Processo criativo e campo do sintoma: o melodrama tropical no cinema de Karim Aïnouz
Creative process and symptom: tropical melodrama in Karim Aïnouz’s cinema
Proceso creativo y campo de síntomas: el melodrama tropical en el cine de Karim Aïnouz
Sandra Fischer
Docente-Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná
E-mail: sandrafischer@uol.com.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7891-6420
Aline Vaz
Docente-Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná
E-mail: alinevaz900@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2416-200X
DOI: 10.26807/rp.v27i116.2005
Resumo
O estudo dedica-se a identificar e analisar, a partir de ações criativas que envolvem a realização de A vida invisível (Karim Aïnouz; Brasil, 2019), as linhas que se entrelaçam entre o cinema de autor (alinhado à dimensão da arte e/ou do experimentalismo) e o cinema de gênero (que tende a estabelecer imediata conexão com o grande público). A metodologia utilizada transita por entre a análise fílmica e as ditas ‘teorias de cineastas’ (Penafria, M. et alii., 2015). Considera-se que as estratégias utilizadas na construção do filme em pauta viabilizam o alcance a um público amplo ao mesmo tempo em que potencializam elementos da ordem do sensível como experiência política – assim desconstruindo barreiras e possibilitando elos comunicacionais entre a criação artística, o popular e a ação social.
Palavras – Chaves: Cinema de autor. Cinema de gênero. Karim Aïnouz. A vida invisível.
Abstract
Focusing the film A vida invisível (Karim Aïnouz; Brasil, 2019), the the study analyses the lines that intertwine between ‘auteur cinema’ (aligned with art and/or experimentalism) and “genre cinema” (which tends to establish immediate connection with the general public). The methodology lays both on film analysis and the so-called “filmmakers’ theories” (Penafria, M. et alii., 2015). It is considered that the film’s creative strategies make it possible to reach wide audiences at the same time they connect elements of sensitive and political experiences – thus deconstructing barriers and enabling communicational links between artistic creation, the popular and the social action.
Keywords: Auteur cinema. Genre cinema. Karim Aïnouz. A vida invisível.
Resumen
El estudio se dedica a identificar y analizar, a partir de las acciones creativas que implican la realización de A vida invisível (Karim Aïnouz; Brasil, 2019), las líneas que se entrecruzan entre el cine de autor (alineado con la dimensión del arte y/o el experimentalismo ) y el cine de género (que tiende a establecer una conexión inmediata con el gran público). La metodología utilizada transita entre el análisis fílmico y las llamadas ‘teorías de los cineastas’ (Penafria, M. et alii., 2015). Se considera que las estrategias utilizadas en la construcción del filme en cuestión permiten llegar a un público amplio al mismo tiempo que potencian elementos del orden sensible como experiencia política – deconstruyendo así barreras y posibilitando vínculos comunicacionales entre la creación artística , lo popular y la acción social.
Palabras clave: Cine de autor. Cine de género. Karim Aïnouz. A vida invisível.
INTRODUÇÃO: cinema de autor, cinema de gênero
A pesquisa que dá origem ao presente artigo, inserida no âmbito dos estudos de cinema, trata de composição fílmica e potência. O texto dedica-se a identificar e analisar, no filme A vida invisível (Karim Aïnouz; Brasil, 2019), as linhas que se entrelaçam entre o cinema de autor (alinhado à dimensão da arte e/ou do experimentalismo) e o cinema de gênero (que tende a estabelecer imediata conexão com o grande público), em especial no que tange a características atreladas ao melodrama.
A labilidade entre cinema de autor e cinema de gênero confere ao filme possibilidades de atingir diversos públicos, além de ampliar as escolhas criativas do diretor. Karim Aïnouz ressalta que para contaminar o cinema “por dentro” decidiu “apostar numa linguagem de gênero, com a qual um público mais amplo estivesse habituado. Queria apostar numa forma mais clássica, quase careta, e a partir dali falar sobre temas relevantes no mundo hoje” (Folha de S. Paulo, 2019a). Nessa perspectiva, A vida invisível desloca-se para o passado convergindo para o presente: a maior parte das tensões ali imaginadas ligam-se a questões históricas, problemas crônicos da sociedade brasileira – principalmente no que se refere ao patriarcalismo exacerbado, à opressão e à reificação da mulher. Partindo dessas premissas, e com amparo metodológico-crítico nos estudos apresentados na obra Teoria dos cineastas: uma abordagem para a teoria do cinema1 (Graça; Baggio; Penafria, 2015) a proposta deste estudo, que tenta sistematizar ideias expressamente manifestas pelo cineasta, é olhar para aquilo que impulsiona o ato criativo de Karim Aïnouz ao realizar o filme A vida invisível – articulando as linhas tênues que se delineiam entre o cinema de autor, compreendido à moda de Alexandre Astruc (2012) como a capacidade de o cineasta expressar uma concepção de mundo com a linguagem mais vasta possível, e o cinema de gênero, alicerçado pelo processo produção-distribuição-consumo. Entendendo o cinema como sistema de pensamento e campo do sintoma, consideramos que o fazer cinematográfico mencionado por Aïnouz pode funcionar como estratégia de resistência: imagens de natureza potencialmente política surtirão efeitos, em termos de crítica social, ao passo em que se comunicam amplamente com a sociedade.
