Representação da mulher no discurso da revista VEJA

Representation of the woman in VEJA magazine

Representación de la mujer en el discurso de la revista VEJA

Hellen Cristina Picano Simas

Universidade Federal do Amazonas

E-mail: hellenpicanco@ufam.edu.br

Hevelin Bentes Reis

E-mail: hevelin.br@gmail.com

DOI: 10.26807/rp.v27i116.1997

Resumo

O presente estudo objetiva apresentar uma discussão acerca da prática jornalística a partir do discurso encontrado em produto jornalístico da revista VEJA e, assim, compreender a funcionalidade do jornalístico, enquanto aparelho ideológico, reforçando estereótipos em especial, sobre a imagem da mulher. Para tal reflexão, trabalhou-se com a teoria da Análise de Discurso (AD) de linha Francesa na perspectiva de Souza (2014) e Orlandi (2002), como referencial teórico-metodológico. Por meio dela e das premissas que delineiam o jornalismo, segundo Ramonet (2013), Lage (2001), Traquina (2005) e Silva (2013), além do referencial teórico sobre a representatividade da mulher na mídia, foi possível perceber, na reportagem “Marcela Temer: bela, recatada e do lar”, como a mídia consegue construir discursivamente, a manutenção de padrões de beleza feminina. Desse modo, observou-se uma tendência jornalística em manter, no discurso, formações ideológicas que atrasam a superação do machismo na sociedade brasileira. Tal prática jornalista contraria a essência do jornalismo, estabelecida no Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, instalando no jornalismo a crise de credibilidade perante o público.

Palavras-chaves: Representação da Mulher. Crise de credibilidade. Jornalismo. Revista Veja.

Abstract

This study aims to present a discussion about the journalistic practice based on the discourse found in the journalistic product of the VEJA magazine and, thus, understand the functionality of the journalistic, as an ideological device, reinforcing stereotypes, in particular, about the image of women. For this reflection, we worked with the theory of Discourse Analysis (DA) from the French line in the perspective of Souza (2014) and Orlandi (2002), as a theoretical-methodological reference. Through it and the assumptions that outline journalism, according to Ramonet (2013), Lage (2001), Traquina (2005) and Silva (2013), in addition to the theoretical framework on the representation of women in the media, it was possible to perceive, in the report “Marcela Temer: beautiful, demure and at home”, as the media manages to construct discursively, the maintenance of female beauty standards. Thus, there was a journalistic tendency to maintain, in the discourse, ideological formations that delay the overcoming of machismo in Brazilian society. Such journalistic practice goes against the essence of journalism, established in the Code of Ethics of Brazilian Journalists, installing in journalism a crisis of credibility before the public.

Keywords: Representation of Women. Credibility crisis. Journalism. Veja magazine

Resumen

El presente estudio tiene como objetivo presentar una discusión acerca de la práctica periodística a partir del discurso encontrado en la producción periodística de la revista Veja y, así, comprender la funcionalidad del periodismo como dispositivo ideológico, que refuerza los estereotipos, en especial, sobre la imagen de la mujer. Para tal reflexión, hemos trabajado con la teoría del Análisis del Discurso (AD) de línea francesa en la perspectiva de Souza (2014) y Orlandi (2002), como marco teórico-metodológico. Por medio de ella y de las premisas que delinean el periodismo, según Ramonet (2013), Lage (2001), Traquina (2005) y Silva (2013), más allá del marco teórico sobre la representatividad de la mujer en los mass media, fue posible percibir, en el reportaje “Marcela Temer: bela, recatada e do lar” (algo así como Marcela Temer: bella, discreta y hogareña), como los mass media perpetúan, discursivamente, los patrones de belleza femenina. De esta forma, se observó una tendencia periodística por mantener, en el discurso, formaciones ideológicas que lastran la superación del machismo en la sociedad brasileña. Tal práctica periodística contraria la esencia del periodismo, establecida por el Código de Ética de los Periodistas Brasileños, instalando la crisis de credibilidad ante el público.

Palabras clave: Representación de la Mujer. Crise de credibilidad. Periodismo. Magazine Veja.

INTRODUÇÃO

Este estudo, sob suporte teórico da Análise de Discurso de linha francesa (AD), parte do interesse em oferecer uma contribuição para os estudos voltados às produções jornalísticas, evidenciando em produto midiático, vestígios da cultura machista e, dessa forma, abrir portas para o entendimento de como o sujeito jornalista vem caminhando em direção à crise de credibilidade se pondo contra a essência do jornalismo, que é de atuar como instrumento de luta social, garantindo a efetivação da democracia para todos os cidadãos. Nesse sentido, pretende-se refletir sobre a prática jornalística, na qual o papel do jornalista deve alçar seu alicerce na luta árdua e contínua pela “conquista de mentes e corações para a cruzada permanente contra o autoritarismo, contra a prepotência, contra o arbítrio e a favor da democracia”, como bem destacou a jornalista Silmara Dela Silva (2013, p. 01). Para isso, analisa-se uma reportagem para verificar em sua materialidade linguística filiações ideológicas machistas, a partir dos pressupostos teóricos da AD.

