Batalha Beco das Mina: Representatividade no Circuito do Hip Hop de Sorocaba

Beco das Mina Battle: Representativity in the Sorocaba’s Hip hop Circuit

Batalha Beco das Mina: Representatividad en el Circuito Hip Hop de Sorocaba

Thífani Postali

E-mail: thifanipostali@hotmail.com

Ana Paula Sallum Nicoletti

E-mail: anasallum9@gmail.com

DOI: 10.26807/rp.v27i116.2019

Resumo

Tendo como interesse a comunicação de mulheres periféricas na cidade de Sorocaba/SP - Brasil, o presente trabalho apresenta um estudo sobre a Batalha Beco das Mina, evento que reúne jovens para expressar suas experiências na cidade. Objetiva-se compreender as comunicações das mulheres envolvidas com o movimento hip hop, e suas relações com a cidade, uma vez que entendemos o hip hop como ferramenta de comunicação fundamental para a compreensão social. Como metodologia utiliza-se da etnografia na cidade, de Magnani, para observar e coletar dados fundamentais para a pesquisa. Já para a organização e análise dos dados, recorre-se a análise de Conteúdo proposta por Bardin. Para a contextualização teórica apresenta as contribuições da folkcomunicação, além de autores que discorrem especificamente sobre o objeto de estudo. O artigo apresenta a importância do pedaço Beco das Mina como prática sociocultural fundamental para compreender outros olhares sobre a experiência na cidade. O evento se apresenta como o local da resistência de mulheres diversas e arena de comunicação das líderes-comunicadoras da cidade de Sorocaba.

Palavras – Chaves: folkcomunicação, líderes-comunicadoras, cidade.

Abstract

The present work presents a study about the Beco das Mina Battle, an event that brings together young people to express their experiences in the city, focused in the communication of peripheral women in the city of Sorocaba/SP - Brazil. The objective is to understand the communications of women involved with the hip hop movement, and their relationships with the city, since we understand hip hop as a fundamental communication tool for social understanding. As a methodology, Magnani’s city ethnography is used to observe and

collect fundamental data for the research, and Bardin’s content analysis for the organization and analysis of data. For the theoretical contextualization, it presents the contributions of folkcommunication, as well as authors focused on the object of study. The article presents the importance of the Beco das Mina piece as a fundamental sociocultural practice to understand other perspectives on the experience in the city. The event presents itself as the place of resistance of diverse women and the communication arena for the communicator-leaders of Sorocaba city.

Key words: Folkcommunication, comunicational leaders, city.

Resumen: Teniendo como interés la comunicación de mujeres periféricas en la ciudad de Sorocaba/SP - Brasil, el presente trabajo presenta un estudio sobre la Batalha Beco das Mina, evento que reúne a jóvenes para expresar sus experiencias en la ciudad. Pretende comprender la comunicación de las mujeres involucradas con el movimiento hip hop, y sus relaciones con la ciudad, ya que entendemos el hip hop como una herramienta de comunicación fundamental para el entendimiento social. La metodología utilizada es la etnografía en la ciudad de Magnani, para observar y recoger datos fundamentales para la investigación. Para la organización y análisis de los datos, recurrimos al análisis de contenido propuesto por Bardin. Para la contextualización teórica presenta las contribuciones de la comunicación popular, además de autores que discurren específicamente sobre el objeto de estudio. El artículo presenta la importancia del Beco das Mina como práctica sociocultural fundamental para comprender otras miradas sobre la experiencia en la ciudad. El evento se presenta como el lugar de resistencia de mujeres diversas y la arena de comunicación de las mujeres líderes-comunicadoras de la ciudad de Sorocaba.

Palabras-clave: comunicación popular, comunicadores-líderes, ciudad.

