metodológicos e de obras) provenientes da América Latina é outro ponto que sugere um dos motivos do porquê Zarzosa não apenas não é muito citado em pesquisas brasileiras, como, sequer é mencionado, por exemplo, nos anais dos trabalhos apresentados de 2011 a 2020 no GT de Estudos de Televisão, na Compós, e de 2014 a 2018 no GI de Ficção Televisiva e Narrativa Transmídia, na ALAIC (entendidos aqui como espaços privilegiados de discussão no campo)1. Em outros termos, mesmo a aplicação empírica das reflexões trazidas pelo autor ao estudo das telenovelas, por assim dizer, é algo que, sem escapatória, precisará passar por um processo de intepretação e abordagem que se localizam pura e completamente na responsabilidade de quem intentará tal movimento. Ou seja, não é imponderável que a leitura zarzosiana sobre o melodrama possa ser aplicada a outros objetos e contextos distintos da reflexão seminal proposta por ele, todavia, é preciso ter em mente que haverá um esforço significativo para não apenas conectar o arcabouço intelectual do autor para empirias outras que não foram pensadas por ele, como, antes de tudo, não produzir aporias ou evitar obstáculos epistemológicos intransponíveis.

Como contribuição fundamental, o artigo procurou demonstrar que o olhar sobre a finalidade do melodrama como o princípio moralmente organizador na separação entre bem e mal não é um consenso no espaço acadêmico. Ainda que esteja longe de ser abalada como uma premissa norteadora vastamente aplicável, o que a tese central de Zarzosa provoca é justamente o desmonte da ideia de que estaríamos em uma área de unanimidade universal sobre o tema. De igual forma, sua visão sobre a composição relacional entre melodrama e excesso reforça a observação de que, ontologicamente falando, o autor não pensa o excesso como desmesura quantitativa ou algo desnecessário, que apenas adorna e nada significa. Ao postular sua visão do excesso como um modo de troca entre valores incomensuráveis, Zarzosa aposta na ideia de que o excesso no melodrama (em suas múltiplas facetas) precisa ser lido sob uma ótica qualitativa (algo já feito, sob diferentes prismas, por Williams (2018), Baltar (2007), entre outros).

Finalmente, sem a mínima intenção de providenciar um mapa com coordenadas rígidas a indicar o caminho mais correto na compreensão da obra de Zarzosa, o que este artigo procurou mostrar (especialmente pela figura 2 exposta anteriormente) é um esquema potencial de leitura sobre o melodrama. Assim, contrariamente à uma mera visão de resenhista dos artigos e livro do pesquisador em questão, o que se intentou aqui foi a criação de trajetórias possíveis para futuras pesquisas que queiram observar o melodrama, o excesso e as narrativas audiovisuais por uma via alternativa. Uma via que transita por caminhos à parte do cânone, mas que, claramente, também é passível de ser criticada no que tange às falhas e às limitações encontradas na obra zarzosiana.

Referências

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1 Essa é uma reflexão especulativa posto que autores como Elsaesser ou mesmo Brooks não se detêm sobre a telenovela ou matrizes teóricas latino-americanas e, ainda assim, são parte constante do debate acadêmico ao redor da televisão, melodrama e narrativas audiovisuais no Sul Global. É preciso pensar também no tempo de exposição das ideias de Zarzosa como algo que, nesse sentido, ainda é relativamente recente.