Para esta investigação, selecionou-se a pesquisa bibliográfica para suporte das noções teóricas da Análise do Discurso de linha francesa, sob perspectiva do seu fundador, Michel Pêcheux (1993), alinhado aos estudos de Eni Orlandi (2002), Sérgio Souza (2014) e, para as concepções de jornalismo como mecanismo de construção social, ancorado nos pressupostos de Nelson Traquina (2005) e Ignácio Ramonet (2013). Além da pesquisa bibliográfica também se utilizou o campo virtual das revistas para o recorte das SDs. A amostra utilizada como corpus pertence ao gênero reportagem. O corpus foi eleito para compor o estudo em virtude da repercussão social causada pela reportagem nas redes sociais devido à forma como a imagem da mulher Marcela Temer foi explorada.

Ao pautar a construção da imagem da mulher, automaticamente, definiu-se o conceito-análise que foi explorado a priori, ou seja, pelo interesse do analista, antes mesmo de se iniciar a montagem do corpus (Souza, 2014). A princípio, com a leitura flutuante, que ainda não se preocupa com análise minuciosa, trabalhou-se a circunscrição do conceito-análise da presente pesquisa, a mulher. Em outras palavras, tratou-se da delimitação do objeto. Conhecido o desenvolvimento da pesquisa, passemos a conhecer melhor o referencial teórico que fundamenta a reflexão sobre a imagem da mulher na sociedade.

  1. ANÁLISE DO DISCURSO DE LINHA FRANCESA – AD

Na Análise de Discurso, tem-se o sujeito de linguagem como ideológico, visto que, como afirma Souza (2014), a ideologia está vinculada a todos os processos da língua, bem como nas formas de comportamento dos indivíduos, pois suas práticas têm como base um posicionamento naturalmente ideológico, que antecede a racionalidade.

A memória discursiva é o elemento que se faz presente na Ad, como interdiscurso, resgatando os sentidos já ditos em outros momentos, em outros discursos e que já foram conceituados e serão acionados para compor um novo discurso, este, por sua vez, se encontra na base do pré-construído, funcionando como suporte do dizível e sustentando cada tomada da palavra (Orlandi, 2002).

Paralelamente ao interdiscurso, temos a produção discursiva, explicada por Souza (2014), por meio das etapas: formações ideológicas (FI), formações discursivas (FD), processo discursivo, superfície linguística, esquecimento número 1 e esquecimento número 2.

As formações ideológicas (FI) e as formações discursivas (FD), juntas, funcionam como mecanismo de produção de sentido. Os sentidos começam a ser trabalhados na formação ideológica e “se fazem e se refazem em função da nossa história e dos pensamentos que praticamos na nossa trajetória de sujeito” (Souza, 2014, p. 12). O autor reitera que a formação ideológica se constitui por “um conjunto complexo de atitudes e de representações que se relacionam às posições no mundo em conflito umas com as outras” (Souza, 2014, p.12). Segundo o autor, a formação ideológica é o sentido em estado bruto e está condicionada à ideologia, entretanto, como a ideologia não está acessível a princípio, ela precisa de um meio que lhe dê vazão no discurso, esse meio é a língua e, posteriormente, resulta nas formações discursivas. Para Souza (2014), as formações discursivas são as manifestações das formações ideológicas no discurso. Elas se apresentam como formas subjetivas da percepção do sujeito sobre determinada temática. Funcionam como um filtro, fazendo com que o sujeito permita somente a passagem do que lhe favorece de acordo com suas ideologias.

O processo discursivo se configura como a seleção feita pela formação discursiva, que regula o sujeito, definindo os sentidos e os dizeres em que serão utilizados na superfície linguística. A superfície linguística é a parte que pode ser vista no primeiro momento, é tudo aquilo que é dito ou escrito sem pretensão sobre o que está subentendido. Essa parte é o texto.

O indivíduo, interpelado pela ideologia, age inconscientemente, produzindo sentidos ligados a uma formação ideológica. “O sujeito até esquece que o processo acontece, mas o processo acontece e acontece assim: o sentido é produzido pela ideologia, a ideologia se organiza em discursos, os discursos determinam as palavras que serão ditas” (Souza, 2014, p.13). Fazer o sujeito esquecer que ele próprio é ideológico, é a primeira função da ideologia, a esse fenômeno denomina-se esquecimento 1, também chamado esquecimento ideológico. É o resultado da forma pela qual a ideologia nos afeta, ou seja, ao falar sobre determinado assunto temos a ilusão de ser o pioneiro daquele sentido sem se respaldar em ideias predefinidas, quando na verdade o que fazemos é retomar os sentidos já existentes (Orlandi, 2002).

Quanto ao esquecimento 2, a autora argumenta que é de ordem do enunciado, ele acontece quando o sujeito, interpelado ideologicamente, faz a seleção do enunciado, o que propõe formas alternativas de como argumentar sobre algo, mas que foram esquecidas em virtude do direcionamento ideológico. As possibilidades do dizer, apesar de múltiplas, se limitam ao favorecimento daquilo que se tem como verdade, causando a falsa ideia de que o texto está sendo criado naquele momento, livre de juízos preconcebidos. Esses conceitos-chave da AD serão utilizados neste trabalho, a fim de fundamentarem as análises, os quais serão aplicados conforme a própria metodologia da AD.

  1. METODOLOGIA DA ANÁLISE DO DISCURSO APLICADO À ANÁLISE DE PRODUTO JORNALÍSTICO

Nas análises com base na Análise do Discurso, primeiro, mapeou-se os sentidos de “mulher” presentes nas matérias selecionadas nos veículos citados, depois selecionou-se sequências discursivas (SD) em que se encontravam marcas textuais determinantes para o processo de análise. Nos procedimentos de análise, seguindo as orientações de Souza (2014), baseou-se em três perguntas heurísticas, que auxiliaram a evidenciar os sentidos. A primeira trata-se da pergunta: qual é o conceito-análise presente no texto? No caso desta pesquisa, qual o conceito de mulher nos produtos jornalísticos em estudo? Trata-se de uma pergunta autoexplicativa, pois o texto já traz um sentido sobre o conceito-análise ou será definido a partir da leitura.

