Produção e consumo culturais em plataformas
e redes digitais:
Reflexões sobre a reconfiguração de identidades de jovens
praticantes do Hip Hop em Parnaíba-PI
Cultural production and consumption on digital platforms and networks:
Reflections on the reconfiguration of identities young
Hip Hop practitioners in Parnaíba-PI
Producción y consumo cultural en plataformas y redes digitales:
Reflexiones sobre la reconfiguración de las identidades de jóvenes
practicantes de Hip Hop en Parnaíba-PI
Gustavo Said
E-mail: gsaid@uol.com.br
DOI: 10.26807/rp.v27i116.2006
Resumo
Através da observação direta e da realização de entrevistas e da aplicação de questionários com integrantes do movimento Hip Hop de Parnaíba-PI, essa pesquisa exploratória buscou compreender a relação de 15 jovens de ambos os sexos com as tecnologias de mídia e, sobretudo, investigar as práticas de consumo e de produção no âmbito das mídias digitais, num contexto de excessiva conexão e de participação intensa dos sujeitos em mídias sociais e de reconfiguração de identidades individuais e coletivas. Após análise dos dados, foram elencadas três temáticas principais que serão discutidas ao longo do texto: a) consumo desterritorializado; b) comunidades virtuais: uso compartilhado e colaborativo; c) consumo de mídia tradicional: tensões, impasses e críticas.
Palavras – Chaves: Consumo cultural-tecnológico. mídia digital. identidades e mídias sociais. identidade e Hip Hop.
Abstract
Through direct observation, interviews and the application of questionnaires with members of the Hip Hop movement of Parnaíba-PI, this exploratory research sought to understand the relationship of 15 young people of both sexes with the media technologies and, above all, to investigate the consumption and production practices in digital media, in a context of excessive connection and intense participation of subjects in social media and the reconfiguration of individual and collective identities. After data analysis, 03 main themes were listed, which will be discussed throughout the text: a) deerritorialized consumption; b) Virtual communities: Shared and collaborative use; c) Traditional media consumption: tensions, impasses and criticism.
Keywords: Auteur cinema. Genre cinema. Karim Aïnouz. A vida invisível.
Resumen
A través de observaccion directa, de entrevistas y la aplicación de cuestionarios con miembros del movimiento Hip Hop de Parnaíba-PI, esta investigación exploratoria buscó comprender la relación de 15 jóvenes de ambos sexos con las tecnologías de los medios de comunicación y, sobre todo, investigar las prácticas de consumo y producción en los medios digitales, en un contexto de conexión excesiva y de participación intensa de los sujetos en las redes sociales y la reconfiguración de las identidades individuales y colectivas. Después del análisis de datos, se enumeraron 03 temas principales, que se discutirán a lo largo del texto: a) el consumo de deerritorialized?; b) comunidades virtuales: uso compartido y colaborativo; c) consumo tradicional de los medios: tensiones, impasses y críticas.
Palabras clave: consumo cultural-tecnológico. Medios digitales. Identidades y redes sociales. sociabilidad y Hip Hop.
Introdução
Não restam dúvidas de que as tecnologias midiáticas modificam as linguagens, as formas de sociabilidade e de experiência, as relações sociais e as maneiras de conhecer e representar o mundo. Essa premissa, contudo, não pode se restringir ao atributo da lógica dedutiva que comporta uma generalidade, por mais paradoxal que isso – restringir-se a uma generalidade – possa parecer: apenas apontar para a irreversibilidade e para a peremptoriedade de tais mudanças não indica, de outro modo, o que, de fato, empiricamente, essas mudanças revelam no nível dos processos, das práticas, dos comportamentos e hábitos de consumo em cada caso singular. Em outras palavras: o que os sujeitos fazem com as tecnologias digitais, ou seja, a singular maneira como se apropriam das mesmas só pode ser revelada em cada situação concreta estudada e é de suma importância para a compreensão do fenômeno mais amplo de produção e consumo culturais. Essa é, portanto, a proposição defendida nesse texto.
Assim posto, no contexto atual, de excessiva conexão em plataformas digitais e de participação intensa dos sujeitos em mídias sociais, é prudente que o pesquisador relacione alguns – mas não todos, evidentemente – aspectos norteadores de qualquer reflexão sobre o tema em pauta: a) a forma colaborativa e interativa na produção e no consumo de mensagens e informações; b) a velocidade na circulação dos conteúdos, que provoca a compressão espaço-temporal, d) as dinâmicas sociais e culturais nas quais se inserem os usuários, com seus modos próprios de acesso às tecnologias; e) o papel central que a circulação das mensagens passou a ocupar na organização de fluxos produtivos e de consumo; e f) a convergência de conteúdos e de plataformas tecnológico-digitais.
