Processos comunicacionais e poéticas antropofágicas em narrativas contemporâneas

Communication processes and anthropophagic poetics in contemporary narratives

Procesos de comunicación y poéticas antropofágicas en las narrativas contemporáneas

Míriam Silva

Universidade de Sorocaba

E-mail: miriam.silva@prof.uniso.br

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6162-332X

DOI: 10.26807/rp.v27i116.2009

Resumo

Este artigo problematiza parte das narrativas advindas da rememoração dos 100 anos da Semana de Arte Moderna (2022), que apontam para a necessidade de uma revisão crítica sobre o legado do modernismo brasileiro. A partir de narrativas midiáticas e reflexões acadêmicas sobre as repercussões do Movimento Modernista, destacamos a necessidade de revisões, tais como a discussão sobre a participação das mulheres e, especialmente, sobre um dos seus principais desdobramentos (e, em alguma medida, sua contraposição), o movimento antropofágico, liderado por Oswald de Andrade. Concluímos que a antropofagia permanece como uma proposta teórico-metodológica para se compreender os processos culturais e, sob o escopo da comunicação, as narrativas midiáticas.

Palavras – Chaves: Semana de Arte Moderna; antropofagia; comunicação e cultura; mídia.

Abstract

This article problematizes part of the narratives departing from the 100th anniversary of the Modern Art Week (2022), which point to the need for a critical review of the legacy of Brazilian modernism. From media narratives and academic reflections on the repercussions of the Modernist Movement, we highlight the need for revisions, such as the discussion about women’s participation and, especially, on one of its main developments (and to some extent, its opposition), the anthropophagic movement, led by Oswald de Andrade. We conclude that anthropophagy remains a theoretical-methodological proposal to understand cultural processes and, under the scope of communication, media narratives.

Keywords: Modern Art Week; anthropophagy; communication and culture; media.

Resumo: Este artículo discute parte de las narrativas surgidas de la conmemoración de los 100 años de la Semana de Arte Moderna (2022), que apuntan a la necesidad de una revisión crítica del legado del modernismo brasileño. A partir de narrativas mediáticas y reflexiones académicas sobre las repercusiones del Movimiento Modernista, destacamos la necesidad de revisiones, como la discusión sobre la participación de las mujeres y, en especial, sobre uno de sus principales desarrollos (y, en cierta medida, su oposición), el movimiento antropofágico, liderado por Oswald de Andrade. Concluimos que la antropofagia sigue siendo una propuesta teórico-metodológica para comprender los procesos culturales y, en el ámbito de la comunicación, las narrativas mediáticas.

Palabras clave: Semana de Arte Moderno; antropofagia; comunicación y cultura; medios de comunicación.

Introdução

Em ocasião das comemorações dos 100 anos da Semana de Arte Moderna (2022), publicações acadêmicas e jornalísticas (Andrade, 2022) retomaram temas relacionados à estética, à identidade nacional, à ética, à cultura e seus desdobramentos. Dentre os assuntos mais abordados em publicações desde 2020 a 2022, estão a institucionalização de um ideário de arte moderna, construída sob a liderança de Mário de Andrade em São Paulo (Botelho, 2020), passando pela contestação daquilo que Ruy Castro chamou de mitos da modernidade – como na polêmica entrevista do escritor ao programa Roda Viva (2022), da TV Cultura, exibido em 7 de fevereiro.

Castro minimiza a importância do movimento paulista na entrevista ao Roda Viva e justifica-se ao citar seu livro, Metrópole à Beira Mar (2019), que demonstra a modernidade carioca anterior ao modernismo paulistano. Ainda em fevereiro de 2022 – em artigos jornalísticos nos quais ora é o autor (como o publicado pelo Ilustríssima, da Folha de São Paulo, no dia 6 de fevereiro de 2022), ora é citado ou entrevistado – fomenta uma discussão que parece se utilizar da polêmica, mesma tônica que o próprio movimento modernista fomentou, sobretudo no evento realizado no Teatro Municipal de São Paulo.

Neste contexto de revisitação do ideário da modernidade brasileira por ocasião de seu centenário, destacamos a proposta construída por Oswald de Andrade no Manifesto Antropófago (publicado na primeira edição da Revista de Antropofagia em maio de 1928). Raul Bopp e Oswald de Andrade, com a ideia do movimento da antropofagia, iniciam uma discussão cuja permanência e atualidade ainda podem ser constatadas, inspirados por um quadro de Tarsila do Amaral, O Abaporu (oferecido como presente de aniversário a Andrade).

Assim, a antropofagia oswaldiana, neste trabalho, é vista não apenas como um desdobramento do movimento modernista, mas como um reposicionamento, um aceno pós-moderno anterior à compreensão de uma pós-modernidade em terras brasileiras, pois se trata de uma proposta exigente de abertura e reformulação contínua, consciente de uma busca por experimentações que se desvinculam de propostas unívocas, ao modo de uma escola.