Depois perguntou-se como o texto construiu o conceito-análise? Pergunta repetida até que um sentido fosse estabelecido para o conceito-análise. Enquanto houve sentidos sendo produzidos pelo texto, a análise continuou até que o sentido do conceito-análise fosse saturado. Em seguida, se perguntou a que discurso pertence o conceito-análise construído da forma que o texto o constrói? Após a análise, foi possível evidenciar o funcionamento da ideologia no texto, definindo, assim, a que formação ideológica o texto pertence.

  1. ANÁLISE DO DISCURSO DE REPORTAGENS DAS REVISTAS VEJA E ISTOÉ1: RESULTADOS E DISCUSSÕES

A revista Veja pertence à Editora Abril, fundada pelo empresário Victor Civita em São Paulo em 1950. A empresa é um conglomerado de mídia brasileira, que atua principalmente no mercado de editoração, publicando títulos como Veja, Claudia, Placar, Quatro Rodas, Superinteressante, entre outros. A condição de produção do conteúdo a ser analisado refere-se a um momento delicado para a Presidência da República, visto que a chefe do executivo, na época, Dilma Rousseff, estava ameaçada de impeachment devido à acusação de crime de responsabilidade fiscal. Ocorre que o jogo político já apontava o vice-presidente, Michel Temer, para assumir a presidência do país, logo a esposa, Marcela Temer, se tornaria primeira dama.

A reportagem traz como título Marcela Temer: bela, recatada e “dolar”, o qual chamaremos de SD-1. A SD destaca os adjetivos bela, recatada e do lar, indicando-os como qualidades essenciais em uma mulher e, por isso, dignos de serem veiculados nos meios de comunicação como padrão a ser seguido. Nota-se que o sujeito discursivo, interpelado ideologicamente pelo contexto a qual pertence, recorre ao ponto de vista estético e biológico para atribuir o título de bela à Marcela Temer e, assim, propagar um conceito de beleza feminina ideal tais como os cabelos loiros e lisos, a pele branca e sem marcas de expressão ou manchas, olhos claros, além dos traços corporais mais afinados como o nariz e o corpo magro (Maia & Farias, 2020). Padrão originado no eurocentrismo2 e, que se mostra predominante nos desejos femininos com base no alto índice de busca por procedimentos estéticos, visando uma aparência europeia.

Porém, os conceitos de beleza variam de acordo com o tempo, espaço e região. De acordo com Suenaga (2012), os egípcios cultivam a beleza de uma forma extravagante, os antigos hebreus tinham os rituais de asseio fundamentados no princípio de que o corpo era um presente e, por isso, deveria ser bem cuidado. Os gregos nos transmitiram o gosto pela harmonia, pela proporção das formas, pelo equilíbrio perfeito entre mente e o corpo (Suenaga, 2012). Naomi Wolf (1992) explica que a cultura da beleza “se fortaleceu para assumir a função de coerção social, que os mitos da maternidade, domesticidade, castidade e passividade não conseguem mais realizar” (p. 13), embora ainda existam nos meios de comunicação, porém, em menor escala.

Para a autora, ao atribuir valor às mulheres, de acordo com um padrão físico imposto culturalmente, manifesta-se relações de poder, pois, nesse âmbito da beleza, propicia-se um cenário de disputa antinatural entre as mulheres, que buscam recursos aos quais os homens se apropriarão. Essa competição se dá pela aceitação inconsciente da cultura da beleza como princípio básico, assim sendo:

As mulheres devem querer encarná-la, e os homens devem querer possuir mulheres que a encarnem. Encarnar a beleza é uma obrigação para as mulheres, não para os homens, situação esta necessária e natural por ser biológica, sexual e evolutiva. Os homens fortes lutam pelas mulheres belas, e as mulheres belas têm maior sucesso na reprodução (Wolf, 1992, p. 14-15).

Para alcançar essa percepção, o rito de beleza começa desde os primeiros dias de vida, as vestimentas, os acessórios e as cores, por exemplo, diferem as meninas dos meninos, bem como delimitam suas funções e restrições. Esse sistema de base se fortalece e, posteriormente, dá suporte ao conjunto cultural de crenças e costumes que regem o comportamento feminino da infância à vida adulta.

O ato de induzir o público ao protótipo idealizado para a mulher coloca o discurso jornalístico em lugar opressivo e de fortalecimento ideológico da visão machista, a qual se presenta na SD-1. Essa prática jornalística enfraquece os movimentos sociais de luta pela emancipação feminina. Lugar que contraria o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, pois, em tese, cabe aos veículos de comunicação e profissionais da área exercer o papel de mediadores isentos a lados partidários, confiáveis, mantendo sua autonomia em lutar pela liberdade de pensamento e expressão (Fenaj, 2007).