Por outro lado, na esteira dos processos apontados se torna evidente a relação do uso tecnológico e da produção e do consumo culturais com as estratégias de inserção e participação em grupos, bem como de diferenciação social, que conduzem à constituição de novos sujeitos individuais e coletivos. Desta forma, está em curso um processo de reconfiguração constante de subjetividades e identidades, motivado, em grande parte, pela gama de conteúdos e de relações que as plataformas de mídia digital oferecem.
Diante desse quadro teórico, é preciso reconhecer a complexidade das relações dos sujeitos com tecnologias e conteúdos midiáticos e, sobretudo, as distintas formas de apropriação dos mesmos para integração na vivência cotidiana, conforme destaca Jacks (2010). É por esse motivo que não é possível compreender a dimensão ocupada pelas tecnologias digitais na vida das pessoas e instituições se não forem considerados os modos de apropriação de ferramentas e produtos. No cenário da convergência midiática, as relações das pessoas, especialmente os jovens, com as Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) mudaram significativamente, impondo, como se disse, novas formas de inserção social, sociabilidade e experiência.
As pessoas participam de mídias sociais, fazem pesquisas na internet, assistem à televisão, ouvem música, enviam mensagens pelo celular, participam de múltiplos chats e fóruns de discussão online e de games interativos, quase sempre de forma simultânea. Além disso, é preciso considerar o aspecto relativo à mobilidade. Com o advento do wireless e o desenvolvimento de aparelhos e dispositivos portáteis, os espaços públicos tornaram-se uma extensão do universo privado – e o que era privado tem caráter público. Nessa ambiência onde quase tudo é público, o cotidiano é permeado por elementos emocionais que conferem afetividade e conexão interpessoal às relações constituídas na rede, onde quer que estejam os sujeitos (SAID, 2016, p.47)
O objetivo desse texto é discutir como se dá a relação de jovens residentes em áreas urbanas ou rurais de uma cidade do interior do Piauí, com idade entre 18 e 24 anos, com as tecnologias de mídia. Mais especificamente, a pesquisa pretendeu investigar práticas relacionadas ao consumo e à produção cultural-midiáticos e à convergência das TICs, no âmbito das plataformas digitais. Para tanto, foi selecionada a cidade de Parnaíba, no interior do Piauí, situada no litoral, extremo Norte do Estado, onde foi realizada uma pesquisa de campo, no ano de 2018. Foram consultados aleatoriamente 15 jovens de ambos os sexos (a idade média foi de 22,5 anos, sendo 09 homens e 06 mulheres), residentes das zonas urbana e rural, porém, todos integrantes de grupos de Hip Hop da cidade de Parnaíba. Critérios relacionados à renda média familiar não foram adotados para a composição da amostra. Contudo, grande parte dos respondentes ou não exerce emprego formal (apenas 03 tem emprego formal) ou vive de pequenos serviços, os chamados ‘bicos’, como vender sanduíche ou cocada em faculdades e/ou instituições públicas. Todos eles, por outro lado, auferem algum recurso esporádico vindo de ocasionais patrocínios para apresentação e show em outras cidades ou de algum pagamento feito pela organização desses eventos. Com relação ao nível educacional, a pesquisa mostra que mais da metade (09) possui nível médio completo, enquanto uma minoria faz curso superior (total de 03). Ainda sobre as características dos participantes, percebe-se que todos possuem perfil em alguma mídia social, sendo as mais usadas o Facebook, o WhatsApp e o Instagram. A forma de acesso prevalecente às mídias sociais, que contempla 100% dos pesquisados, é o aparelho de telefonia móvel, e em alguns poucos casos o notebook e o computador.
Por se tratar de uma pesquisa exploratória, com inspiração etnográfica, os procedimentos metodológicos utilizados foram a observação direta e a análise de dados contextuais, a realização de entrevistas individuais semiestruturadas e a aplicação de um questionário para levantamento de dados sociodemográficos.