VIDAS INVISÍVEIS, MULHERES DE FAMÍLIA
O roteiro de A vida invisível, assinado por Karim Aïnouz, Murilo Hauser e Inés Bortagaray, é uma adaptação da obra literária A vida invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha, lançada pela Companhia das Letras em 2016. O processo de roteirização do filme passa por cerca de dois anos de maturação até atingir a estrutura adequada a ir para o set de filmagem – momento em que ainda perdura o processo de inserção de novas ações e diálogos no texto2. Nina Kopko, diretora assistente, comenta: “Era sempre uma via de mão dupla. A gente alimentava o roteiro [com base no que havia ocorrido durante os ensaios] e depois o trazia de novo para a sala de ensaio [...]. Mesmo depois, dentro do set, o que traziam dentro da locação poderia influenciar no roteiro” (Itaú Cultural, 2019). Note-se que o trabalho de adaptação não enrijeceu o reconhecido processo de criação de Aïnouz, que em certos aspectos modificou a história, mas manteve a gênese das figuras originais:
‘[...] a Martha foi muito generosa nesse sentido’, compartilhou Karim sobre a autora, que não interferiu na construção do roteiro. Comparando-se a um trapezista que dispõe de uma rede para o amparar caso caísse, o cineasta chamou a atenção para uma das especificidades de se debruçar sobre uma história já contada. ‘Se há uma coisa de singular no filme é que esses personagens são de carne, osso e alma, e acho que isso vem do processo de adaptação.’ (Itaú Cultural, 2019).
O filme de Aïnouz narra a história de duas irmãs separadas pelas artimanhas do patriarcado. Guida, durante os anos 50, quando jovem, foge de casa com um marinheiro grego; ao separar-se dele, retorna grávida para casa. O pai expulsa Guida do convívio familiar e assevera-lhe, mentirosamente, que a irmã Eurídice teria ido estudar piano fora do país. Casada e com dois filhos, Eurídice, por sua vez – subjugada às normas patriarcais reiteradas pelo marido conservador – jamais realizou o sonho de se tornar musicista. Seguiu a vida no Rio de Janeiro, sempre à procura de Guida, até que por uma confusão do destino é levada a acreditar que a irmã havia falecido; cartas que lhe haviam sido remetidas por Guida chegam-lhe às mãos somente já na velhice, quando após a morte do marido encontra as correspondências no cofre da casa3 e descobre que passara a vida enganada.
Em A vida invisível temos três mulheres submetidas ao poder de um mesmo governante (o pai opressor): a mãe/esposa e as filhas/irmãs, que convivem com essa realidade de diferentes modos. A mãe, mesmo discordando, curva-se a todas as decisões do esposo. Guida, a filha mais velha, não aceita as imposições do pai, razão pela qual é excluída do grupo familiar: longe da opressão do lar reconstrói a vida, enfrenta as adversidades do machismo fora de casa e ‘apesar de...’4 persevera: alijada de sua família biológica, mas, inserida em sociedade, sustenta relações afetivas de amizades e no ‘conviver com...’ opera reconstruções identitárias, conquista formas inusitadas de ‘viver junto’ (Fontanille, 2014). Renovada, Guida adotará novo nome, novos modelos de convívio familiar. Eurídice, por seu turno, tenta reagir, impelida por impulsos efêmeros (como submeter-se a um teste no conservatório de música às escondidas, atear fogo a peças do mobiliário da casa e ao próprio piano etc.), mas acaba por sucumbir ao poder dominante do pai e depois ao do marido: torna-se mãe de família e abdica de ser pianista.