Mais do que um programa estético ou a busca de uma identidade, o Manifesto Antropófago prevê um diagnóstico seguido de um prognóstico da realidade brasileira, o que faz de Oswald de Andrade um pensador da cultura, propositor do que podemos chamar de uma primeira visada decolonialista. O Manifesto Antropófago propõe, inspirado na prática antropofágica brasileira (como demonstraremos mais adiante), pensar o Brasil em uma relação de devoração vingativa e criativa, na qual o colonizador é não apenas assimilado, mas digerido criticamente (Andrade, 1990).

As discussões contemporâneas sobre a Semana de 1922 e seus desdobramentos, dentre os quais creditamos a ideia da antropofagia oswaldiana como uma das mais permanentes e significativas, reafirmam a importância do movimento na compreensão da cultura brasileira, muitas vezes de forma quase laudatória, como também suscitam críticas e polêmicas, as quais revisam a construção de uma ideia de modernidade a partir do grupo de São Paulo, demonstrando a pré-existência do moderno em outros espaços geográficos brasileiros e, ainda, trazem à tona parte fundamental desse processo de reavaliação do passado, ao dialogarem, em perspectiva síncrono-diacrônica, com as reivindicações do presente, no qual a ética, atrelada à estética, permite relatar apagamentos, apropriações, visões eurocêntricas e propor outras metodologias, em processos decoloniais, que buscam uma compreensão dos fenômenos em palimpsesto (Autora, 2010; Azevedo, 2018).

O palimpsesto era o pergaminho que na antiguidade era subsequentemente apagado e reescrito; aqui, é usado como conceito e indica a necessidade de se considerar as múltiplas camadas de que as narrativas são compostas, em um esforço para se restaurar aquilo que foi aparentemente subtraído ou substituído, mas que pode oferecer outras alternativas para a compreensão da cultura. É o conceito de palimpsesto, portanto, que adotamos como uma forma de ampliar a compreensão sobre a modernidade brasileira, sob o recorte do movimento antropófago liderado por Oswald de Andrade.

No caso do recorte proposto por este artigo, iremos nos ater a aspectos polêmicos trazidos pela rememoração da Semana de Arte Moderna nas comemorações de seu centenário, comparados à proposta antropofágica como criadora de diferenças na relação com o modernismo inicial.

Rever a Semana de Arte Moderna

A Semana de Arte Moderna no Brasil se constituiu como um marco, o que, em seu centenário, trouxe questionamentos em narrativas midiáticas, tais como os realizados por Ruy Castro, que a apontam como supervalorizada e construída como um referencial da modernidade brasileira especialmente a partir de 1972, quando completou 50 anos (Castro, 2022).

Tadeu Chiarelli, em resposta a Castro, desloca para o campo das artes plásticas a ideia da mitificação da modernidade paulistana via literatura. Destaca os anos 1940, com a criação de museus nos quais, segundo ele, a mitificação da Semana é impulsionada. Nas palavras do crítico:

Ao se estudar a história do Masp e do Mam-SP, nota-se que desde o início ambos estavam decididos a construir uma narrativa que embasasse e, em última instância, justificasse a existência e as atividades das duas instituições. É neste sentido que se percebe a necessidade de recuperar e homenagear os artistas ligados ao modernismo paulistano. Em 1950, o Mam organiza uma retrospectiva de Tarsila do Amaral. No ano seguinte, durante a I Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, são premiados dois artistas que efetivamente tinham participado da Semana de 1922 (Emiliano Di Cavalcanti e Victor Brecheret), um que também teria participado do certame – apesar de algumas controvérsias (Oswaldo Goeldi) –, e mais quatro artistas ligados ao posterior “desenvolvimento” do modernismo de 1922: Lívio Abramo, Candido Portinari, Bruno Giorgi e Lasar Segall. Em 1952, o Mam-SP realizou a mostra Semana de Arte Moderna de 1922. Exposição Comemorativa, uma homenagem ao aniversário de 30 anos da Semana. Menotti Del Picchia – poeta e um dos integrantes da Semana – afirma no texto para o catálogo, que o então presidente da República – Getúlio Vargas –, em documento oficial, responsabilizava positivamente a Semana de ter provocado uma “revolução visceral” no país, atingindo, além da estética, “a economia, a política e a própria estrutura social brasileira” – o que demonstra que o processo de consolidação da Semana como “marco fundador” da modernidade no Brasil, já se constituía num fato para os setores oficial brasileiros, já em 1952 (Chiarelli, 2022).

Para Chiarelli (2022), os anos 1960 parecem ser os responsáveis por sedimentar a relação entre a arte contemporânea brasileira e a Semana de 1922, com edições das bienais que procuraram ligar o passado de 22 ao então presente dos museus e bienais de São Paulo, com salas especiais dedicadas a Segall, Portinari e Brecheret, por exemplo.

Às discussões de Ruy Castro, somam-se as cobranças, ainda que extemporâneas, sobre a ausência das mulheres na Semana de Arte Moderna, assim como de negros, indígenas e da arte popular (Veiga, 2022).