Como a quantidade de dados coletados é vasta, ao invés de um texto que explore seu aspecto quantitativo, apresentando conclusões gerais reforçadas por cálculos percentuais, optou-se por refletir sobre alguns temas pontuais que foram destacados pelos respondentes nas entrevistas. Assim, focando-se menos na caracterização mais ampla do grupo de respondentes e muito mais na simetria e na frequência de certos dados, pontos de vista e comentários prestados, foi possível dar ênfase, com base na análise de conteúdo desse material, a certos temas por eles elencados, a partir dos quais se buscou um entendimento mais qualitativo das práticas, comportamentos e hábitos de produção e consumo comuns ao grupo e reveladores de processos interativos dos sujeitos entre si e destes com as plataformas tecnológicas. Tal decisão ampara-se ainda no fato de que os respondentes pertencem a um grupo (o movimento Hip Hop) que possui peculiaridades e características específicas compartilhadas pelos seus membros e que, no plano simbólico, funcionam como ‘chaves’ para inclusão e participação no mesmo, ou seja, um conjunto de referentes identitários que conformam o grupo. Apesar disso, é preciso considerar que, para além das características comuns que subjazem a todos os grupos de Hip Hop, muitas delas compartilhadas num espectro global, há entre eles sutis nuances e diferenças pouco perceptíveis que podem influenciar na forma como se dá o consumo cultural- tecnológico.
Com base nessa observação e levando a cabo a decisão de focar em dados qualitativos, foi possível definir três temáticas principais, reveladas pelas consultas feitas, que possibilitaram o desenvolvimento do texto: a) consumo desterritorializado; b) comunidades virtuais: uso compartilhado e colaborativo; c) consumo de mídia tradicional: tensões, impasses e críticas.
O texto está dividido em dois tópicos. No primeiro, uma contextualização e uma descrição do cenário da pesquisa dão destaque aos dados relativos às tecnologias de mídia, ao consumo cultural-tecnológico e à organização dos grupos de Hip Hop na cidade de Parnaíba; no segundo, apresentam-se os dados coletados e faz-se a interpretação deles.
Situando-se no Norte do Piauí, na região Nordeste do Brasil, Parnaíba, com 163.087 habitantes, é segundo município com maior população do Estado, atrás apenas da capital Teresina, cuja população alcançou quase 869.523 habitantes, do total de 3.270.174, conforme estimativas publicadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE (2022). Junto com Ilha Grande, Luís Correia e Cajueiro da Praia, forma o conjunto de quatro municípios litorâneos do Piauí. Encontra-se quase conurbada com a vizinha Luís Correia, que possui cerca de 30 mil habitantes. A cidade está localizada à margem direita do ‘rio’ Igaraçú, que constitui o braço mais meridional do delta do Rio Parnaíba. Situada próxima ao litoral e a 366 km de Teresina, Parnaíba tem se destacado como a porta de entrada para o Delta do rio Parnaíba e do roteiro conhecido como Rota das Emoções, que inclui ainda o litoral dos estados do Ceará e o do Maranhão.
Parnaíba destaca-se pela bela paisagem, marcada pelos carnaubais, e pela moderada atividade comercial e industrial. Ressalte-se o significativo afluxo de pessoas de outros Estados na última década, o que provocou uma visível diversificação da oferta de serviços hoteleiros, educacionais, gastronômicos e de lazer. Tendo se constituído numa cidade turística e universitária, Parnaíba passou a atrair visitantes de todas as partes, promovendo uma mescla de culturas diferentes e alterando os padrões antigos de cidade tradicional e relativamente conservadora.
Segundo dados do IBGE (2018), no tocante à estrutura de comunicação, a cidade recebe o sinal analógico (VHF) de nove emissoras de televisão aberta e oito de emissoras com sinal digital (UHF). Possui uma emissora de rádio AM e três de rádio FM, além de um jornal impresso e 16 jornais on-line. Parnaíba tem cobertura de quatro operadoras de telefonia móvel (Oi, Claro, Vivo e Tim), além de serviço de internet 4G e acesso gratuito à internet em locais públicos, como várias praças cobertas pelo programa Piauí Digital. Um dado relevante é a criação, em 2018, da DELTATICS (Instituto de Tecnologia da Informação e Ciências do Delta), fruto de um projeto de docentes de computação do antigo campus da Universidade Federal do Piauí (desde abril de 2018, Universidade Federal do Delta do Parnaíba-UFDPAR), uma estrutura que abriga empresas de tecnologia, promovendo a interlocução entre academia, governos e empresas.
No tocante aos eventos culturais, há uma diversificada oferta de eventos, sobretudo por conta da intensa atividade turística. Há que se destacar, para os objetivos dessa pesquisa, que a cidade já realizou, em 2015, a 8ª edição da Batalha Litoral Style, um Encontro Regional de B. Boys, que contou com o apoio da Prefeitura de Parnaíba, através da Superintendência de Cultura. Na oportunidade, na praça Santo Antônio, no centro da cidade, diversos grupos de Hip Hop puderam apresentar-se para um público que, após algumas edições do evento, já pode ser considerado cativo. Para corroborar essa afirmação, saliente-se que um evento similar foi realizado em 2018 num shopping da cidade. No site oficial do Parnaíba Shopping (2019), está registrado o seguinte: “a escolha do Parnaíba Shopping foi estratégica para a divulgação da arte, já que possui um intenso fluxo de pessoas e assim se torna mais fácil mostrar aos interessados que existe o grupo e podem praticar e aprender o Break Dance”. Também em 2018, na Associação Atlética Banco do Brasil de Parnaíba-PI, aconteceu o show Parnaíba vai virar Dubai, com o fenômeno do Hip Hop nacional, o grupo musical Hungria, de Brasília-DF.