Porém, ao trazer os três termos no título, o sujeito discursivo reforça delimitações no imaginário popular, em que, dominada pelos anseios masculino, a mulher deve abster-se da vida política e dos olhares da sociedade, confinando-se ao paradigma “do lar”, contribuindo com a concepção secular de que a mulher “recatada”, que pouco aparece e quando aparece, está sempre na companhia masculina, aquela sobre a qual compete a função doméstica, dos cuidados da família, da criação dos filhos e que está sempre à disposição do marido, é a mulher vista como boa filha, boa esposa e boa mãe. Por longos anos, esse foi o padrão que a mulher foi obrigada a seguir para ser respeitada na sociedade. Embora essa idealização esteja sendo desconstruída, é com a ajuda da mídia que ela ainda consegue se manter entre os desejos femininos de pertencer a esse grupo e nos desejos masculinos de valorizar e se interessar por mulheres pertencentes a esse grupo.

A reportagem está acompanhada por um único recurso fotográfico em que Marcela Temer é o destaque, ao qual chamaremos de SD-2, vejamos a imagem.

Fonte: (Linhares, 2016).

A SD-2 é a efetivação da harmonização entre os elementos que compõem o trabalho jornalístico. Trata-se dos recursos fotográficos. Essa ferramenta é amplamente usada pelos jornais online, sob a denominação de fotojornalismo. No campo jornalístico, ela é essencial para dar destaque ao assunto abordado, no entanto, sua maior responsabilidade é atestar a veracidade do que está sendo dito no decorrer da matéria, funcionando como uma prova concreta do fato noticiado.

No entanto, para Foucault (1999), “não é um conjunto de signos independentes, uniformes e liso, em que as coisas viriam refletir-se como num espelho, para aí enunciar, uma a uma, sua verdade singular” (p. 47). Mais do que concretizar a fatualidade e, mais do que servir como uma mera ilustração, a imagem também está ligada ao universo das mais diferentes línguas, aos quais seus signos têm significados distintos a partir de suas próprias terminologias e diversidade lexical, o que significa dizer que as imagens também produzem dizeres.

A fotografia usada para apresentar Marcela Temer na reportagem, expressa um ar de tranquilidade, sem preocupações ou irritações, mais precisamente, como um momento de celebração. Em sua volta, luzes desfocadas ao fundo concedem destaque total ao primeiro plano, Marcela, além de marcar o momento festivo em um ambiente elevado estabelecendo, assim, uma relação direta à sua ascensão na posição social ao qual supostamente irá ocupar. A vestimenta também acompanha os adjetivos bela, recatada e do lar, empregados no título. Sem decote e cobrindo os ombros, resgata a memória discursiva do estereótipo da mulher domesticada no espaço privado do lar. Nesse sentido, considerando os signos imagéticos como instrumentos de linguagem e não apenas com função comprobatória ou referencial, a fotografia mencionada está munida de intencionalidade, sendo utilizada e organizada inclusive com intuito retórico, buscando dialogar com o cenário político favorável a Michel e Marcela Temer.

Outro elemento que vemos na SD-2 são os cabelos presos compondo o visual de Marcela, cuja simbologia fortalece o discurso de que ela é recatada, uma vez que os cabelos soltos simbolizam a rebeldia ou transgressão, ou seja, renúncia a limitações sociais, submissão à ordem dominante. O cabelo como meio de expressão está muito além da estética, é empoderamento, resistência, um ato político de luta por respeito.

O tom comemorativo do texto, em torno do cenário político, será observado também ao longo das SDs analisadas a seguir:

SD-2: A quase primeira-dama, 43 anos mais jovem que o marido, aparece pouco, gosta de vestidos na altura dos joelhos e sonha em ter mais um filho com o vice (Linhares, 2016).

SD-7: Ela se refez do sobressalto, mas não se resignou – ainda quer ter uma menininha (Linhares, 2016).

SD-10: Marcela é uma vice-primeira-dama do lar. Seus dias consistem em levar e trazer Michelzinho da escola, cuidar da casa, em São Paulo, e um pouco dela mesma também (Linhares, 2016).

Observamos que a mesma FD continua na linha fina da reportagem, denominada SD-2. Ao se referir a Marcela como “a quase primeira-dama”, o sujeito discursivo deixa transparecer um tom eufórico, revelando certo contentamento com o contexto e uma tentativa de promover a jovem, bela, recatada, do lar e quase primeira-dama, como exemplo de mulher realizada e feliz em virtude de suas características físicas. Idealizar o perfil de Marcela Temer como o preferível e desejável para as mulheres se traduz como estratégia capaz de despertar nelas, a disputa antinatural que tem como propósito o contexto matrimonial, em função do homem.

Com o mito da beleza se erguendo no subconsciente da mulher, com o passar do tempo, os distúrbios relacionados à alimentação cresceram em ritmo acelerado, o que acabou contribuindo não só com a transformação do modo como as mulheres se veem diante do espelho como também alavancou a indústria de cirurgias plásticas de natureza estética, tornando-a uma das maiores especialidades médicas (Wolf, 1992). Mesmo com a luta das primeiras feministas, o padrão sobre a mulher conseguiu se estabelecer e:

Os Ritos, no entanto, reformularam o pecado original de modo que nenhuma jovem pudesse achar ser cedo demais para se preocupar com as marcas da feiúra feminina — envelhecimento ou gordura — invisíveis em seu interior desde o nascimento, esperando o momento de se revelarem. (Wolf, 1992, p. 125).

A almejada juventude requer cuidados e, muitas das vezes, o uso de métodos insanos, causando sérios problemas à saúde ou, até mesmo, causando o óbito. Entretanto, para as mulheres, ainda que essa exigência não seja feita aos homens, nenhum risco e esforço parece ser mais sacrificante do que perder o aspecto jovem ao qual a reportagem destaca.

