Alterações no percurso

das águas do rio Cuiabá

Changes in the course of the waters of the Cuiabá river

Cambios en el curso de las aguas del río Cuiabá

Ivoneides Maria Batista Amaral

Universidade Federal de Mato Grosso

E-mail: ivoneidesbamaral@gmail.com

Benedito Dielcio Moreira

Universidade Federal de Mato Grosso

E-mail: dielcio.moreira@gmail.com

Maristela Carneiro

Universidade Federal de Mato Grosso

E-mail: maristelacarneiro86@gmail.com

DOI: 10.26807/rp.v27i116.2003

Resumo

Neste estudo discutimos sobre a vida de homens e mulheres que por muito tempo se destacaram na sociedade rosariense como pescadores e trazem consigo a identidade, histórias e trabalho no entorno do rio. Ao considerar o atual contexto da pesca tradicional na cidade de Rosário Oeste, buscamos refletir sobre a transição no modo de vida desses pescadores e pescadoras, visto que essa atuação perpassa questões ambientais, econômicas e culturais. Questiona-se como tem sobrevivido os pescadores e pescadoras após o funcionamento da usina hidrelétrica do Manso, em 2000. Outro aspecto preponderante é discutir sobre o processo de ocupação próximo as margens do rio Cuiabá: de um lado os ribeirinhos nativos da região que vivem da pesca e pequenas plantações, de outro as pessoas com poder aquisitivo que tencionam uma outra forma de atuar, dentre eles o lazer e o lucro que o rio pode propiciar. O aporte teórico está fundamentado nos estudos sobre cultura e comunicação. O procedimento metodológico foi realizado por meio de revisão bibliográfica e estudo de campo.

Palavras – Chaves: Rosário Oeste; Pescadores; Pescadoras; Cultura da pesca; Comunicação; Usina Hidrelétrica de Manso

Abstract

In this study we discuss the lives of men and women that for a long time stood up in Rosario Oeste society as fishermen and bring with them their identity, stories and work around the river. By considering the current context of traditional fishing in the city of Rosário Oeste, we seek to reflect about the transition in the way of life of these fishermen and fisherwomen, since this performance goes through environmental, economic, and cultural issues. We question how fishermen and fisherwomen have survived after the operation of the Manso hydroelectric power plant in 2000. Another preponderant aspect is to discuss the occupation process near the banks of the Cuiabá River:

on one hand the native riverside dwellers of the region who live off fishing and small plantations, and on the other hand people with purchasing power who intend another way of acting, among them leisure and the profit that the river can provide. The theoretical contribution is based on studies about culture and communication. The methodological procedure was conducted by means of a bibliographic review and field study.

Key words: Rosário Oeste; Fisherwomen; Fishermen; Fishing culture; Communication; Manso hydroelectric power plant

Resumen

En este estudio discutimos sobre la vida de hombres y mujeres que durante mucho tiempo se destacaron en la sociedad de Rosário Oeste como pescadores y traen consigo su identidad, sus historias y su trabajo en los alrededores del río. Al considerar el contexto actual de la pesca artesanal en la ciudad de Rosário Oeste, buscamos reflexionar sobre la transición en el modo de vida de estos pescadores y pescadoras, ya que esta actuación pasa por cuestiones ambientales, económicas y culturales. Nos preguntamos cómo han sobrevivido los pescadores y pescadoras tras el funcionamiento de la central hidroeléctrica del Manso en el 2000. Otro aspecto importante es discutir el proceso de ocupación de las márgenes del río Cuiabá: por un lado los ribereños nativos de la región que viven de la pesca y de pequeñas plantaciones, y por otro personas con poder económico que buscan otra forma de actuar, entre ellas el disfrute y las ganancias que el río puede proporcionar. El aporte teórico se basa en estudios sobre cultura y comunicación. El procedimiento metodológico llevado a cabo fue mediante revisión bibliográfica y estudio de campo.