A história do Hip Hop em Parnaíba segue o fluxo do espraiamento dessa manifestação cultural no Brasil, sobretudo a partir de meados dos anos 1980, quando, de acordo com Bastos (2008), o movimento passa a se organizar em São Paulo e no ABC Paulista, de lá se espalhando para outros Estados, incorporando três elementos principais: o break, o graffiti e o rap. Inicialmente, era divulgado nos bailes e nas lojas específicas de música negra, mas logo depois passa a ocupar as ruas e as praças dos grandes centros urbanos, tornando-as um espaço para a socialização dessa manifestação cultural juvenil. Lourenço (2010) destaca que o Hip Hop despontou na periferia de São Paulo e se desenvolveu nos anos 80, tornando-se popular somente na década seguinte. Segundo a autora (op. cit.), a estação de metrô São Bento, situada no centro da capital paulista, é considerada o berço e a referência da cultura Hip Hop no Brasil.
O surgimento do Hip Hop, contudo, aconteceu na década de 1960, nas áreas centrais de comunidades jamaicanas, latinas e afro-americanas da cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos. Era, na ocasião, um movimento de jovens negros e hispano-americanos dos guetos pobres do Bronx, nos arredores de Nova Iorque, que, através de manifestações artísticas, tentavam se expressar criticamente, denunciando as condições de exclusão econômica e social e o preconceito pelo qual passavam, sendo esse um dos elementos comuns que congregam os diversos praticantes ao redor do globo.
Em Parnaíba, de maneira organizada, os muitos praticantes de Hip Hop, na maior parte, jovens de camadas média e baixa da população, contam com uma associação (Associação Movimento Hip Hop da Planície Litorânea) que congrega os adeptos da manifestação cultural, promove eventos e divulga as apresentações dos grupos.
Nessa parte do texto, são apresentadas e discutidas as três temáticas que resultaram da análise de conteúdo das entrevistas e das observações feitas durante a pesquisa de campo, como parte dos dados gerais coletados. Com isso, não se quer dizer que são apenas essas as temáticas reveladas pela pesquisa, mas, em função de sua frequência, se tornam relevantes, a tal ponto que se optou por dar destaque às mesmas, deixando novas observações e reflexões para textos posteriores. Outra ressalva importante diz respeito ao fato de que as três temáticas discutidas a seguir não se encontram estanques. Ao contrário, elas se reforçam mutuamente e se interpenetram, de tal sorte que um mesmo dado revelado por um participante da pesquisa pode ser explorado em uma ou mais delas.
De imediato um aspecto chamou a atenção nos dados das entrevistas e dos questionários. Ele diz respeito ao fato de que a maior parte dos sujeitos pesquisados acessa a internet em lugares públicos com conexão gratuita, uma prática comum em públicos jovens de nível de renda precário. Segundo um dos entrevistados, do sexo masculino, 19 anos, as praças e demais lugares com acesso gratuito são utilizados pelos membros do movimento Hip Hop para gravar, compartilhar e assistir vídeos, preferencialmente. Os encontros em lugares com serviço de Wi-Fi gratuito promovem, por outro lado, uma ressignificação do espaço público e do seu entorno pelo grupo. Por conseguinte, a ocupação e a ressignificação do espaço cumprem uma função estratégica, criando uma identidade do grupo nas mídias sociais, pois é ali, quase sempre, que as apresentações são gravadas (salvo quando da realização de eventos) e imediatamente postadas, gerando para cada integrante uma espécie de capital cultural e social baseado em critérios ligados à exposição da imagem e à publicação de fotos e vídeos nas mídias sociais: o número de acessos e likes (curtidas), os comentários favoráveis, o compartilhamento das publicações são, segundo eles, uma forma de atrair visibilidade para o trabalho e, em consequência, ser convidado para eventos de Hip Hop.