Ainda na SD-2 exalta-se Marcela por aparecer pouco, porém, embora não exerça nenhuma função política oficial, representa o papel de acompanhante do presidente em cerimônias oficiais, o que nos remete à posição secundária em relação ao homem. Além de carregar a missão de ser exibida ao público como modelo de esposa e, consequentemente, de família perfeita, na maioria das vezes, a primeira dama é designada para exercer ações sociais sob as verbas do Poder Executivo, denotando ao contexto de Estado paternalista em que é o pai que sustenta financeiramente e a mãe é a responsável pelos cuidados (BBC, 2019).

O mito do instinto materno (Badinter, 1985) aparece nas SDs 2, 7 e 10, reforçando a convicção de que a mulher nasce obrigada a desempenhar a função reprodutora e, posteriormente, deve tomar para si a responsabilidade de cuidar e educar os filhos, pois ao pai, não cabe essa função por dois motivos. O primeiro deve-se pelas diferenciações propriamente biológicas que atribuem à mulher singularidades tais como Beauvoir (1970) mencionou, por exemplo, tamanho corporal, peso, esqueleto frágil, bacia mais larga em função da reprodução, força muscular menor, entre outras particularidades. A essas particularidades os antigos regimentos de divisão de tarefas, as proclamaram à nível secundário ao homem e, de certa maneira, ainda interferem em suas atividades na atualidade.

O segundo, justamente por ser detentor de potência física mais elevada, o que lhe permite trabalhos braçais mais pesados e, por esse motivo, seriam mais difíceis ou impossíveis de serem realizadas com o mesmo êxito dos homens, pelas mulheres, além disso, foi enraizada para o homem a crença de que os afazeres domésticos são obrigações mais delicadas, portanto, é tarefa feminina e por isso o homem se vê desonrado ao realizá-las.

SD-3: Marcela Temer é uma mulher de sorte (Linhares, 2016).

SD-4: Michel Temer, seu marido há treze anos, continua a lhe dar provas de que a paixão não arrefeceu com o tempo nem com a convulsão política que vive o país – e em cujo epicentro ele mesmo se encontra. Há cerca de oito meses, por exemplo, o vice-presidente, de 75 anos, levou Marcela, de 32, para jantar na sala especial do sofisticado, caro e badalado restaurante Antiquarius, em São Paulo. Blindada nas paredes, no teto e no chão para ser à prova de som (...), a sala tem capacidade para acomodar trinta pessoas, mas foi esvaziada para receber apenas “Mar” e “Mi”, como são chamados em família. Lá, protegido por quatro seguranças (...), o casal desfrutou algumas horas de jantar romântico sob um céu estrelado, graças ao teto retrátil do ambiente (Linhares, 2016).

Na SD-3, a mulher de sorte e o casamento com um homem mais velho, detentor de experiência, sabedoria e pertencente ao cenário político, o que lhe privilegia desfrutar de certo poder, soa como a conflituosa concepção do casamento por interesse, em que a mulher, vista como ambiciosa, capaz de qualquer coisa por dinheiro, casa-se por interesse em manter uma vida luxuosa e de status sem o esforço do trabalho, como o que se entende na SD-9, em que, na base da construção da mulher de sorte se estabelece as vantagens que o poder do dinheiro lhe proporciona como a isenção das tarefas do lar, por exemplo, que, se vistas pelo lado dos impactos físicos, favorece o cansaço, o estresse e demais lesões provocadas pelas repetições a longo prazo que são elementos considerados inimigos da beleza feminina, ainda que os ensinamentos desde a infância construam sobre o imaginário feminino a dependência financeira, afetiva e emocional da mulher.

A ideia se reafirma na SD-4 após o sujeito discursivo associar as provas de paixão ao dinheiro quando descreve o jantar romântico na sala especial do sofisticado, caro e badalado restaurante Antiquarius que, habitualmente caro, com ajuda de recurso financeiro, foi possível ser esvaziado para dar conforto e privacidade exclusivamente ao casal. Regada a nomes famosos na alta sociedade como profissionais das mais variadas áreas de atuação, os elementos contidos na SD chamam atenção para o aparato de alta tecnologia e o sistema de segurança juntamente com a comodidade que o poder econômico proporciona. Nesse desfecho, fica nítida a relação entre a paixão e o luxo, estabelecendo para a mulher, carácter negativo.

Ao enquadrá-la nesse contexto, o sujeito acentua a posição de mulher aproveitadora, baixa, de índole duvidosa, que só se relaciona ao perceber vantagem econômica e que não usufrui de sentimentos verdadeiros, está sempre à mercê de bens materiais e usa o corpo e a beleza para progredir. Preceito que levou a mulher a ser condenada a uma posição de duras críticas e os vestígios dessa concepção ainda reverberam na atualidade, especialmente, em casos matrimoniais em que a mulher é mais jovem que o homem. Com o contexto de “interesse” estabelecido na sociedade, as críticas desrespeitosas sobre a mulher se sobressaem.

Ainda mais grave, a “vantagem” da beleza feminina começou a transmitir, ao mesmo tempo, uma condição de desmoralização, na qual a aparência, a forma de se comportar e de se vestir passou a ser usada contra ela própria para justificar os assédios e as demissões, ou seja, o que os trajes das mulheres tentam dizer é interpretado erroneamente de forma contínua e deliberada (Wolf, 1992). Não é à toa que em diversos casos de assédio contra a mulher, ouvimos a justificativa infundada de que a mulher provocou o abuso ao usar roupas curtas e atraentes.