Do ponto de vista acadêmico, para Botelho (2020, p. 181), por exemplo, o modernismo significou uma marca de valoração estética e cultural para as gerações que o sucederam: “acabou se impondo como uma espécie de ponto de vista, de lugar de onde se observar e avaliar a cultura brasileira, de qualquer época do passado, do presente e mesmo do futuro, exercendo disputa pelo controle do que ainda estaria por vir”.

Importante ressaltar ainda que, nas discussões midiáticas, em geral, o debate restringe-se à realização da Semana de 22, como no exemplo de Castro, que afirma que a imprensa da época ignorou o evento (Veiga, 2022). Em que se pese a importância da Semana, a modernidade brasileira se constitui em um processo muito mais complexo do que a realização da festa paulistana, com elaborações anteriores, em espaços distintos e com muitos desdobramentos heterogêneos, tanto no campo político como no estético.

A modernidade não chega ao Brasil por meio da Semana e tampouco por São Paulo, ainda provinciana e em estado inicial de industrialização na década de 20. A Semana modernista foi fruto de ações que já se engendravam há pelo menos cinco anos antes de sua realização. Além disso, contou com a participação de artistas do Rio de Janeiro, como é o caso de Villa-Lobos, cuja obra já era moderna. Veiga (2022, s./p.) menciona a crítica presente no livro do pesquisador Tragtenberg, que aponta a modernidade no Rio de Janeiro, anterior à Semana, e questiona a ausência da música popular no evento paulista:

Na música, Tragtenberg também censura a ausência da vibrante cena que já ocorria no Rio de Janeiro. O autor do livro O que se ouviu e o que não se ouviu na Semana de 22 aponta que na então capital do país havia «um desenvolvimento de uma riqueza de misturas e de interações muito anteriores à Semana de ٢٢». «Já se misturava a música de salão europeia com a música dos negros e a que se fazia nos bares e cafés. Quando a Semana estava acontecendo, Pixinguinha [١٨٩٧-١٩٧٣] era presença em Paris, exportava a música feita aqui, antes do [Heitor] Villa-Lobos [(1887-1959), que participou do evento]. “O compositor salienta que “nem passou pela cabeça daqueles que organizaram a Semana considerar a música popular”. E, nesse sentido, ficaram de fora, além de Pixinguinha, nomes como Donga (1890-1974) e João da Baiana (1887-1974).

Desta forma, os questionamentos realizados por parte da Academia e, de forma geral, pela Imprensa, sobre a Semana de Arte Moderna, na ocasião do Centenário, questionam sua valorização como marco fundante da cultura brasileira, demonstram o quanto esta pode ser percebida como construção e creditada, em alguma medida, às conferências realizadas por Mário de Andrade e Oswald de Andrade, na década de 40. A conferência de Mário de Andrade aconteceu em 1942, sob tom melancólico, segundo Botelho (2020), em razão da saída involuntária do intelectual do Departamento de Cultura de São Paulo, bem como em função das lutas ideológicas daquele momento.

A de Oswald de Andrade foi feita em 1944, com tom mais triunfalista. Além das conferências, credita-se também a construção de uma narrativa sobre a importância do modernismo paulista empreendida por intelectuais da USP, tais como Antonio Cândido, que fez do evento objeto de análise e crítica literária, tornando o movimento um cânone da Teoria Literária Brasileira.

Botelho (2020, p. 181) afirma que o modernismo se converteu em uma espécie de “[...] parâmetro de avaliação cultural nas histórias da literatura brasileira, de que são paradigmáticas Formação da Literatura Brasileira (1959), de Antonio Candido, e História concisa da literatura Brasileira (1970), de Alfredo Bosi”.

Entretanto, cabe acrescentar que Cândido não esteve sozinho nos estudos sobre os modernistas. Sobretudo quando falamos de Oswald de Andrade, é necessário assinalar que as pesquisas realizadas na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, iniciadas por Haroldo de Campos e Décio Pignatari, sucedidas por seus alunos e/ou orientandos, além dos trabalhos de Amálio Pinheiro e consequentemente em pesquisas de mestrado e doutorado por ele orientadas. Também é preciso mencionar a montagem do acervo de Oswald de Andrade, na Unicamp (Universidade de Campinas/SP), a produção intelectual de Benedito Nunes, no Pará, entre outras pesquisas, que demonstram a estreiteza de se creditar a construção do marco apenas aos esforços institucionais de Mário de Andrade e aos intelectuais da Universidade de São Paulo, como aparece em vários textos acadêmicos e da imprensa no ano de 2022.