Introdução

O uso da arte, sobretudo oral, tornou-se um mecanismo de comunicação de resistência bastante usual nas últimas décadas. O hip hop, manifestação cultural que envolve diversos elementos tais como rap, grafite, break, e que tem como objetivo a conscientização social (Postali, 2011), desde os anos 1990 se consolidou como ferramenta de comunicação em diferentes regiões do Brasil. Entretanto, quando analisamos a presença das mulheres no movimento percebemos maior visibilidade só a partir dos anos 2010. Isso porque o próprio hip hop apresenta relações conflituosas quando se trata da questão de gênero. No início dos anos 1990, as rappers pioneiras Sharylaine e Cris Lady Rap começaram a utilizar o rap para discursar sobre os problemas enfrentados pelas mulheres, sobretudo, as negras. Além dos temas comuns nas letras de rap como desigualdade social, preconceito racial, violência etc., as rappers passaram a incluir questões voltadas as mulheres e a violência de gênero. Por outro lado, de acordo com Postali (2018), a prática não foi aceita de maneira pacífica pelos grupos masculinos que passaram a utilizar a música também para combater as letras produzidas por mulheres, com conteúdos pejorativos e que desvalorizavam as suas lutas e atuação no movimento.

Com a difusão da internet no Brasil, especialmente com a popularização dos dispositivos celulares e acesso à rede de internet, mulheres de todas as regiões passaram a se unir para a produção, veiculação e publicização das produções, e coletivos e encontros femininos começaram a surgir em diferentes regiões do Brasil. Na cidade de Sorocaba, interior de São Paulo - Brasil, há uma batalha de rima chamada Beco das Mina que se caracteriza pela reunião de jovens para a comunicação de rimas ao vivo – organizada, apresentada e assistida por mulheres de diversas localizações da cidade. A Batalha Beco das Mina é o objeto de estudo deste trabalho que tem como objetivo compreender as comunicações das jovens periféricas sorocabanas envolvidas com o movimento hip hop, uma vez que entendemos o hip hop como ferramenta de comunicação.

Com relação às pesquisas realizadas sobre as grandes cidades, Magnani (2016) ressalta que elas apresentam a urbe à parte de seus moradores, focando em aspectos tais como economia, política e demografia. Para o autor, essa é uma leitura desprovida do elemento que, em definitivo, dá vida à metrópole: os atores sociais que possuem múltiplas experiências. Magnani (2016) chama a atenção para o fato de que, quando aparecem, são geralmente representados de maneira passiva, como “os excluídos, os espoliados”, como se estivessem descolados de todo o processo urbano.

A fim de contribuir com as pesquisas sobre e na cidade, Magnani (2016) propõe ferramentas para observar as práticas culturais na urbe. Próprio da etnografia, o olhar de perto e de dentro apresenta uma família de categorias (pedaço, mancha, trajeto e circuito) capazes de “[...] classificar e descrever a multiplicidade das escolhas e os ritmos da dinâmica urbana, não centrados nas escolhas de indivíduos, mas em arranjos coletivos e recorrentes, em cujo interior se dão essas escolhas, apontando para regularidades”. (2016, p. 11).

Diante do exposto, o trabalho utilizou como metodologia a etnografia na cidade (Magnani, 2009; 2016) para observar duas edições da Batalha Beco das Mina, realizadas na cidade de Sorocaba/SP - Brasil, como um pedaço do circuito hip hop que possui como principal característica a reunião de mulheres diversas que se reúnem para comunicar e trocar experiências específicas de suas múltiplas localizações sociais. Utilizou-se como técnica a observação dos encontros e coleta de dados a partir de registros de imagem e fotos previamente autorizadas pelas participantes, além de entrevista semiestruturada com a organizadora para compreender o surgimento e dinâmica da batalha. Já para a organização e interpretação dos dados coletados, recorreu à Análise de Conteúdo (Bardin, 1997).

A escolha do Beco das Mina se deu pelo interesse das autoras em compreender a formação desse pedaço e os motivos que levaram a organizadora a criar um evento específico para as mulheres. É certo que diversos relatos apontam para o preconceito de gênero ainda existente nos ambientes de hip hop (Postali, 2018; Alves, 2013), entretanto, interessou investigar as especificidades desse pedaço, especialmente a partir das comunicações entregues pelas jovens.