Palabras clave: Rosário Oeste; Pescadores; Pescadoras Cultura Pesquera; Comunicación, Central Hidroeléctrica de Manso

As interferências ocasionadas pela Usina Hidrelétrica do Manso

Com a criação da usina hidrelétrica do Manso1 ocorre uma grande modificação na paisagem local e na vida dos pescadores ribeirinhos dos rios Manso e Cuiabá. Dentre os principais desafios enfrentado pelos pescadores está a dificuldade para alcançar as margens do rio, cada vez mais delimitadas pelo aumento de grandes propriedades privadas. As construções de bares, pousadas e casas luxuosas próximas ao rio são hoje práticas comuns, o que tem intensificado a degradação do rio e a escassez da pesca artesanal, direcionando a região para uma nova ressignificação do espaço. Diante desse contexto, os pescadores ribeirinhos se veem suprimidos das possibilidades de subsistência e em conflito com práticas culturais que os excluem.

As obras de construção hidrelétrica do rio Manso tiveram seu início em 1974, contudo foi embargada por uma década devido aos danos ambientais que causaria à população, para o rio Cuiabá e seus afluentes, dentre outros impactos. Depois de muitas tramitações judiciais, a obra foi retomada em 1998, sendo concluída no ano de 2000.

A princípio, a usina foi pensada com ampla possibilidade de exploração do recurso hídrico. Criou-se um grande projeto hidrelétrico visando o mercado nacional e internacional e a ocupação da região. Apesar das alterações no meio ambiente, observa-se que essa ação integrada ao processo da modernidade e desenvolvimento está voltada para os interesses políticos e econômicos, sem levar em consideração os riscos para a população mais vulnerável. De acordo com (Rincon, 2017, p.74), tratando sobre comunicação e cultura, reforça que “o tempo e o espaço já não são o que costumavam ser. Os espaços se transformaram de algo em que se vive para algo que perdura, multiplicaram-se e diversificaram-se, perdurando nos tempos”.

A usina do Manso foi uma das agressões ocasionadas de modo mais drástico ao meio ambiente na região que compõe a cidade de Rosário Oeste. De acordo com Siqueira e Henkes (2014) a barragem do Manso afetou diretamente a vida dos pescadores e provocou diversos efeitos no meio ambiente. Dentre as consequências, tem prejudicado a qualidade de vida da comunidade e dos peixes, interferindo na reprodução, respiração, sufocando-os e contribuindo para a diminuição das espécies. Essas consequências negativas foram vivenciadas pelos pescadores de Bonsucesso, em Várzea Grande, município separado da capital pelo rio Cuiabá, conforme estudos realizados por (Valentini et al 2011). Nessa perspectiva, Ferraz (1987) em observações de campo, com estudos realizados no Pantanal mato-grossense desde fevereiro de 1976, já alertava sobre as alterações ambientais negativas para as produções pesqueiras, que seriam causadas pela barragem do Manso, reforçando a interferência na reprodução de algumas espécies e na redução da ictiofauna.

Vale ressaltar que a usina interfere diretamente no nível da água do rio, entre outras consequências, ocasionando a mutação cultural e social nos diferentes ambientes. Conforme Quijano, (2000), todo conceito de modernidade é ambíguo e contraditório. Há uma propagação de desenvolvimento, porém à custa do conflito e crise que afeta de modo intenso as minorias. Nesse estudo, a comunidade de pescadores.

Ao nos voltarmos para o cenário de ocupação do espaço, a construção da usina do Manso causou também o deslocamento compulsório dos moradores que habitavam essa região. Estes sujeitos foram obrigados a deixar o seu espaço de vivência, história, herança familiar e cultural. Uma pergunta que ainda precisa de respostas é quantos moradores desalojados da área de alagamento receberam em troca terras às margens do lago, ou se essas áreas estão em posse das pessoas mais abastadas.