Maria Eugênia Boaventura realizou um estudo sobre o impacto da Semana de Arte Moderna na imprensa, especialmente a paulistana. Ela afirma que: “A valorização desse minuto delirante de remodelação artística torna-se muito artificial ao se colocar o evento como fato mais importante do modernismo” (Boaventura, 2000, p. 16). Destaca a persistência no tempo dessa ênfase ao evento: “Ainda hoje o alcance dessa rebelião estética é erroneamente confundido com o barulho dos dias de festa, ficando desfocadas as iniciativas daquela fase de preparação, na qual se esboçou o traçado do ideário estético do modernismo” (Boaventura, 2000, p. 16), o que diverge da avaliação da historiadora Maíra Rosin Camargos, quando afirma em entrevista para Veiga (2022, s./p.) que o evento foi realizado às pressas, de improviso, o que teria resultado nas ausências hoje cobradas:

Camargos relativiza a questão: para ela, o fato de o festival ter sido organizado às pressas, “sem uma curadoria séria”, explicaria os “pequenos deslizes, como a falta do elemento popular e a questão de gênero”. “Isso, a gente debita na conta do improviso, porque foi uma coisa improvisada, pensada do dia para a noite”.

Sobre o improviso do evento, não é possível concordar. Entre os marcos antecedentes da Semana, pode-se destacar o impacto da produção de Anita Malfatti realizada em São Paulo entre ١٢ de dezembro de ١٩١٧ e ١١ de janeiro de ١٩١٨, que resultou na severa e conhecida crítica de Monteiro Lobato. “A boba” e “O homem amarelo” são quadros de Anita realizados entre 1915 e 1916; ambos possuem características modernas, relacionadas ao expressionismo alemão e tomadas como principal alvo dos comentários negativos na recepção das obras. As críticas de que Anita foi alvo persistiram quando da realização da Semana, como apontado por Boaventura no livro “22 por 22”.

O evento recebeu ataques virulentos de críticos como Oscar Guanabarino: “Em música são ridículos, na poesia são malucos e na pintura são borradores de tela” (Boaventura, 2000, p. 25). Esses ataques foram estendidos também a artistas hoje considerados referenciais na arte brasileira, tais como Di Cavalcanti e Villa-Lobos. Sobre Di Cavalcanti, afirmaram: “É um menino vicioso. Que faz coisas feias pelos cantos da arte, de onde será enxotado a correiadas” (ibidem). E sobre Villa-Lobos, destacaram: “[...] procura esconder nessa ausência de bom senso de suas partituras, o que lhe falta em estudos de harmonia, o que lhe falece em inspiração” (Boaventura, 2000, p. 25). Nota-se o conteúdo agressivo dos comentários, ao mesmo tempo subjetivo, vago e sem embasamento ou profundidade argumentativa no campo da arte e da estética.

Como movimento cultural, a Semana de Arte Moderna buscou refletir sobre uma identidade brasileira e propor uma estética alinhada aos ideais modernos. O movimento tornou-se a voz mediadora dessa identidade cultural, pelo esforço de institucionalização da cultura, por parte de Mário de Andrade, como já mencionado, que posteriormente ocupou o cargo de diretor-fundador do Departamento de Cultura de São Paulo. Mas a busca por mudanças já vinha sendo gestada anos antes do evento, que, de forma controversa, ainda que buscasse por renovações e rupturas, esteve atrelado ao Estado, já que ocorreu no Teatro Municipal de São Paulo, financiado por oligarcas paulistas, como parte das comemorações do Centenário da Independência, com conferência de abertura realizada por Graça Aranha, diplomata, cuja obra não possuía características modernas.

Ademais, a Semana conjugou artistas diversos, sem um viés coerente. Botelho (2020, p. 177), por meio de uma “sociologia política da cultura”, aborda o modernismo brasileiro pensado a partir do grupo de São Paulo, mas sobretudo pela atuação de Mário Andrade – segundo o autor, “líder moral e intelectual do modernismo” e responsável pela nacionalização do movimento (idem). Adverte que se trata de discutir um modo de ação coletiva, “[...] ao menos inicialmente, fracamente institucionalizado, mas que, ao buscar produzir mudanças de ordem cultural no conjunto da sociedade, se vê constrangido a interagir de modo conflituoso e colaborativo com o Estado” (Botelho, 2020, p. 177). O autor se distancia das discussões sobre um ethos do modernismo ligado a uma missão unificadora de uma identidade nacional, posteriormente e possivelmente cooptada mais adiante pelo Estado Novo, observando-o como um característico movimento cultural, cujo intuito era o de “[...] produzir mudanças culturais em grande escala” (Botelho, 2020, p. 183). Assim, necessita: “[...] enquanto uma forma de movimento social, necessariamente interagir com as estruturas de poder e do Estado, tendo em vista a disputa pela definição de ideais e também de políticas públicas de cultura e de educação para o conjunto da sociedade” (idem). O ponto em comum entre o Movimento e o Estado Novo, para Botelho, seria a sociedade civil. Porém, entre adesão e conflito, enquanto o Estado buscava recursos humanos para consolidar um ideal nacionalista, os modernistas tentavam consolidar suas propostas estéticas e culturais.

Nesse sentido, a participação dos modernistas representaria uma mediação discursiva entre a expectativa de mudança do movimento cultural e o enquadramento institucional limitado que caracteriza o funcionamento cotidiano do Estado. Esses dois polos devem ser entendidos, a meu ver, não como opções que se excluem, mas como ordens de valor que se constituem mutuamente, entrelaçados na atividade intelectual e burocrática cotidiana (Botelho, 2020, p. 183).