Um dos lugares preferidos dos entrevistados é a praça conhecida como Quadrilhódromo, uma praça muito usada diariamente por ciclistas, skatistas, adeptos de caminhada e, eventualmente, para realização de shows e apresentações artístico-culturais, como as tradicionais quadrilhas das festas juninas, razão pela qual o lugar recebeu a designação mencionada. Não apenas pela reunião de públicos díspares, mas também pelo fato de oferecer conexão gratuita à internet é que a praça passou a ser um dos lugares mais usados pelos entrevistados. A conexão à internet, pode-se dizer, forçou em certa medida a ocupação e a reorganização do local.
Todos os entrevistados afirmaram acessar as mídias sociais durante a maior parte do dia, sem necessariamente escolher um horário específico. Dois deles, ambos de 23 anos, do sexo masculino, e uma do sexo feminino, 20 anos, assumiram usar o celular para conexão em redes o dia inteiro, como estratégia clara de interação grupal e de valorização da cultura do Hip Hop. Quando questionado sobre o assunto, um deles justificou: “... porque é até uma forma de divulgar o meu trabalho (...) de contato com o pessoal do movimento Hip Hop.” Por outro lado, estar permanentemente conectado implica em romper com uma lógica espacial-temporal, na medida em que, mesmo estando afastados dos lugares com conexão gratuita, os sujeitos continuam imersos no ambiente das redes. Também implica em desconsiderar o escalonamento do tempo nas práticas de produção e consumo culturais, já que não há a necessidade de fixar horários para assistir e postar vídeos.
O que se percebe com a afirmação anterior é a necessidade de seguir uma cultura de grupo, de assumir elementos identitários comuns ao movimento do Hip Hop para além dos limites físicos e geográficos, não importando se o praticante se encontra numa cidade do interior do Piauí. Essa força identitária demonstrada é uma característica do movimento Hip Hop em nível mundial. Como dizem Takaki e Coelho (2010), é possível considerar o Hip Hop uma força que impulsiona e induz os praticantes, uma espécie de cultura em ação que ultrapassa barreiras físicas e socioculturais. É por esse motivo que o título dessa sessão (consumo desterritorializado?) se encontra na forma interrogativa. Ao invés de falar apenas de desterrritotialização como uma ação de desorganização do espaço, talvez seja também apropriado pensá-la como uma ação de reconstrução, de reorganização. Nesse sentido, está-se diante de multiterritórios e de territórios híbridos, ressemantizados pelas práticas de consumo e de produção artística, cultural e tecnológica, numa espécie de recuperação do sentido do lugar articulada aos interesses e às identidades dos grupos. Promove-se, assim, segundo as autoras citadas (Ibid), a construção de múltiplos territórios que se apropriam e ressignificam cotidianamente os espaços públicos da cidade. Em certo sentido, o movimento hip hop se impõe como uma forma de resistência à privatização dos espaços públicos promovida pela transformação espacial das cidades face à lógica do capital, como destaca Batalha (2019) ao analisar como, através da ação em praças da cidade de Belém, no estado do Pará, Norte do Brasil, o hip hop aparece como alternativa a esse processo, redefinindo espaços políticos de arte e cultura.
Porém, a ocupação e a ressignificação do espaço público acontecem na medida em que esse lugar pode oferecer alguma vantagem aos grupos. Nesse caso específico, é a possibilidade de conexão gratuita à internet que impulsiona os integrantes do movimento Hip Hop a definirem e elegerem aquele lugar como local de encontro, de interação e apresentação cultural, tudo devida e continuamente registrado pelos aparelhos de celular de cada participante. Cria-se, assim, uma rede de interconexão, que funde diferentes espaços e cria zonas híbridas, territórios simultâneos e descontínuos, nos quais se expressam intersubjetivamente os integrantes do movimento Hip Hop de Parnaíba. Conforme Takaki e Coelho (2010, s/p),
Ao construir espacialidades híbridas, a cultura Hip Hop coexiste no espaço urbano periférico e cria novos cenários que perpassam o espaço real e sobrepõe-se ao virtual. As comunidades virtuais, blogs, wikis, orkut e twitter, comprovam que o ciberespaço é considerado um incremento do capital social e cultural. Entender esta interface digital permite uma melhor compreensão da expansão de novas formas de mídias sociais e de ampliação do capital social em nossa sociedade.
Uma observação, contudo, precisa ser feita: ainda que o Quadrilhódromo tenha sido ressignificado pelos membros do Hip Hop, cujas limitações financeiras impulsionaram a busca por acesso gratuito de internet e, partir daí, a construção de soluções e estratégias criativas de interação e de divulgação de seu trabalho, e estando esse imperativo econômico muito claro, é preciso considerar nessa discussão as políticas públicas de acesso à internet e, sobretudo, o modelo de negócio privado que subjaz diretamente às mesmas. Da reflexão sobre a ressemantização dos espaços públicos em função do serviço gratuito de acesso à internet, sobra uma questão, formulada nos seguintes termos: considerando o nível de renda insuficiente, quando os integrantes do Hip Hop não estão nesses lugares públicos, como fazem para ter conexão à internet?