SD-5: Marcela se casou com Temer quando tinha 20 anos. O vice, então com 62, estava no quinto mandato como deputado federal e foi seu primeiro namorado. (Linhares, 2016).

SD-6: Michelzinho, de 7 anos, cabelo tigelinha e uma bela janela no lugar que abrigará seus incisivos centrais, é o único filho do casal (Temer tem outros quatro de relacionamentos anteriores). (Linhares, 2016).

SD-8: No Carnaval, Marcela planejou uns dias de sol e praia só com o marido e o filho e foi para a Riviera de São Lourenço, no Litoral Norte de São Paulo. Temer iria depois, mas, nos dias seguintes, o plano foi a pique: o vice ligou, dizendo que estava receoso de expor a família, devido aos ânimos acirrados no país. Pegou Marcela, Michelzinho, e todo mundo voltou para casa (Linhares, 2016).

Na SD-5, o emprego da condição, primeiro namorado, demonstra-se uma sintonia com a realidade observada durante anos, ou seja, ativa na memória discursiva, a informação de que as mulheres eram instruídas a aceitar sem questionamento as interpretações religiosas, em que se pregava a castidade como sinônimo de pureza espiritual. A afirmação no texto nos remete à repressão sexual em torno da mulher. Em muitas tradições, especialmente, nas religiosas é comum que seja exigido da mulher a santa castidade, em contrapartida, quase não se cobra aos homens.

O destino da mulher foi fundamentado ao que se entende como moralismo, originado pelos segmentos religiosos. Logo, à quem infringir as ordens da moralidade, está sujeito ao sentimento da culpa, vergonha e punição pelo pecado cometido. Nesse sentido, Beauvoir (1970) atenta para o fato de a mulher ser tomada como propriedade privada, pois aprende a ser dominada, a princípio, pelo pai que detém todos os poderes sobre ela e, posteriormente, com o casamento, ele transmite o domínio em sua totalidade ao marido.

E como propriedade do homem, “ele a quer virgem e dela exige, sob a ameaça dos mais graves castigos” (Beauvoir, 1970, p. 104). O contexto do relacionamento único abre espaço para o fato de Marcela não ter herdeiros de relacionamentos anteriores, o que compõe o cenário de posse, configurando a virgindade como o elemento fundamental, visto que:

A maneira mais segura de afirmar a posse de um bem é impedir que os outros o usem. E, depois, nada se afigura mais desejável ao homem do que o que nunca pertenceu a nenhum ser humano; a conquista se apresenta, então, como um acontecimento único e absoluto (Beauvoir, 1970, p. 196).

Sem o mesmo pudor exigido à mulher, o homem se vê livre para praticar o que é ensinado para a mulher como o errado. Atualmente, ter outros relacionamentos não é visto como um crime, passível de punição. Tampouco diminui seu valor, bem como não se deve ser motivo de julgamento da sociedade, assim, ter filhos de relacionamento anteriores como o sentido retratado na SD-6 não há contrariedades. Desse modo, contrariando a liberdade feminina, o sujeito discursivo relembra a ideia de posse sobre a mulher. Nesse sentido, Beauvoir (1970) destaca o privilégio masculino: “Como é sua propriedade, como o escravo, o animal de carga, a coisa, é natural que o homem possa ter tantas mulheres quantas lhe apraza” (p. 103), sem as mesmas restrições ou penalidades adotadas às mulheres.

Relegada aos papéis públicos e aos olhares de outros homens, a mulher foi submetida aos caprichos do marido. A posse constituída pelo matrimônio permitiu ao marido o direito de impor as ordens sobre a esposa, que cumpre o papel de boa esposa, acatando as ordens. Percebemos essa intimidação na SD-8, quando o verbo pegou foi acionado para descrever um momento em que Marcela e o filho tiveram que retornar para casa por determinação de Michel Temer, que predominou sobre a vontade de Marcela. Percebe-se ainda que o termo reforça a objetificação da mulher, funcionando como indicador de um objeto qualquer, que pode ser pego a qualquer momento ou maneira sem que precise de autorização prévia, o que significa que o indivíduo em questão está posto a nível de objeto, sem considerar os aspectos que o definem enquanto indivíduo, bem como o estado emocional ou psicológico, por exemplo.

SD- 10: Pedia luzes bem fininhas e era “educadíssima”, lembra o cabeleireiro (Linhares, 2016).

SD-12: Na opinião do cabeleireiro, Marcela “tem tudo para se tornar a nossa Grace Kelly”. Para isso, falta só “deixar o cabelo preso” (Linhares, 2016).

Na SD-10, podemos observar no termo educadíssima, o retrato da mulher burguesa, pertencente ao status mais alto dentro do regime capitalista e detentora de muitas riquezas, moldada sob o requinte dos costumes da elite, agregando um conjunto de comportamentos que vão da delicadeza dos gestos à maneira de falar. Qualidades, essas, que entram em contraste com as noções que marcam a criação da mulher da classe proletária, em que a precariedade se apresenta como o fator que a sustenta na fala, nos gestos e no comportamento, a grosseria empregada aos grupos mais vulneráveis financeiramente costuma subestimar a capacidade intelectual do indivíduo de modo a inferiorizá-lo.