A Semana de 22 foi e é tema de debates polêmicos e, se grande parte de seu legado ainda se faz presente como marca da cultura brasileira, é importante rever os acontecimentos de 1922, não ignorando os possíveis anacronismos, mas para propiciar correções e destacar papéis, tais como o da presença das mulheres, negligenciada inclusive na conhecida fotografia oficial do evento, que registrou como realizadores um grupo de homens, que eram a grande maioria. Além de Anita Malfatti, participaram do evento Zina Aita, Regina Graz e Guiomar Novaes, pianista consagrada e não moderna. Sobre Regina Graz, destaca-se a contribuição pioneira para o Design brasileiro, já que, em 1923, realizou pesquisa sobre tecelagem indígena do Alto Amazonas.

A Semana marca, portanto, uma série de esforços anteriores. Ao mesmo tempo em que destaca o combate a valores estéticos importados, alinha-se à modernização das artes via vanguardas europeias, mas com um esforço de combinação entre os materiais de renovação europeus e a busca por uma identidade brasileira, como fazem o Manifesto da Poesia Pau-brasil (1924) e, de forma mais contundente, o Manifesto Antropófago (1928).

Certamente, foi construída por inúmeros fatores, dentre os quais se ressalta a ação institucional de Mário de Andrade. Em que se pesem suas controvérsias e incoerências, foi um marco de um movimento cultural que conseguiu colocar em diálogo grandes diferenças, as quais se desdobraram, após o evento, em diferentes vertentes, das quais destacaremos a antropofagia de Oswald de Andrade.

Poética antropofágica

A Semana de Arte Moderna teve desdobramentos que, em alguma medida, significaram um engessamento, que se deslocou da vontade de renovação para uma espécie de padrão da arte e da brasilidade. É preciso mencionar, ainda, a sua vertente ufanista, conservadora e autoritária, materializada no Integralismo de Plínio Salgado.

Oswald de Andrade propõe, então, em 1928, a ideia de Antropofagia, como metáfora da devoração crítica do alheio. Vieira Filho (2019) aponta que, na cultura ocidental, são recorrentes as referências ao fenômeno da antropofagia, sejam estas relativas ao âmbito da práxis ou ao plano simbólico, como o mito grego, em que Cronos devora seus filhos, e o ritual cristão da comunhão, em que a hóstia se torna o corpo de Cristo e é oferecida aos fiéis.

Como tônica da antropofagia, está o uso do humor, presente no Manifesto em “A alegria é a prova dos nove” (Andrade, 1990, p. 51). Por meio da paródia, Oswald de Andrade coloca em relação o arcabouço de origem europeia e o amálgama de culturas que formam a identidade brasileira, em especial, a indígena e a africana. O significado da antropofagia está na necessidade permanente de abertura, compreendendo que a mobilidade é o que aquece a cultura. Isso não consiste em afirmar, conforme bem pontua Lima (1991), que a antropofagia desconsidera o conflito existente entre elementos culturais diversos. Antes, quer seja observada em sua literalidade ou em sua acepção metafórica, e de modo a envolver simultaneamente os planos pessoal e social, a antropofagia requer a disputa, a luta. A diferença estaria em não fazer confusão entre o ato de vingança puro e o inimigo com o qual se depara. É nesse sentido que antropofagia se constitui, para Lima (١٩٩١, p. ٢٧), em “[...] experiência cujo oposto significaria a crença em um limpo e mítico conjunto de traços, do qual a vida presente de um povo haveria de ser construída. De sua parte, o Manifesto se origina da busca dessa experiência renovada, que se fundaria na incorporação da alteridade”.

No processo antropofágico, busca-se o encontro com o outro e suas diferenças: “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente (Andrade, 1990, p. 47). Vieira Filho (2019, p. 77) aponta que:

Oswald teria assimilado tanto a ideia de antropofagia ritual quanto o contraste entre vida primitiva e vida civilizada, que suscitou o embate entre matriarcado e patriarcado tão enfatizado no seu manifesto, do ensaio Des Cannibales, inserido no capítulo XXXI dos Essais (1580) de Montaigne. Inspirado na obra Totem e Tabu (1913), na qual Freud chega à hipótese do mito do parricídio canibal para explicar a passagem do estado natural ao social, Oswald teria pensado a expressão “transformação permanente de tabu em totem” inserida no seu manifesto.

Defendemos a antropofagia como aceno para uma perspectiva decolonialista, pois se tratou de, sem negar a influência do europeu, propor outras possibilidades para pensar a cultura, bem como para contar a história do Brasil, re-tecendo as narrativas a partir do olhar e das práticas culturais daqueles que já habitavam Pindorama. Conforme postula Cardoso (2016, p. 53), talvez seja para contrapor este etnocentrismo universalista: “[...] que se levanta, rebelde, Oswald de Andrade ao clamar no seu Manifesto Antropófago: ‘Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem’”.