Eis, então, outro aspecto crucial revelado pelos dados coletados. Este se refere à aquisição de serviço pago de Wi-Fi de forma compartilhada por duas ou mais famílias, por vizinhos, por moradores de um mesmo apartamento ou ainda por moradores de uma mesma pensão, fato muito comum em grupos de estudantes universitários. Dentre algumas entrevistas, mencione-se um trecho de um dos entrevistados, de 23 anos, estudante de turismo: “tenho internet da universidade e tenho internet em casa. (...) é uma Wi-Fi da Oi, dividimos em duas casas, a minha casa e o vizinho.” A fala desse entrevistado é reveladora de três modos de conexão às plataformas digitais e de acesso aos produtos da rede: 1) via instituição pública (nesse caso, o campus universitário), com a senha estudantil; 2) em casa, de forma compartilhada com o vizinho; 3) ou, como visto antes, em lugares públicos com acesso gratuito. Parece ser desta forma que muitos usuários conseguem driblar as dificuldades financeiras relativas aos custos inerentes à aquisição do serviço privado de Wi-Fi.
b) Senso de comunidade: uso compartilhado e colaborativo;
A tentativa de manter uma coesão e uma identidade com o movimento global de Hip Hop é uma prática comum entre os grupos de Parnaíba e faz parte de um esforço que emprega as tecnologias digitais de mídia. Isso revela não apenas a formação de uma tribo urbana e sua relação com outras tribos, que seguem a ‘cartilha’ geral do Hip Hop, como demonstra o quanto esse esforço se tornou facilitado com o uso das tecnologias digitais e de mídias sociais. Todos os entrevistados, além de usarem frequentemente estas mídias, possuem perfis privados e participam de perfis coletivos nos canais ligados ao movimento Hip Hop, como o da associação que congrega seus membros em Parnaíba. Cada uma dessas mídias sociais, contudo, estende-se para além dos limites físicos das cidades em que vivem seus usuários.
O uso das mídias sociais produz sentimentos de pertencimento e de coesão grupal, induz ao compartilhamento de conteúdo e a uma grande interação social, ultrapassando fronteiras físicas. Em função da característica identitária do grupo mais amplo, que se estende, como discutido antes, aos membros dos grupos menores de forma muito clara, há uma prevalência dos modos de produção e consumo e do tipo de produto publicado e consumido: produção e consumo compartilhado de vídeos no site You Tube e nos perfis – pessoais e coletivos – do Whatsapp, do Instagram e do Facebook. Entre os entrevistados, a preferência pelo You Tube como mídia social mais acessada tem uma explicação, pois, pela sua política de conteúdo, ele se encaixa perfeitamente nos objetivos dos grupos. Destaque-se, entretanto, a convergência dos conteúdos em distintas plataformas (entre o Instagram e o Facebook, por exemplo). Correlatamente, é pelo aparelho celular que essa atividade de produção e consumo quase sempre se realiza. “Só quando um vídeo é muito legal, aí na tela maior é melhor para assistir, aí a gente pega o computador de alguém do nosso grupo ou vai para casa de outro”, disse um dos entrevistados, do sexo masculino, 20 anos. Nas ocasiões em que os vídeos são gravados, admite, são usados vários celulares simultaneamente.
Outro local bastante usado por eles para se reunir e assistir vídeos é a sede da Associação Movimento Hip Hop da Planície Litorânea, cujo perfil no Facebook contém 215 seguidores, inúmeros vídeos e posts de eventos, sendo constantemente atualizada. Nas falas de outros entrevistados, se percebe que as reuniões e os encontros também ocorrem com frequência em lugares – pizzarias, lanchonetes, espetinhos etc. – que oferecem serviço de Wi-Fi sem custos ou que guardem alguma simbologia com o perfil identitário do grupo. Muitos deles afirmaram que a praia é um ponto de encontro valorizado, mas reconhecem que a qualidade do sinal de telefonia móvel em certas regiões do litoral do Piauí compromete a conexão às mídias sociais. Portanto, frequentar os mesmos lugares, como praias, indica o quanto o espaço físico denota certo simbolismo para conceder ao grupo um nível de coesão, incorporada intersubjetivamente pelos participantes. Não sem efeitos identificatórios, a logomarca da Associação Movimento Hip Hop da Planície Litorânea possui um componente simbólico muito peculiar à região: duas palmeiras de carnaúba, uma espécie nativa do Piauí, à frente de um imenso sol brilhante, além de desenhos de capoeiristas, de um microfone e de um toca-discos, todos circundados pelo nome da associação.