Para melhor compreensão sobre como ocorrem as batalhas de rima, utilizamos as contribuições de Alves (2013) e Cura (2019) que realizaram importantes pesquisas sobre o tema. Já para a abordagem acerca do hip hop como manifestação cultural, utilizamos os trabalhos de Herschmann (2000) e Postali (2011, 2019/2020). Para a compreensão das organizadoras e participantes como agentes de comunicação e líderes-comunicadoras folk, recorremos aos estudos sobre folkcomunicação (Beltrão, 1980).

Assim, pretendemos apresentar a importância do pedaço Beco das Mina como prática sociocultural fundamental para compreender as experiências na cidade. O evento se apresenta como o local da resistência de jovens diversas e arena de comunicação das líderes-comunicadoras folk da cidade de Sorocaba.

Quadro referencial: as Batalhas da rima

Batalhas são eventos que acontecem em rodas culturais ou em batalhas de rima. Especificamente a primeira contempla outros tipos de atividades artísticas e defende a ocupação de espaços públicos, enquanto a segunda são eventos apenas para as rimas e podem acontecer em espaços privados ou não (Alves, 2013). As batalhas são definidas como duelos poéticos onde os (as) mestres de cerimônia (MC’s), pessoas que fazem rima de improviso1, se enfrentam dentro de um tempo pré-definido, geralmente de 30 e 45 segundos (Cura, 2019). Existem outras figuras importantes em uma batalha, como o apresentador ou apresentadora - que media e anima o público, conduzindo e garantindo que as regras sejam seguidas -, além do DJ, responsável pela base musical. Normalmente, o vencedor ou vencedora é eleito pelo voto popular, onde o público escolhe quem teve a melhor performance.

Segundo Cura (2019), as batalhas ainda servem como espaços para novos MC’s se desenvolverem, treinarem e mostrarem o seu talento com rima, incluindo o freestyle, que são rimas elaboradas na hora e sem ensaio prévio. A Batalha do Real, que acontece no Rio de Janeiro, é conhecida como a mais tradicional e famosa da cena carioca, sendo considerada a maior escola do rap brasileiro. Exemplos famosos que se destacaram nessa batalha são Emicida, Maomé (Cone Crew Diretoria) e Marechal.

De acordo com Alves (2013) existem dois tipos de batalhas predominantes: a batalha de sangue e a batalha de conhecimento. A primeira é uma disputa agressiva entre os MC’s, que rimam sobre traços físicos, características marcantes, disputas internas ou outros aspectos com o intuito de agredir verbalmente o outro adversário. O MC que rimar de maneira mais desafiadora e ousada tem maior probabilidade de ganhar a disputa, o que não significa que todo e qualquer tipo de ofensa seja aceitável, uma vez que o público é jurado e pode expressar descontentamento quando necessário.

A segunda batalha mencionada por Alves (2013) é a batalha de conhecimento, idealizada pelo MC Marechal. Esse formato tem o intuito de abordar conteúdo de transformação social, servindo como uma alternativa às batalhas de sangue. Nela os MC’s são elementos do movimento cultural do hip hop, uma vez que elaboram rimas a partir de um tema pré-definido (um debate, um filme, uma imagem), incentivando um debate de ideias. O MC é avaliado pela habilidade de formular uma mensagem com conteúdo consistente e consciente, normalmente de cunho político, socioeducativo ou das vivências do MC (Cura, 2019). Nas batalhas de conhecimento não é permitido atacar o oponente, apenas demonstrar o conhecimento sobre o tema proposto.

A esta altura, torna-se relevante apresentar o hip hop. O movimento surgiu no Bronx, Nova Iorque (EUA) e foi criado por Afrika Bambaataa, em 1974, a partir da Universal Zulu Nation, uma organização não governamental que tem como objetivo combater a criminalidade nos territórios periféricos. A organização oferece oficinas culturais, palestras sobre diversos temas sociais e de conhecimentos gerais (matemática, economia, prevenção às drogas entre outros assuntos fundamentais para a população). O hip hop surge, portanto, de uma iniciativa para a transformação dos territórios periféricos estadunidenses e se espalha para diversos países em meados de 1980. No Brasil, o movimento é marcado pela gravação do álbum Hip Hop Cultura de Rua, em 1988, com canções que tratavam sobre os problemas sociais enfrentados pelos jovens urbanos marginalizados (POSTALI, 2011).