As personagens figurativizam os modos de conviver com os poderes patriarcais que há tempos imemoriais buscam governar as vidas femininas em sociedade: inviabilizam-se pela omissão (a matriarca), pelo auto-boicote e frustração (Eurídice) ou pela exclusão do sistema (Guida). Não obstante o eventual caráter libertador em certa medida implicado na expulsão peremptória, atrela-se a isto uma espécie de invisibilização provocada pela necessidade de apagamento de facetas da própria história. Para que a norma patriarcal, mesmo que já em desgaste, possa continuar mantendo sua aparência dominante, ao passo em que a mulher adquire algum espaço a estrutura garante obstáculos residuais que lhe dificultam o revelar-se, o se dar a ver afirmativamente. Ou seja, além de ter (supostamente) conquistado independência e de se obrigar, mesmo na contemporaneidade, a manter atenta e cotidiana vigilância a fim de preservar direitos e autonomia, para se fazer efetivamente vista a mulher tem de ser capaz de se constituir em figura resistente e resiliente – sob pena de ser confinada a uma existência invisibilizada, assim como Guida, condenada ao desaparecimento quando excluída da instituição familiar.
Em A vida invisível, a família que vive no Rio de Janeiro dos anos 1950 inscreve na tela do cinema o conservadorismo imposto aos convívios socioafetivos: aquém do filme (e além) renuncia-se o convívio afetivo-familiar (por meio da opressão e da expulsão) em prol de garantir certa ordem patriarcal aparentemente ‘inabalada’; além do filme (e aquém) renuncia-se à justiça social de gênero em prol de uma tradição tirana revestida de simulada ordem social.
MELANCOLIA, POLÍTICA, AÏNOUZ
Indagado pelo jornalista cultural Roberto Sadovski (2019) como seria filmar a tristeza, Karim Aïnouz confessa sentir que sempre vai para o lugar da melancolia. Entretanto, tal melancolia não é calculada ao escrever um roteiro ou filmar, é algo que “não escapa, está na luz, nas locações”. Em A vida invisível o caráter melancólico lhe assombrava desde a leitura do livro de Martha Batalha: “(...) desde que vi a separação dessas duas meninas e a vida que elas tiveram de levar. Está no DNA do material. Mesmo os momentos felizes trazem uma alegria violenta, desconfortável, nunca é uma alegria explosiva.”.
Persistia sempre uma dor, embora desprovida de vitimização: “Por mais dolorido que seja, podemos falar sobre isso rindo. Durante os testes pro’ elenco eu busquei textos às vezes duros, relatos sobre assassinatos publicados em jornais, e eu pedia para que as atrizes lessem rindo. Procurei justamente essa tensão.”. O cineasta observa que esse tipo de atitude é frequentemente visto em folhetins, em melodramas nos quais as personagens falam sobre suas dores sem explicitá-las: “Em muitos momentos eu queria sentir essa convulsão nos personagens, que não é exatamente tristeza, mas melancolia.” (Blog do Sadovski, 2019). Aïnouz, ao que tudo indica, buscou instalar no filme esse lugar de melancolia (e quase resignação?) sem entrar nos meandros de uma tristeza autopiedosa; para o diretor, sabe-se, a personagem “pode ter tudo, menos autopiedade”.
Atentando à tradição do dito cinema de gênero, o jornalista Roberto Sadovski refere-se ao melodrama e menciona Douglas Sirk, que em 1959 trazia a melancolia em Imitação da vida – em uma época na qual ninguém parecia perceber o subtexto que retratava a realidade: “A geração seguinte, com R.W. Fassbinder, ajudou em sua desconstrução nas décadas seguintes fazendo com que pudéssemos enxergar essa sutileza, inclusive na mudança do eixo dramático dos homens para as mulheres.” (Blog do Sadovski, 2019).
Em resposta, Aïnouz se diz fã de Imitação da vida, mas declara que para ele o grande expoente da história do cinema é O medo devora a alma (Alemanha, 1974), obra de Werner Fassbinder inspirada no trabalho de Sirk. No entanto, admite que Imitação da vida – filme a que assistia na “Sessão da Tarde”, sem entender muito, achando-o meio farsesco, emocionando-se, mas, sem compreender o motivo – acabou pautando A vida invisível:
Eu tentei, sim, resgatar esse lugar, mas resgatar esse lugar agora. Pra’ te dar um exemplo moderno, eu acho que Longe do Paraíso (dirigido por Todd Haynes em 2002) é uma citação, não acho que seja uma releitura. Já o Fassbinder tornava os temas contemporâneos, então era muito importante pra’ mim trazer esse elemento moderno que não estava ali. Primeiro, eram filmes feitos sobre a época do Macarthismo, absolutamente puritanos em que tudo era contado por metáforas, tinha o elemento do medo. Então era importante explicitar coisas que nos anos 50 não podiam ser explícitas. A Martha diz que eu trato as personagens com muita crueldade, o que é verdade, porque é uma história muito cruel. (Blog do Sadovski, 2019).