Deste modo, as mídias sociais e as plataformas digitais oferecem visibilidade para o movimento Hip Hop e dão suporte aos seus membros na criação de vínculos e laços pessoais, bem como na produção de micro redes que se constituem como extensão de redes maiores. Não por acaso, a forma como muitos dos membros se relacionam com familiares é pautada pelas mesmas plataformas digitais que eles utilizam para congregar os adeptos e simpatizantes do movimento. De singular ironia é a afirmação de um entrevistado do sexo masculino, de 23 anos. Questionado sobre como mantém contato com sua família, ele respondeu que a mídia mais usada para tanto é o Whatsapp, mas usa também o Instagram, pois alguns membros da família dele estão “...na onda do Instagram.” Sua fala revela que as mídias sociais citadas, por conta de suas funcionalidades, servem a propósitos distintos.
Neste sentido, mídias sociais podem se encaixar de forma efetiva na divulgação e na difusão de referentes identitários do movimento Hip Hop em Parnaíba e na aproximação entre esses grupos e outros afins, como aqueles que congregam dançarinos de outros estilos musicais, capoeiristas, skatistas, poetas e artistas em geral, conforme informado por uma jovem de 22 anos.
Por força desses elementos, está-se diante de um quadro de consumo customizado e de produção em novos formatos e plataformas digitais que ultrapassam os conceitos e as lógicas de produção da mídia de massa. Em vez dos já conhecidos produtos da mídia massificada, especialmente nos antigos suportes da indústria fonográfica, os entrevistados disseram que escutam músicas no formato mp3, após download, ou por serviço de streaming, com execução simultânea à descarga do arquivo. A programação musical da maior parte dos entrevistados é praticamente a mesma: quase sempre um consumo por demanda de áudios e vídeos relacionados ao universo do movimento Hip Hop. O sonho de ganhar destaque e se tornar um artista reconhecido, por outro lado, passa também pelo âmbito das mídias sociais, pois, como alegou o rapper Panikinho (Gildean Silva), em matéria redigida por Huertas (2022), publicada na plataforma Meio & Mensagem, um artista que buscasse reconhecimento público, nas décadas de 80 e 90, tinha que passar pelo crivo de uma gravadora, um selo ou um veículo de comunicação, que funcionavam como uma espécie de “funil”, possibilitando visibilidade, destaque e sucesso. Hoje, segundo ele, as mídias sociais e os streamings também mostram esse caminho.
c) Acesso à mídia tradicional: tensões, impasses e críticas
“Não assisto televisão”, afirmou um entrevistado, de 23 anos. Outro, de mesma idade, declarou que usa apenas celular e televisão e que no caso da televisão assiste apenas à noite, restringindo a programação a futebol, filme e novela. E uma mulher de 21 anos corrobora o desinteresse pela mídia tradicional informando que não assiste a programas locais nem nacionais e que acessa apenas blogs, perfis e sites culturais e de artistas. A princípio, essas informações revelam um tipo de consumo que, conforme se discutiu antes, ultrapassa a noção clássica de território físico e produz hibridizações entre a localidade e os fluxos culturais e informativos em nível regional, nacional e mundial. Com isso, verifica-se que o consumo cultural-informativo dos sujeitos não está circunscrito apenas ao território físico pelo qual circulam os entrevistados. Por outro lado, uma análise mais refinada das respostas dadas pelos entrevistados permite perceber que está contida nesse comportamento de consumo uma crítica velada ao sistema de mídia tradicional.
A relação do movimento Hip Hop com a mídia de massa sempre foi marcada por tensões e desconfianças. Mesmo sendo uma manifestação artística que possibilita a participação democrática do jovem de periferia através da crítica social, a imagem dos praticantes de Hip Hop na mídia tradicional sempre foi muito negativa. Como coloca Herschmann (2000), os meios de comunicação construíram imagens e representações dos praticantes de Hip Hop de uma forma muito negativa, uma imagem de delinquente juvenil, como se eles fossem uma espécie de inimigo das cidades. Há que se ressaltar, contudo, ainda que não seja esse o objetivo do presente texto, os esforços feitos e as estratégias utilizadas pelo movimento para, nos últimos anos, conseguir visibilidade em canais abertos e fechados da televisão nacional, em jornais impressos e em emissoras de rádio, como é o caso do Rapper Emicida. O resultado positivo disso é, ainda que tímido, facilmente verificável no modo como a mídia de massa tem produzido novas representações sobre esse gênero musical, sem que isso apague totalmente os efeitos nocivos de décadas de desgaste da imagem de seus praticantes pela cobertura midiática.