É neste sentido que Oswald de Andrade traz, para o manifesto, o ritual de devoração tupinambá, por seu caráter dialógico e aberto, que entende que a cultura só sobrevive da ingestão do alheio, mas em processo crítico e criativo, que pretende diminuir assimetrias entre culturas hegemônicas e subalternizadas. Cardoso afirma a antropofagia como avessa a um ideal totalitário de identidade:

Nem a aceitação passiva e total de um progresso vindo de fora, nem a atitude fechada e reacionária de um nacionalista conservador. O antropófago caça o outro e o leva para casa, aprende sua diferença, desorganiza-o e o come (e caga, insistimos em lembrar). Como aponta Gumbrecht: “Aquele que ‘morde a carne’ deseja um fragmento (não o corpo todo), um fragmento que sangra (…), ele o interiorizará de uma forma não espiritual” (GUMBRECHT, 2011, p. 291). Não há aí uma perspectiva identitária de totalidade, mas a relação sempre fragmentária consigo mesmo e com o outro (Cardoso, 2016, p. 56).

Couto e Lima (2017) explica que os Tupinambá povoaram a Costa Atlântica brasileira nos últimos séculos antes da chegada dos invasores europeus e que falavam línguas do mesmo tronco tupi. Os Tupinambá compuseram, por todo o território no qual se inventou o Brasil, grupos sociais diversificados, que não chegaram a se constituir como nação, pois cada grupo se bipartia ao crescer e, quando se diferenciavam, estranhavam-se e passavam à mútua hostilidade: “A tradição de guerra entre os grupos aperfeiçoou nos indivíduos os dotes guerreiros e fez deles os povos dominantes do litoral brasileiro, desalojando antigos ocupantes oriundos de outras matrizes étnicas” (Couto e Lima, 2017, p. 197).

É preciso lembrar que, se a modernidade é uma construção, também a ideia de Brasil é uma invenção, fundada na chegada dos colonizadores, a despeito de mais de ٥٠.٠٠٠ anos de uma pré-história (que, ao ser chamada de “pré”, já guarda um juízo de valor) anterior à colonização e que ainda é pouco desbravada. Os europeus recém-chegados, em contato com os ameríndios, produziram uma literatura na qual aparecem os primeiros e controversos relatos sobre a antropofagia:

Resumidamente, esse material etnográfico precoce situa-se em dois domínios, o da “literatura informativa” e o da “literatura de viagem”, e ainda representa o que há de mais precioso sobre os povos nativos do Brasil no período do “Descobrimento”. Com eles e contra eles se construíram e se constroem discursos e silêncios sobre o tema da antropofagia (Couto e Lima, 2017, p. 198).

Estes relatos assumiram a bravura dos Tupinambá quando havia conveniência, tratando de feitos heroicos dos indígenas quando advindos de alianças estratégicas de guerra contra invasores concorrentes, não como uma característica de sua sociabilidade: “Os discursos dominantes posteriores excluíam esse atributo, especialmente do contexto da antropofagia. Tratada como uma prática marginal e horrenda” (ibidem). Concordamos com a perspectiva do autor, que sublinha o fato de que o apagamento da estreita integração entre sociedades ameríndias e o fenômeno da antropofagia é um marco fundamental do processo de colonização e do discurso civilizador, o qual permeia, particularmente, a produção literária informativa na língua portuguesa.

Entretanto, a retórica da antropofagia permanece na literatura de viagem francesa (Jean de Léry, André Thevet, Claude d’Abbeville e Yves d’Evreux). Em Thevet, nota-se que a bravura do indígena na prática da guerra é “descrita e interpretada não como expressão de uma violência animalesca, mas como um processo de interação entre os grupos envolvidos, movidos pelo sentimento mútuo de vingança, em razão de ultrajes recíprocos cometidos contra parentes ancestrais” (Couto e Lima, 2017, p. 200), ideia retomada por Oswald de Andrade, que realiza em sua construção epistemológica um processo de mastigação crítico-criativa, na mescla de suas referências e leituras filosóficas, sociológicas e literárias.

Além da perspectiva epistemológica, que permite olhar para a cultura brasileira de forma ampliada, a partir de formas de convivialidade ameríndias, a antropofagia, sob o viés oswaldiano, pressupõe uma potência poética, ou seja, uma proposta de ação renovadora sobre o mundo, visto em sua complexidade, por meio da qual os materiais existentes nas culturas se influenciam mutuamente, ressalvando-se a necessidade de que o processo não seja de simples assimilação ou de domínio / apropriação de uma cultura sobre outra, mas que haja uma espécie de vingança criativa, como no rito tupinambá, em que o dominador é tomado, familiarizado, estranhado e finalmente devorado comunitariamente.