Ainda na seara da influência de seu repertório cinematográfico no processo criativo, Aïnouz relembra a vontade de fazer um 0075: “Eu nem sei se o 007 é tão contemporâneo, mas o que eu acho fascinante é que tem gênero, é um filme de ação, com um personagem fascinante que fala sobre a Guerra Fria de maneira maravilhosa.” (Blog do Sadovski, 2019). O cineasta questiona como seria a personagem James Bond hoje, com uma mistura de tudo o que há no cinema, mas também com uma contundência política que é pouco mencionada:
A razão que eu te falo isso é, daquele momento pra’ cá, a gente no Brasil é sempre colocado num lugar que é ou cinema de autor ou cinema de público, entende? Isso é uma palhaçada! O Christopher Nolan é autor? O Spielberg é autor? Claro que sim! O Almodóvar, o Mike Leigh são autores. Quantos filmes essas caras já fizeram e quantos milhões de pessoas já viram seus filmes. Essa dicotomia não é produtiva para o Brasil e precisa acabar. E aí vão continuar acusando a gente de fazer filme de autor que tem pouco público e um filme genérico que tem muito público. A história prova que o melhor é juntar as duas coisas. Não sei se seria o 007, mas eu ficaria animadíssimo em fazer alguma coisa desse tipo. (Blog do Sadovski, 2019).
Ao que nos parece, na busca pela ruptura desta dicotomia cinema de autor / cinema de público, Aïnouz acaba por ressignificar o melodrama em A vida invisível, propondo o que chama de melodrama tropical, noção que segundo o diretor teria lhe ocorrido após a finalização do filme, sem premeditações ou racionalizações. Considerou importante ocupar o lugar do melodrama por uma questão pessoal: trata-se de um gênero que lhe comove, que aprecia. Lembrando-se dos melodramas egípcio, mexicano, e do americano da década de 50, bem como do pequeno-burguês da França do século 18, perguntava-se o que seria o melodrama brasileiro: “Como é que a gente traduz esse gênero, se apropria dele e faz com que ele seja só nosso? E aí veio essa palavra tropical, que me pareceu adequada. Então fui tentar entender quais são os nossos códigos.” (Cult, 2019).
A concepção de uma tradução do gênero pode ser atrelada ao que Ismail Xavier (2000, p. 83) denomina como apropriação pop do melodrama, que em 1980 encontra no cineasta espanhol Pedro Almodóvar sua vertente mais visível. “A vertente pop incorpora, por meio da paródia, os deslocamentos de valores operados pelo hedonismo da sociedade de consumo, dentro do já tematizado choque do arcaico e do moderno que nós brasileiros vivenciamos esteticamente com o tropicalismo, a partir de 1967-68.”.
Aïnouz afirma que durante o processo de criação de A vida invisível, quando teve o propósito de abordar a descolonização dos corpos femininos e das identidades, pensava muito em Pedro Almodóvar, cineasta que “fala de temas importantes em um cinema forte, que, ao mesmo tempo, dialoga com muita gente” (El País, 2019); neste diapasão, a personagem Filomena, do livro de Batalha (A vida invisível de Eurídice Gusmão), ao afirmar que família não é sangue, é amor, constituiu-se em motivação principal para a realização do filme. No que concerne às cenas de sexo, planejadas de forma que evocassem algo de ridículo e provocassem sensações de estranhamento, o diretor revela ter buscado inspiração no espanhol “(...) essa coisa de olhar o sexo não como lugar de prazer, mas sim de relações de poder, de um consenso horroroso” (El País, 2019).
As relações de poder no filme, diga-se, são impostas a partir do convívio íntimo do ambiente doméstico; há um melodrama que se estrutura na saga familiar, privilegiando o elemento da mentira. Aïnouz observa que a “(...) pergunta era como fazer um álbum de família em duas horas. O casamento, a separação, o nascimento dos filhos das duas, a morte dos avós, o Natal. São coisas muito demarcadoras dessa estratégia narrativa.” (Blog do Sadovski, 2019). Tessituras narrativas baseadas em inverdades visando a manter o grupo familiar unido contam com redes de solidariedade tanto femininas quanto masculinas, posto que há “(...) homens que existem nas bordas, não são o centro de gravidade da trama, mas tem uma união muito forte” (Blog do Sadovski, 2019), de modo a estabelecerem uma movimentação lábil que se articula entre o atenuamento e o reforço.