Para Carey (1975), descrito por Subtil (2014), essa ação de relacionamento cotidiano sendo interrompida é uma ruptura do ritual participatório, ou seja, ocorre a interferência no modo de partilhar as atividades culturais e sociais, pois ao serem retirados do seu habitat para morar em locais com pouca ou nenhuma condição de cultivo ou acesso, a ação coletiva fica enfraquecida. Os pescadores do Rio Manso ainda hoje enfrentam diversas dificuldades e nem sempre conseguem se adaptar na rotina que lhes foi imposta, e dentre as consequências está o afastamento, o distanciamento da atividade pesqueira e o enfraquecimento do coletivo.

No final da década de 1990, pouco mais de 700 famílias ribeirinhas que moravam na região do Rio Manso foram retiradas e assentadas em uma localidade distante e diferente das que habitavam, o que representou um ato que negligenciou o contexto em que essas famílias viviam. Conforme (Siqueira e Henkes, 2014), a retirada abrupta dos ribeirinhos e a relocação2 em outras áreas transformaram suas atividades laborais, mudou suas rotinas e fez com que deixassem de exercer suas atividades, dentre elas a pesca e o cultivo de pequenas lavouras.

Informações veiculadas na mídia da época destacam os problemas que as famílias assentadas enfrentaram e traz também uma entrevista concedida ao jornal Diário de Cuiabá pelo coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Mato Grosso, João Buzatto3.

Além das famílias que sequer receberam lotes, quase que a totalidade dos assentados não conseguiu obter sustento e renda em função da baixa qualidade das terras. É muito raro quem queira ficar ali. Há aqueles que receberam lotes com manchas melhores de terra, mas podemos afirmar que 99% têm de ser removidos para outras áreas (Jornal Diário de Cuiabá em 2003).

Com impactos ocasionados na fauna e flora em toda a região, (Fernandes, 2010) a construção da usina de Manso deixou, de acordo com o coordenador do MAB-MT4, “50 mil hectares de terra debaixo d´água para uma pequena geração de energia”. Proporcionando uma nova tipificação do espaço, a região no entorno do lago sofre intensa especulação imobiliária e passa a ser ocupada pelas classes média e alta, com a construção de casas luxuosas, resorts e condomínios fechados.

A transferência dos antigos moradores para outras áreas descaracterizou o antigo lugar, pois esse espaço que margeia o lago da usina de Manso também constituía parte dos terrenos das famílias ribeirinhas que foram assentadas em áreas distantes. Com a modificação do local, os terrenos se valorizaram rapidamente em função do lago e se tornou um grande atrativo turístico, especialmente para os moradores de Cuiabá, que enfrentam altas temperaturas ao longo do ano.

Concomitante ocorre à intensificação na exploração do rio Cuiabá (Neves et al, 2019). O fluxo de pessoas trouxe mais usuários para o rio, para a prática da pesca esportiva e pesca predatória. Com acampamentos montados às margens, aumentou a poluição e o desmatamento, ações que provocaram ainda mais a degradação do ambiente e afetou diretamente a fauna, a flora e a quantidade e espécies os peixes da região.

A hidrelétrica do Manso tem em sua constituição a possibilidade do desenvolvimento econômico, lucro, exploração de recursos naturais e acesso ao mercado internacional. Porém, é necessário ressaltar que o funcionamento da usina afetou diretamente a população ribeirinha, especialmente de Rosário Oeste, que tem no rio a fonte de vida e subsistência.

Busca-se, nesse estudo, portanto, relacionar essa visão ritualística relacionada à cultura, que nos leva a questionar a relação entre o que é posto como progresso e a realidade vivenciada pelos pescadores, ou seja, o que fica para além daquilo que é posto como transformação, direcionado apenas para o desenvolvimento econômico, do qual os moradores não participam e nem desfrutam.