Deste modo, nos dedicamos ao estudo das batalhas que mais se aproximam da proposta de MC Marechal e, assim, do movimento hip hop, uma vez que, conforme a Universal Zulu Nation (2004), o movimento almeja promover o conhecimento, a reflexão, igualdade, paz, amor, respeito e responsabilidade através da união dos jovens marginalizados. Assim, tendo como um dos seus elementos a palavra “conhecimento”, o hip hop reflete sobre a importância dos membros do movimento se munirem de informações sobre suas localizações sociais para produzir conteúdo de transformação social. Logo, batalhas que envolvem conhecimento refletem a filosofia do hip hop, sendo um instrumento de resistência que comunica assuntos de interesse, sobretudo, dos “grupos urbanos marginalizados” (Beltrão, 1980).

Metodologia

Mas pra branco é assim mesmo. Pra eles, a gente male má têm rosto. Quem dirá nome. Na escuridão das madruga eu viro alvo fácil de viatura. Dificilmente pretos como eu chegaram a formatura. É que malandragem para vocês é roubar bebida de mercado. De onde eu venho, é voltar para casa sem ser forjado. Somos sempre os culpados. E naquele dia, quando você riu, o meu cabelo era piada. Quando seguiram o mesmo caminho, eu era a próxima parada. Quando surgiu um beco, eu fui estuprada. E foi ali que o seu silêncio me transformou em nada. O seu silêncio também me matou. O seu silêncio também me estuprou. O seu silêncio me mata todos os dias, assim como Duda, João, Vitor, Matheus e Marias. No seu rolê de branco, cheio de amigo branco, seu carro de branco, cheirando a porra desse pó branco, passa batido. Mas eu tenho cara de pretinha suspeita, eu sou abordada indo pro trampo. É porque o sistema reflete você, mas é a minha cara que está nas reportagens de tv. (Evelyn Taynara Rodrigues)

Ao indicar um estudo etnográfico específico sobre a cidade, Magnani (2016) apresenta um conjunto de categorias capazes de proporcionar um olhar mais abrangente sobre as culturas na cidade. De acordo com o autor, os atores sociais oferecem uma gama de práticas que não são visíveis. Neste sentido, a etnografia contribui para revelar outros olhares sobre a dinâmica da cidade, para além do olhar dominante que decide o que é certo e errado:

A presença de migrantes, visitantes, moradores temporários e de minorias; de segmentos diferenciados com relação à orientação sexual, identificação étnica ou regional, preferências culturais e crenças; de grupos articulados e torno de opções políticas e estratégicas de ação contestatórias ou propositivas e de segmentos marcados pela exclusão – toda essa diversidade leva a pensar não na fragmentação de um multiculturalismo atomizado, mas na possibilidade de sistemas de trocas de outra escala, com parceiros até então impensáveis, permitindo arranjos, iniciativas e experiências de diferentes matizes. (Magnani, 2016, p. 15-16)

Magnani (2016, P. 17) ressalta que o foco antropológico, sobretudo a partir do método etnográfico, evita a abordagem que opõe o indivíduo e as megaestruturas urbanas. A perspectiva de perto e de dentro, proposta pelo autor, é “[...] capaz de apreender os padrões de comportamento, não de indivíduos atomizados, mas dos múltiplos, variados e heterogêneos conjuntos de atores sociais cuja vida cotidiana transcorre na paisagem da cidade e depende de seus equipamentos”. O método de perto e de dentro permite observar os atores sociais a partir de seus comportamentos, ou seja, “[...] das formas por meio das quais eles se avêm para transitar pela cidade, usufruir seus serviços, utilizar seus equipamentos, estabelecer encontros e trocas nas mais diferentes esferas [...]” (Magnani, 2016, p. 18).

Essa estratégia supõe um investimento em ambos os pólos da relação: de um lado, sobre os atores sociais, o grupo e a prática que estão sendo estudados e, de outro, a paisagem em que essa prática se desenvolve, entendida não como mero cenário, mas parte constitutiva do recorte de análise. É o que caracteriza o enfoque da antropologia urbana, diferenciando-o da abordagem de outras disciplinas e até mesmo de outras opções no interior da antropologia.