O poder patriarcal, que historicamente se mantém estruturado e garantido por meio de mecanismos conservadores, ao ser figurativizado em uma narrativa de época que rima com a atualidade, mesmo que em um movimento oposto (“o presente no passado”), atesta proposições encontradas em estudos recentes desenvolvidos por Ismail Xavier (2021), segundo as quais filmes brasileiros realizados nas primeiras décadas deste século colocam em tela, reiteradamente, a presença de um tipo de interação marcado pelo motivo temático “o passado no presente”:
Esse motivo significa algo distinto de uma injunção da memória pessoal no dia a dia, algo subjetivo que, uma vez lembrado, tem efeito no presente. Trata-se de um fato que se pode verificar a partir da figura de um retorno, seja de uma personagem ou de um vestígio material do passado que vem à tona, gerando novas tensões num ambiente e vindo ao centro da trama. (Xavier, 2021, p. 179).
Em Estratos do tempo (2014) o historiador alemão Reinhart Koselleck destaca, como ressalta Xavier, que “quem analisa uma comunicação narrativa não raro enfrenta a presença de ocorrências atinentes a estratos distintos do tempo que interagem na trama, de modo a articular camadas simultâneas e superpostas de tempo que se relacionam de modo peculiar” (Xavier, 2021, p. 184).
Ao entrevistar Aïnouz para o seu portal online, Sadovski (2014) afirma considerar curioso que o agrupamento familiar forçosamente estruturado em acordo com expectativas de sociedades de épocas remotas, como se passa no filme em pauta, ainda encontre lugar na contemporaneidade, posto que uma parcela significativa da sociedade assume que família tem de ser organizada precisamente no formato daquela que habita a tela de A vida invisível, nos moldes da chamada família tradicional. Questionado sobre se não estaria apresentando uma cápsula do tempo, com toda a dor e crueldade inerentes, bem quando se percebe no país uma vontade de retrocesso, o diretor observa que em momentos de crise o melodrama vem a ser, talvez, o gênero cinematográfico mais potente – devido a seu caráter didático:
Em momentos de crise, as minorias, ou os subalternos, ou os periféricos são meio que afogados pelo mundo e eles tentam colocar a cabeça fora d´água. Foi uma decisão estratégica fazer o filme dessa maneira. Existe um recrudescimento de uma série de coisas que são terríveis! Como a mentira, que foi a base trôpega dessa família por causa desse pai em relação a essas filhas. Toda família tem mentira, mas quando é uma família de escolhas as coisas são colocadas de uma maneira muito mais aberta, com menos dor. Talvez a dor que a gente veja em A Vida Invisível seja a dor de se manter algo de pé que não se sustenta mais. A mãe morre literalmente de tristeza! Então era muito importante fazer uma crítica a essa família a qual muita gente quer retomar. (Blog do Sadovski, 2019).
(...) há um desespero do patriarcado para se manter a qualquer custo e a qualquer preço, não só no Brasil, mas no mundo. Por definição, o melodrama é a história de alguém que está tentando colocar a cabeça pra’ fora da água enquanto o mundo quer que ela se afogue. É isso o que estamos vivendo. (Cult, 2019).
A vida invisível pode sim funcionar como um espelho do Brasil de hoje: “É sobre a vida invisível, a voz silenciada, a vida apagada. A sensação que eu tenho no Brasil especificamente é de desamparo. É um pouco o que você sente com a Eurídice no final do filme” (Cult, 2019). Para Aïnouz, Eurídice e Guida exploram o campo da resistência, da resiliência. O que lhe interessava era “Falar de solidariedade e do preço altíssimo que existe quando esses laços são rompidos. E falar disso politicamente.” (Cult, 2019).
Na esteira de Ismail Xavier, que ao discorrer sobre o melodrama no cinema menciona os diretores Werner Fassbinder, Manoel de Oliveira, Carlos Saura, Bigas Luna, Arnaldo Jabor, Humberto Solas, Arturo Ripstein e Gutierrez Álea, podemos dizer que Aïnouz foge do melodrama canônico na medida em que tempera o gênero com uma tonalidade reflexiva, irônica: “Explora-se o potencial energético do gênero mas inverte-se o jogo, pondo em xeque a ordem patriarcal ou buscando, ao contrário de enlevos românticos, uma anatomia das lutas de poder na vida amorosa e no cenário doméstico.” (Xavier, 2000, p. 83)6.
Aïnouz, ao ensejar uma fala política que tenha potência de efetividades e alcance, reconhece a necessidade de estabelecer uma conexão com o público, fugindo da narrativa de caráter naturalista:
Como é que você faz um filme sobre um país que tem um estupro a cada 11 minutos? Como é que fala disso? Eu acho que você fala disso de uma maneira discursiva ou sensorial. Então a aposta é essa: de que fazendo um filme que se passa há 50 anos, mas que trata de questões que infelizmente têm permanências, eu possa ser mais contundente do que falando diretamente das questões que vivemos hoje. Alguém vai querer sair de casa pra’ ver uma história de alguém que foi assassinado por um crime de ódio sexual? Eu preciso falar desse assunto, mas eu posso fazer isso através da época e do gênero, através de códigos que possam te afetar sem necessariamente te descrever e explicar. (Cult, 2019).