A cidade de Rosário Oeste

A cidade de Rosário Oeste, próxima do rio Cuiabá, está localizada a 120 quilômetros da capital de Mato Grosso, Cuiabá. Segundo dados de IBGE (2020), o município tem uma população estimada em 17.054 habitantes. Conforme Ximena, (2004, p. 103) “o passado nos diz do presente, ao olhar o futuro imaginamos um devir, ou seja, o que nos ocorre é um presente em contínua mudança”. Dentre suas histórias e memórias, a cidade teve seus momentos de glória por ter sido no período da colonização e da busca pelo ouro uma das regiões de abastecimento com produtos agrícolas para os trabalhadores das minas de Cuiabá. Nessa trajetória tornou-se também um ponto estratégico de passagem para a região norte do estado, participou efetivamente de momentos econômicos importantes para a história do Mato Grosso, como a extração do ouro e os ciclos de exploração da poia e da borracha.

Desta forma, a história da cidade de Rosário Oeste se entrelaça com a história de Mato Grosso e está ligada à exploração de ouro e expansão do domínio do território português no Brasil. No século XVIII os bandeirantes, no processo de apropriação dos recursos minerais, naturais e na busca de mão de obra indígena, desbravaram as terras brasileiras. Em Mato Grosso não foi diferente. De acordo com Cavalcante e Costa (1999, p. 16) “isto significava aumentar os domínios portugueses na América, uma vez que novas áreas seriam desbravadas e incorporadas a Colônia”, pois, esse território pertencia à coroa espanhola.

A apropriação bandeirante que ocorreu no território brasileiro, especialmente na região do Mato Grosso, conforme Volpato (1985), tinha como estímulo a oferta de prêmios pela coroa portuguesa. Os paulistas marcharam para o sertão pela gloria de Deus e enriquecimento do reino. Nesse processo mataram, escravizaram e exploraram quem encontravam pela frente. Justificados na religiosidade católica, esses homens foram assim, descritos por (Pacheco Neto, 2011 p. 12-13).

Um caminhante aturdido, atormentado pela pobreza reinante num contexto rústico. Um homem ordinário, nada extraordinário, que palmilhou paragens matagosas desconhecidas, distantes do vilarejo onde morava, em habitações de taipa, onde não havia camas. Este homem, nos extremos da fome, comeu ratos e sapos, e nos limites da sede, bebeu sangue de animais selvagens. Andando a pé, ele foi um viajor que cumpriu distâncias desmedidas, às vezes trôpegas, exangue, antítese de herói. [...] Lançando mão da violência, em suas formas mais extremas, ele não raro deixou um sulco de espanto e desolação por onde passou, choças enegrecidas pelo fogo e muitos corpos desmembrados.

Assim, a história de Rosário Oeste começa a ser construída na margem direita do Ribeirão monjolo, em 1757, onde Inácio Manuel Tourino, e sua esposa, Maria Francisca Tourino, atraídos pela fertilidade das terras estabeleceram-se fundando um sítio com o mesmo nome. Somente em 26 de agosto de 1883 a região foi desmembrada da cidade de Cuiabá, recebendo a categoria de Vila da Nossa Senhora do Rosário do Rio Acima, adquirindo foro de cidade com o nome de Rosário Oeste em 16 de junho de 1918.

Para (Subtil, 2014, p.26) “A deslocação migratória de enormes fluxos populacionais que ocorreu na formação do mundo moderno é interpretada como uma tentativa de trocar um mundo velho por um novo movido pela fé, tornando-se um ato redentor”. Nessa perspectiva, o mundo moderno chega nessa região, encontra no território uma diversidade, dentre elas um rio abundante, caminho para diferentes destinos, terras férteis, ouro e diamante, símbolos de riqueza e poder.

A partir dessa perspectiva, o processo de expansão territorial fortalecido pelo fluxo migratório em busca de riquezas propiciou o desenvolvimento da cidade de Rosário Oeste, atraindo pessoas em busca de oportunidades e trabalho. Com o passar dos anos, aproximadamente no final do século XIX, a cidade que vivenciou o ápice de glória e exploração econômica deixa de fazer parte do circuito e rota de expansão, pois a região já não dispunha mais de recursos minerais, principalmente.