Esse processo foi descrito por Oswald de Andrade tanto no Manifesto Antropófago quanto no tratado filosófico A Crise da Filosofia Messiânica (1950). Note-se que, em relação ao Manifesto, muitas vezes grafado como Manifesto Antropofágico, o uso de “Antropófago” não é aleatório. O próprio Manifesto, em seu processo de tessitura textual e referencial, é composto por uma linguagem entrecortada, poética e semelhante à de narrativas ameríndias, tecido como uma colcha de retalhos, com referências que passam por influências europeias como as de Montaigne e Freud, costuradas a narrativas ameríndias e com menções à cultura brasileira de matriz africana, como na citação de um verso da letra de um samba da época: “Fizemos Cristo nascer na Bahia” (Andrade, 1990, p. 48).

Montaigne escreveu Dos Canibais, capítulo de Ensaios, cujo substrato está no livro de 1557 de André Thevet, As singularidades da França Antártica. Para Couto e Lima (2017, p. 203), Montaigne percebe que o “apetite de vingança” dos Tupinambá tem um caráter ancestral. Remete a vingança à memória de uma injúria da qual cada membro do grupo, indiretamente, fora vítima. Além disso, Montaigne teve contato com canibais em um evento em Rouen, cidade da França na qual ocorreu, em 1550, uma festa em homenagem ao rei Henrique II e à rainha Catarina de Médicis, motivada pela “[...] vida dos selvagens no Brasil. Simulando-se uma floresta brasileira, um grupo de 300 pessoas, entre as quais cerca de 50 índios, reencenou hábitos e costumes dos nativos do Brasil, incluindo o ritual antropofágico e a simulação de uma guerra entre duas tribos” (Couto e Lima, 2017, p. 198).

As agressões de guerra podem ser compreendidas como parte da obediência a um longo ritual, cujo primeiro passo consistia nos grupos opostos ofendendo-se mutuamente, que demonstrava um processo de aceitação do estranho associado ao desejo e à necessidade de vingança. Couto e Lima (2017), amparado em Florestan Fernandes, destaca justamente este aspecto, ao pontuar a relação indissociável entre o ato de incorporação do inimigo e o desejo de vingança, entrelaçados na elaboração de toda uma rede simbólica consubstanciada no ritual antropofágico.

A elaboração de redes simbólicas que engendram morte e aceitação do alheio também é registrada por Viveiros de Castro, que pesquisou entre os Araweté da Amazônia Oriental um processo de canibalismo divino, no qual: “as almas dos seus mortos, uma vez chegadas ao céu, são mortas e devoradas pelos Maî, os deuses, que em seguida as ressuscitam, a partir dos ossos; elas, então, se tornam como deuses imortais” (Viveiros de Castro cit. por Couto e Lima, 2017, p. 210). Ainda de acordo com as anotações do antropólogo brasileiro: “o destino da Pessoa Araweté é um tornar-se outro, e isso é a pessoa – um devir. Intervalo tenso, ela não existe fora do movimento” (Viveiros de Castro cit. por Couto e Lima, 2017, p. 208).

Assim, a noção Araweté é vista pelo autor a partir da hipótese de um método tupi-guarani não-euclidiano, de des-construção da Pessoa, que nos parece muito semelhante ao que compreendemos como um devir-outro próprio da antropofagia como um processo contínuo, tanto pensada como episteme quanto por seu caráter de poética, ou mesmo de um possível método:

Um método que recusa o ciclo vicioso da especularidade da identificação narcísica para afirmar um “processo de deformação topológica contínua, onde Eu e Outro, Ego e Inimigo, o vivo e o morto, o homem e o deus, o devorado e o devorador, estão entrelaçados — aquém e além da Representação, da substituição metafórica, e da oposição complementar. Movendo-se em um universo onde o devir é anterior ao Ser, e a ele insubmisso (ibidem).

Com a ideia de antropofagia tecida a partir de múltiplas referências, Oswald de Andrade oferece uma proposta para se pensar a cultura brasileira, mas também para se construir processos artísticos, culturais e midiáticos de forma acolhedora das diferenças, criativa e aberta, que convida a uma contínua experimentação de linguagens e de formas, na qual a única premissa a ser continuada é a da mistura, convite a um humano em devir. O poeta instaura uma perspectiva do indígena visto na sua coragem de devorador do inimigo, não como na ideia romântica do bom selvagem. Essa é sua grande contribuição. Daí a sua atualidade, enquanto for possível se opor: “Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud” (Andrade, 1990, p. 52) e buscar “[...] a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama” (Andrade, 1990, p. 52).

Como exemplo de narrativa midiática contemporânea a ser pensada a partir da perspectiva antropofágica, está o documentário AmarElo – É tudo pra ontem (2020), disponível no canal de streaming da Netflix. Nele, Emicida, condutor da narrativa, devora uma série de referências do passado histórico brasileiro, relatando apagamentos, criticando, reconstruindo, colocando sobre os holofotes lados diversos da história da escravidão e das bem-sucedidas lutas sociais brasileiras, por meio de agentes fundamentais no processo histórico de busca por reparação de injustiças.