Não obstante a relação com o contexto brasileiro atual, Aïnouz sustenta que seu filme não se configura como essencialmente contemporâneo, considerando que as mulheres conquistaram muito; os homens, entretanto, não se modificaram: “Este é um filme que celebra a resistência feminina e fala quanto nós precisamos mudar”, analisa o diretor, finalizando: “Minha esperança é que os espectadores homens saiam do cinema falando: ‘o que eu fiz é muito grave, o que eu faço é grave’. Para as mulheres, espero que seja um sentimento de ‘chega’. De não querer sentir essa dor” (Carta Capital, 2019).
Em acordo com o postulado de Ismail Xavier (2000), Aïnouz convida o público a assumir papéis psíquicos, ou seja, busca-se construir um imaginário melodramático, em que o espectador reconhece e se identifica com aquilo que encontra na tela do cinema.
Como bem observa Aïnouz, quando se realiza um filme como A vida invisível, espera-se que o espectador se identifique com a produção cinematográfica. Nesta perspectiva, salienta Robert Stam em Introdução à teoria do cinema:
Muito antes da teoria do cinema dos anos 70, Fanon empregou a noção lacaniana de “fase do espelho” como parte de uma crítica da psiquiatria colonial. Para ele, a identificação era uma questão a um só tempo psicológica, cultural, histórica e política. Um dos sintomas da neurose colonial, por exemplo, era a incapacidade demonstrada pelo colonizador de identificar-se com as vítimas do colonialismo. A objetividade da mídia, apontou Fanon, trabalha sempre contra o nativo. O tema da identificação também possuía uma dimensão cinematográfica, intimamente relacionada a debates posteriores na teoria do cinema, que igualmente passaram a tratar de identificação e projeção, narcisismo e regressão, ‘posicionamento espectatorial’, ‘sutura’ e ponto de vista como mecanismos básicos na constituição do sujeito cinematográfico (Stam, 2003, p. 117).
Deste modo, entendemos, Aïnouz não estaria dedicado a realizar um cinema de autor ou um cinema de gênero; estaria buscando, antes, construir estratégias que possibilitem a identificação subjetiva do público com a história narrada, potencialmente sentida e reconhecida. O cineasta inclusive critica, no que diz respeito à produção cinematográfica brasileira, eventuais expectativas restritivas:
(...) Quem foi que disse que a produção nacional, salvo exceções, tem de ficar restrita a espaços diminutos? Está na hora de reencontrarmos nosso público. E isso não significa abrir mão de filmes que buscam essa sensorialidade (...). Acredito que justamente os filmes de gênero — como o melodrama — têm o poder de ser consistentes e promover reflexões a partir das sensações, e não de eventuais invenções da linguagem. Minha assinatura está aí, nesse uso que faço do gênero. É possível manter a assinatura do autor dialogando com um público mais amplo. Acredito muito nisso. (GaúchaZH, 2019).
Estreitar o caráter político do filme ao autorismo certamente estaria fadado à uma possível fragilidade teórica, pois o cinema de gênero, ao buscar uma relação de familiaridade com o público, também trabalha nesta concepção política: “(...) Gracias a Lévi-Strauss y otros antropólogos estructurales, los críticos de los géneros descubrieron que la narrativa puede ser una forma de autoexpresión de la sociedad que apunta directamente a las contradicciones constitutivas de ésta” (Altman, 2000, p. 50).7 Seria possível, portanto, perceber uma consonância na crítica ao reconhecer que os gêneros cinematográficos integram cada vez mais um sistema cultural complexo que permite ao espectador afrontar, colocar em dúvida e organizar – mesmo que de modo imaginário – as contradições que se proliferam na sociedade em que vive.
Para Aïnouz, não faria sentido evidenciar distinções entre cinema de gênero e cinema de autor, pois seu trabalho busca justamente construir indefinições – e labilidades, entendemos – entre o autorismo e o melodrama, criando um filme capaz de unir as pessoas para que se emocionem juntas. Para ele, isso seria o político: o coletivo que o cinema proporciona (GaúchaZH, 2019).