Atualmente a cidade sobrevive com pouco investimento urbano e governamental. O município se mantém como um local de passagem, de pessoas que seguem para a região norte do estado ou do norte para a Capital. Com 161 anos, Rosário Oeste continua pacata, tendo como porta de entrada o bairro Monjolo, local de início do vilarejo. A cidade se desenvolveu com ruas, avenidas, novos bairros surgiram, no entanto o encontro entre o urbano e rural continua presente no cotidiano desse município. É comum encontrar as pessoas reunidas debaixo das árvores, que fornecem sombra e frutas. Muitos moradores cultivam plantas, hortas e a criação de pequenos animais nos quintais.

O rio Cuiabá compõe a paisagem da cidade

Caracterizada como caminho para o norte do estado, é preciso destacar a importância do Rio Cuiabá na representação da Cidade de Rosário Oeste, pois durante muito tempo foi a porta de chegada e de passagem dos recursos humanos e econômicos necessários para o restante da região. A dependência do rio, o entendimento dos ciclos das águas proporciona a vivência de novas configurações relacionadas ao espaço, ao tempo e ao meio ambiente. Servindo como fonte de subsistência, o rio sempre esteve presente no cotidiano da comunidade: em suas narrativas compõe o contexto histórico, econômico e social.

No início do século XX ainda era comum para alguns moradores a ação cotidiana de caminhar até o rio para buscar a água que seria utilizada nos afazeres domésticos e consumo. Esse mesmo rio era o local de trabalho das lavadeiras de roupas, mulheres que para ajudar no sustento da casa se reuniam para lavar as roupas das famílias mais abastadas. Nesse momento de labor, os filhos que as acompanhavam aproveitavam para o banho no rio, também utilizado para o lazer das famílias. O rio destaca-se, sobretudo, como fonte de alimento, pois os peixes eram abundantes e os moradores tinham o peixe como principal alimento.

De acordo com Carey (1975), citado por Subtil, (2014), as ações construídas nas relações cotidianas não são analisadas e pesquisadas como meio do processo cultural, e parte do processo de comunicação e conhecimento social. Porém a partir dessa perspectiva, Carey observa a necessidade de vincular a cultura e a comunicação para analisar problemas do mundo moderno, principalmente estudos voltados para as classes populares.

Nesse processo de construção do mundo moderno, na virada do século XIX para o XX o investimento em infraestrutura se torna urgente, ocorre a construção e implantação de rodovias, estradas rurais, asfaltamento urbano, entre outros serviços necessários, como escolas públicas, energia elétrica e água encanada. O acesso à saúde se tornou possível com o SUS (Sistema único de Saúde), com a ampliação dos postos de saúde. Esses serviços, mesmo sendo realizados de modo precário ainda hoje, estão sendo implantados no cotidiano de Rosário Oeste. Conforme o plano de ação da prefeitura da cidade (2009), existe a distribuição de água potável através de captação superficial, com cobertura da área urbana. Mais ainda há ausência da rede coletora e tratamento de esgoto.

A modernidade e o desenvolvimento socioeconômico, notadamente partir da segunda metade do século XX, afastaram as pessoas do contato com o rio. Apesar da proximidade da cidade, as águas do rio Cuiabá têm se tornado inviável como fonte de alimento, de trabalho com a pesca e de lazer, tornando a comunidade cada vez mais distante desses recursos. O que se evidencia atualmente são as atividades exploratórias como a mineração, decalque de cascalho e areia, construção de usinas, redução da agricultura familiar e ampliação da agricultura e da pecuária, desenvolvidas às margens do rio, atividades que degradam o ambiente. O rio Cuiabá está se tornando escasso para os moradores enquanto fonte de abundância e lazer, com poucas possibilidades de resistência e ressignificação, diante do empobrecimento da população, sem perspectivas de emprego na cidade.