Mais adiante, fazendo alusão aos contos de fada, a SD-12 apresenta a imagem de uma segunda mulher para evidenciar ainda mais as características de Marcela Temer. A admiração manifestada à Princesa de Mônaco, na sequência discursiva tem tudo para se tornar a nossa Grace Kelly, ativa a memória discursiva relacionada aos contos infantis que fascinam o imaginário das meninas, com as narrativas das belas donzelas indefesas e que vivem à espera do príncipe encantado. Disseminados também por meio da literatura infantil, desenhos animados e pelos meios de comunicação, os contos são detentores de uma boa parcela da construção desses princípios, pois:

fornecem-nos igualmente pistas riquíssimas para percebermos como é que os indivíduos, praticamente desde que nascem, adquirem uma predisposição para opor a heroína/bonita/boa à vilã/feia/má. Veja-se, por exemplo, a Cinderela, a bela heroína que enfrenta as suas irmãs, as feias vilãs (Mota-Ribeiro, 2002, p. 36).

O prestígio empregado sobre a cultura da realeza teve e tem grande repercussão e apreço, pois, nota-se que, mesmo com o passar do tempo o estereótipo da princesa consegue se manter na sociedade, especialmente, entre as crianças, que são induzidas a seguir a delicadeza da princesa e a soberania do príncipe. Essa cultura tem uma parcela de contribuição para que à mulher se projetasse, com rigorosidade, a obsessão pelos aspectos físicos. A beleza representada, em conjunto com o contexto matrimonial, a qual Marcela está inserida, remete às artimanhas do jogo político, conferindo ao casal as qualidades: beleza, bom comportamento, equilíbrio e harmonia, o que nos põe diante de uma proposta em que a presidência do país estará em boas mãos com Michel Temer governando.

A beleza de Marcela Temer surge como antídoto à possibilidade da emergência de um novo feminino, ela encarna a manutenção de um padrão de mulher valorizado pela estética midiática e que, além disso, sugere um retorno a papéis convencionais desempenhados pelas mulheres no espaço público (Dantas, 2019, p. 123).

Portanto, ainda que não seja citada na reportagem, automaticamente os sentidos contidos nas entrelinhas nos direcionam para um contraste entre a imagem das mulheres Dilma Rousseff e Marcela Temer, ou seja, a mensagem subentendida é de inferioridade de Dilma, por não se enquadrar nos rigorosos padrões estéticos estabelecidos para a mulher no que diz respeito aos quesitos bela, recatada e do lar. Dilma, uma mulher madura, com marcas naturais do tempo e sem mostrar interesse exagerado pelos métodos rejuvenescedores e de emagrecimento, atesta sua participação no convívio social com certa estranheza por se apresentar sem as curvas corporais livre de gordura, pele lisinha, gestos delicados, ou mesmo, por manter a postura de liderança, com sede de revolução, que vai contra os antigos costumes em que as mulheres estavam sempre à sombra dos homens, sem voz e vez nas decisões.

SD-14: Três anos atrás, Temer lançou o livro de poemas intitulado Anônima Intimidade. Um deles, na página 135, diz: “De vermelho / Flamejante / Labaredas de fogo / Olhos brilhantes / Que sorriem / Com lábios rubros / Incêndios / Tomam conta de mim / Minha mente / Minha alma / Tudo meu / Em brasas / Meu corpo / Incendiado / Consumido / Dissolvido / Finalmente / Restam cinzas / Que espalho na cama / Para dormir” (Linhares, 2016).

SD-15: Michel Temer é um homem de sorte (Linhares, 2016).

Notamos que, para o sujeito discursivo, em razão da criação sob força dos anseios masculinos, se reforça o dever da mulher em deslocar-se de sua realidade para se encaixar nos padrões estabelecidos pela sociedade e, dessa forma, ser valorizada pelos homens. Essa ideia é verificada na SD-15, em que Michel Temer é declarado um homem de sorte, uma vez que ele teve o privilégio de casar-se com uma mulher com o perfil de Marcela: loira, branca de olhos claros, características destacadas para representar o retrato da mulher “bela”, além de ser reservada aos serviços do lar, longe da vida pública, dedicada aos cuidados do filho e da própria aparência, além de estar à disposição das exigências do marido como observado por Malta & Santos (2016), que apontam para dois aspectos no discurso. O primeiro refere-se à posição de Marcela no espaço público descrito pelas fontes consultadas e o outro, no espaço privado, observado na SD-14 e descrito pelo próprio Michel Temer, que, na condição de marido, o tornou público por meio do livro de poemas intitulado Anônima Intimidade.

Em público, Marcela é recatada, discreta, educadíssima, usa vestidos na altura dos joelhos e de cores claras, luzes bem fininhas e aparece pouquíssimas vezes. No privado, de vermelho, flamejante, olhos brilhantes, lábios rubros, para satisfazer os desejos do marido. Dele, restam cinzas, que espalha na cama, para dormir (Malta & Santos, 2016).

Notamos por meio das duas vertentes supracitadas que, nas divisões de papéis, o homem é considerado o chefe do lar, o provedor, a autoridade com autonomia para decidir regras e funções e a mulher como cuidadora do lar, reclusa somente às suas atividades do lar e designada aos prazeres do marido (Malta & Santos, 2016). Nota-se que o sentido empregado à mulher a coloca subordinada à ideologia machista, o que prova que a ideologia machista ainda está presente no produto jornalístico em estudo. Essa ideologia se opõe à bandeira do empoderamento feminino como meio de combater as opressões sofridas pelas mulheres. O “poder” a qual o empoderamento se refere é resultado de um estímulo que age diretamente no subconsciente do indivíduo e consegue despertar nele:

[...] autoafirmação, autovalorização, autorreconhecimento e autoconhecimento de si mesmo e de suas mais variadas habilidades humanas, de sua história, e principalmente de um entendimento quanto a sua posição social e política e, por sua vez, um estado psicológico perceptivo do que se passa ao seu redor (Berth, 2019, p. 18).