Emicida conduz uma narrativa em palimpsesto, escavando camadas e camadas de sentido, revelando aquilo que há muito estava escrito e que foi (e pode continuar sendo) re-escrito. Dá relevo a personagens muito importantes, mas nem sempre celebrados ou conhecidos, tais como a cantora Clementina de Jesus, o músico Wilson das Neves, a atriz Ruth de Souza, o dramaturgo Abdias do Nascimento, entre outros. A história é devorada crítica e criativamente, ao realizar um espetáculo no Theatro Municipal de São Paulo, com uma plateia coparticipante, majoritariamente preta, na qual estão referências midiáticas contemporâneas, tais como o pastor Henrique Vieira.

O passado é rememorado, com trechos do manifesto antropófago de Oswald de Andrade e com música de Belchior, interpretada por Emicida, Pablo Vittar e Maju, um homem preto e duas mulheres trans, que no palco, realizam o ritual de vingança criativa contra o colonizador e contra todas as opressões sofridas há séculos. Estão cientes de que não é o caso de se negar o passado e a história dos vencedores, mas de devorá-los, inventando outras possibilidades.

Considerações

Com este trabalho, confirmamos a possibilidade e a necessidade de ampliar as discussões sobre a antropofagia como uma possibilidade epistemológica e metodológica na relação com a comunicação, primeiramente por seu caráter processual. Assim como a antropofagia, que pressupõe a devoração crítica e criativa do alheio, defendemos a comunicação como um processo dialógico que, no contato com a diferença, amplia a sua complexidade, à medida em que permite desdobramentos criativos. Também pudemos perceber que a antropofagia auxilia na leitura de processos midiáticos ao modo de palimpsesto, auxiliando na visualização das múltiplas camadas de que são compostos.

Desta forma, a antropofagia pode ser vista como uma possibilidade metodológica e ao mesmo tempo propositiva para a comunicação, pois que convida a ler e tecer narrativas mais complexas, compostas pela mistura de gêneros, estilos e referências. Ainda, com a antropofagia, assume-se uma ética comunicacional, por se requisitar que as escolhas sejam processadas por meio de uma elaboração crítica, que busque equilibrar as assimetrias das relações interculturais – ou seja, não deve haver uma cultura que se impõe e outra que se subalterniza, mas sim uma espécie de vingança, na qual o hegemônico, o massivo, o imposto, são devorados criticamente e transformados criativamente.

Portanto, como primeiro resultado da pesquisa em curso, apresentamos essa contextualização síncrono-diacrônica, que nos permite rever a Semana de Arte Moderna, 100 anos depois: o que se constata é que a importância do movimento não está nos dias barulhentos da festa, mas em sua longa elaboração, que reuniu em um mesmo objetivo e questionamentos um grupo diversificado e controverso na proposta ética e estética, além de todos os desdobramentos, entre os quais se destacam os esforços de pesquisa e institucionalização da cultura e das artes, por Mário de Andrade, e a proposta antropofágica de Oswald de Andrade, composta como contraponto às primeiras ideias modernistas, por tomar as narrativas ameríndias pela perspectiva não do bom-selvagem, mas pela potência de vingança-criativa, o que significa um aprofundamento crítico no que diz respeito à presença ameríndia e africana na relação com o europeu, ao se tratar a cultura brasileira.

A antropofagia auxilia a se pensar tanto o ideário modernista quanto a própria história do Brasil como invenções, pois faz lembrar a necessidade de reconhecer as nações pan-indígenas que já habitavam estas terras por, pelo menos, 500 séculos antes da chegada dos europeus.

A proposta de Oswald de Andrade aprofunda a discussão sobre as narrativas indígenas e conduz para um primeiro aceno decolonial, ao propor a sociabilidade indígena, seus ritos e sua visão de mundo como formas para se pensar a cultura e as artes brasileiras por um olhar aberto, matriarcalista, que processa uma vingança criativa em relação ao colonizador, ao devorá-lo criticamente, não para apagá-lo, mas para transformá-lo de uma forma mais simétrica, com o aumento da potência dialógica. Ainda que o colonizador permaneça, não se renuncia à possibilidade de outros modos de ver.

Como proposta epistemológica, a antropofagia permite uma compreensão complexa do tecido cultural, sugerindo pensar por meio das aberturas presentes no que está aparentemente uno, com a percepção dos nós, ou conflitos envolvidos em cada trama de que as narrativas são compostas, como pontos de vista que re-velam os fenômenos por meio de brechas. Considerada horrenda pelos europeus, ao ser ponto de relevo na proposta oswaldiana, reconhece a bravura dos tupinambás não como algo animalesco, mas como processo de interação e sociabilidade.

Como poética, a antropofagia propõe misturar, incluir, envolver, destecer e re-tecer o diverso, como é o caso do documentário AmarElo, abrir e descosturar os pontos, para tornar a urdidura mais diversificada, a trama mais complexa e dialógica, ainda que com imensas dificuldades nessas combinações que perpassam as culturas e as mídias, e que não excluem o choque e o conflito, pois é só ao reconhecer a combinação do diverso que compreendemos as incoerências e verdades (nunca unas) de que tudo é composto.

Referências

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