O impacto na rotina dos pescadores

Na configuração do desenvolvimento da região, o rio torna-se cada vez mais particular, distante e privado, fato que intensifica ainda mais a descaracterização dos pescadores artesanais que sobrevivem da pesca, e se estende para outros problemas, como o desemprego, pois muitos destes pescadores tinham na pesca sua principal atividade laboral e a perda da identidade cultural: a pesca artesanal era transmitida dos pais para os filhos. Em lados opostos, detentores do poder político e econômico, versus pescadores, constituem de modo desigual uma relação de forças. Os conflitos envolvem mais do que interesses políticos e morais, pois tem o viés de valorar a exploração econômica em detrimento das famílias que ali moram.

Em Rosário Oeste encontramos a colônia de pescadores, conhecida por Z 13, criada em 1999, com o intuito de unir a comunidade em busca de direitos, dentre eles, o direito de ser pescador. A colônia legitimou um espaço de encontro, convívio e atividade, que já acontecia entre os pescadores de modo informal. A comunicação humana é uma atividade que constrói uma nova dimensão da realidade (Subtil, 2014). O mundo codificado e pleno de significados constitui a realidade simbólica em que vivem os indivíduos. Ou seja, o agir é uma forma de comunicação, pois os pescadores ao reunirem-se dialogam sobre as transformações em suas vidas e no meio ambiente.

Sendo referência em ações voltadas para a preservação do rio, dos peixes e da área socioambiental, a colônia conta com 345 (trezentos e quarenta e cinco) pescadores cadastrados, todos com Registro Geral de Pescador (RGP). Apresentam em seus diálogos uma visão ampliada em relação ao contexto ambiental. Tendo como foco os embates sobre o rio, as discussões giram em torno da utilização do rio, que hoje evidentemente está se tornando apenas fonte de especulação e exploração econômica por parte de grandes empresas. Outro fator determinante para a mudança no cenário de ocupação e moradia, além das causas oriundas dos loteamentos próximos ao rio está a morte de moradores, relacionada na maioria das vezes por questões de idade, falta de cuidados médicos, entre outros problemas.

Santos (2019) reforça que mesmo sendo a autonomia uma característica do modo de vida dos ribeirinhos, com o sistema capitalista eles enfrentam muita dificuldade para manter a subsistência, pois sua realidade não é compatível em termos de valores econômicos e sociais, ou seja, a falta de valorização do ribeirinho que sobrevivem da pesca e cultivam a terra para sobrevivência de seus familiares está cada vez mais distante dos planos de desenvolvimento econômico, ocasionado ações que levam ao abandono das pequenas propriedades no entorno do rio. Os filhos, herdeiros, dificilmente permanecem na região: diante do pouco progresso econômico da cidade, vendem os sítios geralmente a preços abaixo do valor de mercado e saem em busca de melhores oportunidades nas cidades maiores.

As novas construções, cujo público são pessoas de classe média alta provocam o deslocamento das comunidades próximas do rio, ocasionando a perda da identidade das comunidades ribeirinhas, que dentre as privações e também pela escassez de peixes, foram deslocados de suas moradias e destituídas da prática pesca. E, mais uma vez, observa-se o poder do capital se impondo sobre as minorias. Desde o início da constituição da cidade e seu entorno, uma das características da região é a sobrevivência dos moradores por meio da pesca. A atividade comum na cidade de Rosário Oeste era ser pescador.