Ao compreender a proposta do feminismo, percebe-se o quanto o movimento é importante para a percepção da forma como a mulher é representada, especialmente, no meio midiático, permitindo o desencarceramento pelo mito da beleza e, consequentemente, das privações de seus direitos de cidadã e, especialmente, o seu desligamento do padrão que mais mata no país, a estética corporal.

Diante do exposto, fica evidente, por meio das análises das sequências discursivas, que o discurso presente na reportagem se filia à ideologia machista, o que aponta para prática jornalística tendenciosa e de manutenção do pensamento de inferiorização da mulher na sociedade, uma vez que o discurso da mídia é entendido prioritariamente como verdadeiro e correto. Logo, tem poder de manter ideias por se situar numa hierarquia superior aos discursos dos movimentos feministas, por exemplo. Refletir sobre o uso da palavra na prática jornalística é importante, pois:

‘o discurso jornalístico produz leituras do mundo (...) ele interpreta (e, até mesmo produz) os acontecimentos...’ (1999, p. 103). A análise de discurso vai justamente desnaturalizar para o sujeito jornalista a evidência da anterioridade dos ‘fatos’ em relação ao seu relato na mídia, mostrando a esse profissional o seu gesto de interpretação, que ‘se dá de algum lugar da história e da sociedade e tem uma direção...’ (Mariane, 1999 como citado em Silva, 2013, p.3).

A tomada de posição ideológica machista na reportagem constituirá uma leitura de mundo na sociedade, a qual tem poder, devido aos leitores terem no discurso da mídia o efeito de verdade. A matéria pró-governo, na tentativa de exaltar a mulher com atributos bela, recata e dor lar, revelou, portanto, filiações à ideologia machista.

CONCLUÇÕES

Com a análise da imagem da mulher como um instrumento para se discutir a prática jornalística, aliada ao suporte da Análise de Discurso, foi possível perceber que, ainda distante de uma visão revolucionária sobre a mulher e caminhando na contramão da essência do jornalismo e dos movimentos feministas, o mito da beleza, como qualidade vigente, ainda consegue assombrar a liberdade da mulher no discurso tradicional, especialmente, no campo midiático, fazendo com que os ritos de beleza sejam, cada vez mais, obrigatórios entre as mulheres e, assim sendo, o que observamos é que se a mulher segue esse padrão ela é considerada normal, garantindo sua aceitabilidade na sociedade, como visto na primeira reportagem analisada, referente a revista Veja. Na reportagem em estudo, a mulher aparece romantizada no espaço privado e calada por vozes masculinas, o que reforça estereótipos sobre a mulher, fazendo um desserviço à sociedade, especificamente à classe feminina. Esse resultado indica que a mídia é um aparelho ideológico que perpetua, de certa forma, a violência simbólica contra a mulher.

Observou-se, no presente estudo, a relação de poder dentro do discurso jornalístico onde foi possível notar a intenção de fazer do jornalismo um instrumento de manobra política, funcionando sob interesses econômicos, o que contribui para abalar a credibilidade do jornalismo. Por interesses políticos partidários, o jornalismo vem infringindo as diretrizes do Código de Ética dos Jornalistas, que em seu Art. 6º diz que “É dever do jornalista: combater a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, econômicos, políticos, religiosos, de gênero, raciais, de orientação sexual, condição física ou mental, ou de qualquer outra natureza”, devendo, assim, “opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos” (Fenaj, 2007). É nesse desvio que o lugar prestigiado que a mídia ocupou por muito tempo vem perdendo o espaço e o poder que conquistou, abrindo amplas discussões acerca de sua credibilidade.

Por fim, sustentamos no presente estudo, que o dever do jornalista, mais do que os demais cidadãos, está condicionado ao trabalho em prol do respeito, igualdade e pela manutenção da democracia. Por meio da proposta apresentada, será possível estimular um debate sobre as questões citadas, sobre o discurso jornalístico e a igualdade de gênero, contribuindo, dessa forma, para fomentar a reflexão sobre a formação dos profissionais da comunicação, a qual deve constituir profissionais livres de preconceito e discriminação, o que irá contribuir também para a construção de uma sociedade inclusiva e justa no que diz respeito aos deveres e obrigações de todo cidadão, sem distinção de gênero.

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1 Para melhor entendimento, usamos o recurso “Itálico” para apresentar as sequências discursivas (SD) textuais a serem analisadas e “Negrito” para destacar as SD no decorrer das análises. Quanto às SDs não verbais, também serão apresentadas no decorrer do texto sem separação das demais. As SDs serão ordenadas a partir da indicação numérica 1, 2, 3 e, assim, sucessivamente. Quando houver repetição de sentido, as SDs pertencentes a mesma formação discursiva serão agrupadas, a fim de organizar a análise.

2 Eurocentrismo é o termo utilizado para se referir à tendência de superioridade dos países europeus, cujas consequências marcam a centralidade do discurso e a condução da racionalidade em relação aos demais países.