Não obstante essa leve mudança em curso, as mídias sociais e as plataformas digitais ainda se apresentam como um espaço ‘mais democrático’ para reconhecimento e aceitação dos grupos de Hip Hop, possibilitando uma prática distinta, mais autônoma e independente, de produção e consumo, na medida em que os próprios usuários publicam conteúdos, gravam vídeos e escolhem aqueles que serão postados. Nesse processo, os grupos estabelecem as estratégias para legitimação da sua identidade e criam mecanismos de crítica sociopolítica nem sempre abrangida pelos meios de massa. Agindo assim, utilizam, conforme os relatos das entrevistas, as mídias sociais para amplificar o aspecto político-crítico que impregna o ideário da música-arte ensejada e encenada. Essa crítica é dirigida, inclusive, aos meios de comunicação de massa, de forma sub-reptícia, ignorando a programação deles. Perguntado sobre se consome programas locais e/ou nacionais, um jovem de 24 anos foi taxativo: “não!” Para a maior parte dos entrevistados, as mídias sociais mais usadas são Facebook, Whatsapp, Instagram e You Tube, cada uma delas sendo explorada nas funcionalidades específicas que oferece aos usuários. Chama a atenção a fala desse mesmo entrevistado, universitário, 24 anos, que, entre sorrisos, afirma que usa bastante o site de busca Google Acadêmico.
Além dos aspectos apontados, é preciso considerar que o consumo não interativo, próprio do ambiente dos meios de massa, não é mais um comportamento típico de jovens dessa faixa etária, a conhecida Geração Z, aqueles nascidos entre 1995 e 2010, que estão acostumados com a customização dos programas e produtos e, mais ainda, afeitos à forma compartilhada e interativa como produtos, programas, informações e dados são produzidos e consumidos nas plataformas digitais. A propósito disso, não parece fazer mais sentido a separação entre os processos de produção e consumo, tendo em vista a atitude proativa e participativa dos sujeitos das mídias sociais, que tanto são produtores quanto receptores de conteúdo, realizando tarefas múltiplas em plataformas distintas.
Conclusão
Não obstante a força de alguns argumentos dedutivos, como se colocou no início desse texto, não é seu objetivo recorrer a uma premissa conclusiva. As reflexões aqui delineadas estão também amparadas numa situação específica de análise, qual seja: a da relação de jovens praticantes de Hip Hop da cidade de Parnaíba com as plataformas tecnológicas digitais. Tais reflexões, afuniladas nas três temáticas apresentadas e discutidas, reverberam em três aspectos coadunados: a reterritorialização e resignificação dos espaços, a formação de vínculos comunitários e a geração de um novo sistema midiático de produção, circulação e consumo.
Se tomados como conjunto relacional, tais aspectos engendram uma soma de novas questões bastante rica para se pensar a apropriação de plataformas digitais por públicos jovens, sobretudo num momento em que a experiência pessoal e coletiva vai se firmando numa era de amplo espectro tecnológico, tornando cada pessoa um potencial produtor de conteúdo. No caso específico dos grupos ligados ao movimento Hip Hop de Parnaíba, apartados dos sistemas de mídia tradicional, as mídias sociais se impõem ao cotidiano dos praticantes com uma força estratégica de afirmação identitária, de coesão grupal e de divulgação de atividades. A presença dos grupos em territórios específicos da cidade de Parnaíba reforça, por sua vez, o local como um espaço estratégico da vivência, da experiência e da sociabilidade dos praticantes. Esse espaço, contudo, não se presentifica de maneira fixa e inalterável. Ao contrário, é constantemente ressignificado pelas práticas, comportamentos e ações intersubjetivas, adequando-se aos propósitos dos praticantes do Hip Hop, como no caso da ocupação de espaços privados, a exemplo da já mencionada apresentação num shopping center, cujo efeito mais sensível, de ordem política, está ligado à desconstrução de imagens negativas atribuídas ao movimento.
Há muitos outros aspectos e imperativos – políticos, sociais, culturais e tecnológicos – a determinar esse impulso de identificação e que precisam ser considerados nessa complexa trama de produção de identidades. Contudo, aos poucos, com uso estratégico de mídias sociais, os praticantes de Hip Hop em Parnaíba vão subvertendo rótulos negativos e estigmas empobrecedores (quase sempre produzidos com ajuda da mídia de massa) que no passado corroboravam o confinamento e a marginalidade atribuídos a milhares de jovens.
Referências
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