A problemática dicotomia foi observada no Brasil do Cinema Novo, pois ao negar certos gêneros como o melodrama e a comédia de costumes, propondo em primeira instância produzir conhecimento, o movimento acaba por associar-se à dificuldade de comunicação com o público (Xavier, 1993, p. 116). Foi nos anos 1970 que para “sair do binômio grandes autores/pouco público, passou-se a procurar a incorporação dos gêneros de sucesso em nome de uma continuidade de produção (...)” (Xavier, 1993, p. 116).
Nessa perspectiva, realizando uma adaptação literária, trabalhando com um gênero clássico e contando uma história clássica, Aïnouz diz ter conseguido produzir com mais clareza, mas não com menos poesia. “Se tem algo de aventura nova para mim nesse filme é o fato de eu ter feito as pazes com a ideia de estar contando uma história. Antes eu duvidava disso. Eu sempre me interessei por outras coisas, pela sinestesia, pelo sensorial, o fluxo, o retrato de um personagem.” (Cult, 2019).
A ideia central de contar uma história, que perpassa as telenovelas, em especial no que concerne à teledramaturgia da década de 1970, lhe interessava; experimentou também um forte desejo, após as eleições de 2018, de falar com um público maior: “Que país é esse e quem são essas pessoas? Claro que isso [a eleição de Bolsonaro] foi depois do filme, mas já era algo eu estava sentindo depois do impeachment.”8 (Cult, 2019). Uma motivação para realizar um cinema que se aproxima da descrição realizada por Espinosa (1979), algo como se o cinema norte-americano ‘nascera para entreter’ e o cinema europeu ‘nascera para produzir arte’, o cinema latino-americano ‘nascera para o ativismo político’.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: melodrama, ressignificação, criação
O presente estudo examinou as consonâncias que se estabelecem entre as manifestações verbais do cineasta Karim Aïnouz – transcritas em veículos de comunicação – e as teorias de gêneros cinematográficos. Foi possível, a partir daí, detectar a recorrência de um pensamento que tende a valorizar o cinema como uma ação coletiva, no bojo da qual o acesso do público aos filmes é passível de revelar significações nos reconhecimentos e identificações do espectador em relação à obra. Verificou-se que ao enfatizar o diálogo com a sociedade, o diretor opta pelo cinema de gênero, sem deixar de reafirmar uma assinatura na cinematografia nacional.
Integrando as 20 maiores bilheterias de filmes brasileiros em seu ano de lançamento, na décima sétima posição, com mais de 117.222 espectadores9, A vida invisível oportuniza reflexões acerca da ação coletiva que se insere na fruição, no ato de assistir a um filme no cinema, enveredando-se para uma ação política, pois o conjunto de experiências interativas e de vida coletiva (o viver junto) associa-se, nos termos de Jacques Fontanille (2014, p. 65), a um conjunto de conteúdos axiológicos e sensíveis (normas, valores e paixões) que, por sua vez, é chamado de “forma de vida”. A convivência é a substância da qual emergem as formas de vida humana. Há, portanto, uma categoria genérica do ser/estar junto, agir com ou agir contra que pode originar experiências interacionais, desencadeando deste modo uma ação política.
Considerando o cinema como campo do sintoma, o mundo que se apresenta na tela é passível de provocar na plateia um estranhamento10 motivado pela re-apresentação de problemas crônicos da sociedade (a brasileira, no caso em análise); nessa perspectiva, o espectador identifica-se e reage, na sala escura, ao que lhe afeta. No que se refere ao cinema de gênero, o elo com o público pode se dar pelo contrato estabelecido por uma estrutura alicerçada por produtores, diretores, distribuidores, exibidores e espectadores, evidenciando como os gêneros expressam sensibilidades sociais. A esse respeito, Rick Altman observa que o teórico Dudley Andrew “ofrece una metáfora de equilibrio activo al afirmar que los géneros equilibran a los espectadores con la máquina ideológica, tecnológica, significativa e ideológica del cine” (Altman, 2000, p. 35)11.
A capacidade inventiva de Karim Aïnouz, entendemos, possibilita que o gênero cinematográfico melodramático seja ressignificado no âmbito do cinema brasileiro, em cujo contexto o cineasta, seguindo a tendência latina do autorismo, ocupa um lugar de contornos revolucionários. Ao priorizar uma estética fílmica que se dilui no interior da vida em sociedade, o melodrama de Aïnouz projeta na tela do cinema e em telas outras o país tropical de vidas invisíveis.
Referências
Altman, R. (2000). Los géneros cinematográficos. Barcelona: Paidós Comunicación.
Astruc, A. (2012). Nascimento de uma nova vanguarda: a caméra-stylo. Traduzido por Matheus Cartaxo. 2012. Disponível em: <http://www.focorevistadecinema.com.br/FOCO4/stylo.htm>. Acesso em 04 de dez. 2022.