Para Subtil (2014), a importância das atividades simbólicas de comunicação e transmissão, não apenas como produção da realidade, implica em perguntar pelo significado, valores e sentido moral que orientam as decisões tomadas. No caso da realidade de Rosário, não foram os pescadores e seus familiares os tomadores de decisão, mas os prejudicados pelas decisões políticas e econômicas adotadas. No processo de produção para as novas gerações, Geertz (1973) trata sobre a dimensão da cultura, enquanto algo que não está contido na cabeça das pessoas. São os símbolos por meio dos quais os membros de uma sociedade comunicam sua visão de mundo. Ou seja, as lembranças e histórias presentes no imaginário das pessoas mais antigas são mantidas como parte da cultura que se esvai por força do poder econômico, da exploração da natureza enquanto objeto de lucro.

Ao conversar com alguns pescadores, eles relatam que a ação da pesca é algo significante e valoroso, dos qual eles se orgulham de participar e ensinar aos filhos e netos. A prática da pesca é uma atividade das famílias, do coletivo. Contam com orgulho, sobre a arte da pesca, a relação com o rio e a então fartura do peixe. Afirmam com saudosismo que na região sempre teve muitas espécies de peixe, as famílias que vendiam o peixe conseguiam sobreviver e manter os seus filhos.

É possível admitir que o ato de pescar tradicionalmente no rio Cuiabá, especialmente no percurso que margeia a cidade, está cada vez mais próximo de sua extinção, pois os lugares de pesca estão sendo cerceado pelos proprietários de terra, dificultando o acesso e permanência dos pescadores. Atualmente discute-se entre os pescadores até mesmo a extinção da pesca artesanal como modo de sobrevivência.

Dobre a atividades pesqueira, o governador de Mato Grosso, Mauro Mendes, sancionou a lei 11.486/202 que proíbe a extração de recursos pesqueiros nos entornos da barragem da Usina Hidrelétrica de Manso pelo prazo de 3 anos. Consta da lei, que o local compreende os trechos dos corpos hídricos: Rio cuiabazinho e suas drenagens até a confluência com o Rio Manso (Diário Oficial MT, março 2022). Vale considerar que conforme relato dos pescadores essa é uma região muito utilizada para pesca artesanal, ou seja, houve uma redução de acesso ao rio Cuiabá consequentemente, o acesso ao meio de subsistência, não sendo ofertado aos pescadores ribeirinhos outras possibilidades.

A pescaria na cidade de Rosário Oeste sempre foi uma ação cotidiana, interliga diferentes ações enquanto modo de subsistência, atuação profissional, social e cultural. A colônia de pescadores de Rosário Oeste atua como forma de manter unidos os pescadores artesanais que vivem da pesca, e veem essa ação sendo realizada de forma cada vez mais precária. Para os pescadores, a união em colônias é uma forma de organização e de luta por direitos, um meio de atuar frente as demandas legais, sociais, políticas e econômicas. Dentre os encaminhamentos realizam discussões e reuniões junto aos deputados e vereadores, encaminham as documentações para que os pescadores possam receber o seguro defeso, auxílio pago pelo governo por quatro meses, durante a piracema.

Para (Subtil, 2014, p.36) “a atividade simbólica gera a cultura e o ritual cria forma de relação social”. Ou seja, é necessária essa abrangência entre o cultural, social e o ambiente, relacionados ao percurso de destruição do ambiente tendo como foco o rio, considerada fonte de vida e subsistência para diversas comunidades. Para Morin (1984), a sociedade é complexa, existem zonas de marginalidade e desvio, possibilitando assim o não conformismo na esfera cultural, ou seja, na esfera que concerne ao conhecimento. Muitas vezes esse conhecimento é fortalecido no grupo.

Outros efeitos no ambiente

Geralmente, entre os meses de setembro e outubro ocorria o que os pescadores chamam de estoque de peixes. Mas por força do art. 6º, inciso III da Lei nº 9.096, de 16 de janeiro de 2009 e, Art. 1º Estabelece o período de 01 de outubro de 2021 a 31 de janeiro de 2022, como defeso da piracema no Estado de Mato Grosso, ou seja, essa lei interfere até mesmo no processo de desova dos peixes, porque a usina do Manso com o baixo nível de água não contribui para que haja o processo de desova no período correto. De acordo com Ailton Santos, pescador de Rosário Oeste, integrante da Colônia Z13, não há diálogo com os pescadores sobre o processo de reprodução das espécies, que vem diminuindo constantemente.