Autor. O título do artigo foi retirado para assegurar avaliação cega. Intexto, v. XX. 2019. Disponível em: <O link foi retirado para assegurar avaliação cega>. Acesso em: 12 dez. 2022.
A Vida invisível. (2019). Dir. Karim Aïnouz. Brasil: Vitrine filmes. DVD (2h25m).
Batalha, M. (2016). A vida invisível de Eurídice Gusmão. Editora Companhia das Letras: São Paulo.
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Endnotes
1 Estudos vinculados à Teoria dos Cineastas propõem uma metodologia investigativa disposta a receber e interpretar de modo sistemático fontes primárias, provenientes da reflexão crítica dos realizadores em relação ao ato criativo. Dentre as fontes sugeridas figuram entrevistas concedidas, depoimentos, manifestações verbais do cineasta, possibilitando encará-lo “como um teórico in fieri” capaz de, também ele, por meio do que “diz e escreve sobre o cinema, assim como com os próprios filmes, contribuir para o panorama mais vasto da teoria do cinema” (2015, p. 31).
2 Como visto em estudo anterior (Autor, 2019), Aïnouz costuma desenvolver a roteirização de seus filmes até a finalização da obra na mesa de edição.
3 Após a morte do marido de Eurídice, o único a dispor da senha do cofre é o filho homem do casal; conservados e tratados como herança patriarcal, os segredos familiares ali no filme costumam ser mantidos sob os cuidados de figuras masculinas, funcionando como mecanismo de controle do convívio doméstico.
4 Tomando a ideia de Jacques Fontanille (2014, p. 70) no que diz respeito à atitude de o sujeito “continuar o curso da vida apesar de X”, para tanto empregamos a expressão ‘apesar de...’. A pontuação, aqui, funciona como abrigo de interrogações, exclamações, pontos e vírgulas (incertezas, perplexidades, pausas) de uma vida cujo curso, resiliente, não é interrompido. As reticências indicam a omissão de algo que não se quer ou não se pode revelar, uma suspensão ou hesitação, além da alusão a aberturas de possibilidades que, no traçado dos três pontos, representariam caminhos a serem percorridos (ressalvadas as incertezas que se aninham entre as fendas do incógnito).
5 Por ocasião do lançamento no Brasil, o primeiro longa-metragem da franquia James Bond, O satânico Dr. No (filme americano-britânico, 1962; gênero espionagem/ação; realização Terence Young; roteiro R. Maibaum, J. Harwood, B. Mather, com base em Dr. No, obra literária de Ian Fleming), protagonizado pelo ator escocês Sean Connery, não exibia no título o código da personagem (“007”), até então desconhecido; posteriormente, passou a 007 contra o satânico Dr. No.
smail Xavier (2000), juntando-se ao pensamento de Peter Brooks (1995), Sílvia Oroz (1999) e Ivete Huppes (2000), dedica-se a desmistificar o melodrama como um gênero limitado, portanto, propondo um olhar para os filmes além de um conceito fechado, mas como um imaginário que é construído pelo jogo de sensações que induz um modo de ver e sentir o mundo. Neste sentido, Aïnouz, criador de um cinema predominantemente de sensações, subverte algumas características canônicas do gênero, como o infortúnio da vítima inocente.
“(...) Graças a Lévi-Strauss e outros antropólogos estruturalistas, críticos de gêneros descobriram que a narrativa pode ser uma forma de autoexpressão da sociedade que aponta diretamente para suas contradições constitutivas.” (Altman, 2000, p. 50).
Aïnouz observa as transformações políticas que o Brasil sofrera durante o processo de realização do filme: por ocasião da primeira vez em que teve contato com Fernanda Montenegro (intérprete de Eurídice na fase final da personagem), estava sendo determinada a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva; a obra chega ao público, coincidentemente, logo em seguida à sua liberação: “É uma coincidência... Fazer filme demanda um certo tempo. A gente vai aglutinando o que acontece nesse tempo. Não tem como não refletir o que acontece na sociedade, não tem como não ser político hoje em dia.”. (GauchaZH, 2019).
Dados disponibilizados pelo Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual – OCA.
O efeito de estranhamento de que tratamos aqui vincula-se aos estudos de Sigmund Freud, nos quais o unheimlich (o estranho) é entendido como “aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar”, proveniente de “algo familiar que foi reprimido”. (Freud, 1919/1996, p. 238)
Trad. nossa: “Dudley Andrew oferece uma metáfora de equilíbrio ativo ao afirmar que os gêneros equilibram os espectadores com a máquina ideológica, tecnológica, significativa e ideológica do cinema”, (1984, pág. 111)” (Altman, 2000, p. 35).