Outra forma de interferência no meio ambiente é a pescaria esportiva. Considerada distração para muitos, ocasiona a morte dos peixes. Ao serem fisgados por um anzol são retirados do rio, puxados pela boca e sempre ficam machucados. Ainda que devolvidos ao rio, acabam morrendo. É uma ação, segundo o pescador Ailton Santos, considerada pelos pescadores artesanais como uma forma de tirar o peixe da boca dos pobres para dar aos ricos, que apenas querem brincar com o peixe de forma exibicionista. A pesca esportiva faz mal para os peixes, pois ao serem fisgados pelo anzol eles se machucam tentando se soltar, ficam muito tempo fora da água, são manuseados de forma errada, apenas para que os pescadores tirem fotos e publiquem em suas redes sociais.

Nessa relação do homem com o peixe como algo peculiar, alguns programas na televisão e grupos em redes sociais utilizam as mídias para estimular a pesca esportiva. Essa ação é vista pelos pescadores ribeirinhos como desnecessária, pois na maioria das vezes mutilam o peixe, deixando-os sem condições de sobreviver no ambiente. Na região de Rosário Oeste várias pousadas ofereciam a pesca esportiva como atividade de lazer para seus hóspedes, não consideravam à proporção que essa ação causava para o ambiente. Em agosto de 2021 foi sancionada a proibição da pesca esportiva, considerando os efeitos negativos para o ambiente.

Considerações

Para que haja harmonia entre os pescadores artesanais, meio ambiente e sociedade de um modo geral, faz-se necessário a conscientização sobre o significado da pesca como meio de subsistência e preservação. A ação realizada diariamente, o ato de ir até o rio e dele retirar apenas o necessário, corrobora para o equilíbrio entre as espécies, revigora o ambiente. Dentre as lembranças do senhor Ailton Santos, consta que até algum tempo atrás era possível trazer até 50 peças de peixe: havia fartura e abundância própria do ciclo da natureza.

A intensificação dos conflitos pela posse, dominação e lucro econômico trouxeram como consequência aos pescadores as dificuldades para chegar até o rio e quando chegam passam o dia todo, muitas vezes, sem pegar nenhum peixe, e se deparam somente com o lixo que desce nas águas. É uma situação de abandono e descaso com a sociedade, a natureza e os cidadãos. Nesse sentido, a cultura da pesca artesanal torna-se um embate nesse processo de dominação. Esse processo, o modo predatório como é conduzido, como já se sabe, acaba com os peixes, com o pescador e com o rio.

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1 A Usina de Manso, construída em parceria com a iniciativa privada, está localizada no estado de Mato Grosso, no rio Manso, principal afluente do rio Cuiabá. O consórcio PROMAN, formado pelas empresas Odebrecht, Servix e Pesa, participa como parceiro com 30% do total dos investimentos. Disponível em: https://www.furnas.com.br Acessado em: 06 junho 2022.

2 As famílias ribeirinhas foram transferidas para assentamentos implantados nas localidades de Campestre, João Carro, Barra do Bom Jardim, Mamed, Água Branca e Quilombo, na zona rural de Chapada dos Guimarães. Disponível em: https://www.diariodecuiaba.com.br/cidades/furnas-devera-rever-situacao-de-familias-de-manso. Acesso em: 04 de junho 2022.

4 MAB – MT (Movimento dos atingidos por Barragens em Mato Grosso) Paulo Fernandes em entrevista para IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS. Disponível em: https://www.ecodebate.com.br/2010/03/18/hidreletrica-de-manso-50-mil-hectares-de-terra-debaixo-dagua-para-uma-pequena-geracao-de-energia-entrevista-especial. Acesso em: 10 de julho 2022.