De acordo com Magnani (2016), os atores sociais, em seus múltiplos coletivos, apresentam padrões em meio a paisagem da cidade. Para a perspectiva de perto de dentro, o autor apresenta categorias pelas quais torna-se possível observar a paisagem urbana e compreender as práticas socioculturais, sendo elas pedaço, mancha, trajeto e circuito que, em suas palavras são


[...] possibilidades que abrem para identificar diferentes situações da dinâmica cultural e da sociabilidade na metrópole: a noção de
pedaço evoca laços de pertencimento e estabelecimento de fronteiras, mas pode estar inserida em alguma mancha, de maior consolidação e visibilidade na paisagem; esta, por sua vez, comporta vários trajetos como resultado das escolhas que propicia a seus freqüentadores. Já circuito, que aparece como uma categoria capaz de dar conta de um regime de trocas e encontros no contexto mais amplo e diversificado da cidade (e até para fora dela), pode englobar pedaços e trajetos particularizados. (Magnani, 2016, p. 25)

Diante do exposto, compreendemos a Batalha Beco das Mina como um pedaço dentro do circuito hip hop brasileiro. Deste modo, o foco antropológico a partir do método de perto e de dentro proposto por Magnani (2016) é a metodologia que norteia este trabalho.

Descobertas

Ao observarmos os eventos realizados na Praça Frei Baraúna, percebemos se tratar de um pedaço composto por jovens, em sua maioria periféricas. É um pedaço pertencente ao circuito hip hop, localizado na paisagem central da cidade de Sorocaba, onde os equipamentos sociais permitem o encontro com mais facilidade. A praça possui um ponto de transporte público com linhas das mais variadas regiões da cidade, facilitando o acesso. Também possui uma escadaria ao entorno de um obelisco que, segundo Monteiro (2019), trata-se de um monumento que tem como intenção representar a memória a ser lembrada pela coletividade, perpetuando a história e, em muitos casos, homenageando figuras públicas. A historiadora ressalta que o monumento passou a ter novos significados, representando também os heróis. No caso do obelisco da Praça Frei Baraúna, ele homenageia os 109 soldados de Sorocaba que foram lutar durante a Segunda Guerra Mundial (Monteiro, 2019).

A ocupação de uma praça central que abriga um obelisco, por jovens periféricas, é bastante significativa. Do ponto de vista arquitetônico, Heiserová (2014) chama a atenção para o fato de que existe uma refinada ligação entre o gênero e os elementos arquitetônicos, sendo a arquitetura vertical vinculada ao celestial, divino e masculino, enquanto os elementos horizontais e curvos ao feminino. Para Heiserová (2014), os arranha-céus, os obeliscos, as ruas longas e retas são construções dos “homens” que operam de modo velado, instaurando uma ordem masculina, mas que se apresenta como “neutra”. Especificamente a respeito do obelisco, Heiserová (2014), ressalta que, quando localizado verticalmente - um quadrado em sua base que diminui gradualmente em sua altitude, terminando como uma extremidade aguda -, cria um formato fálico. Heiserová (2014) ressalta que tanto as pessoas quanto os espaços possuem um gênero. Sendo assim, as jovens do Beco das Mina ocupam um local marcado pelo masculino para resistir, especialmente, às opressões sociais do “cis-heteropatriarcado” (Akotirene, 2019).

A praça também se apresenta como um ambiente hostil para as jovens que não têm total liberdade para transitar pelas ruas da cidade, especialmente aos domingos no período noturno - dia e período de realização dos encontros - ocasião em que há pouca circulação de pessoas nas ruas. Nos dias em que realizamos a pesquisa de campo, a temperatura estava fria, a praça ocupada pelo grupo de poucas meninas, pessoas em situação de rua e grupos culturalmente marginalizados2. No dia 17 de maio de 2022, o ambiente foi monitorado pela Polícia Militar. Os PMs vigiavam o casarão do Fórum Velho - que se encontra desativado e, por consequência, é frequentemente ocupado por grupos -, e observavam as atividades na praça de maneira, aparentemente, hostil.

Essas observações nos levam a compreender o Beco das Mina como um pedaço de representatividade e resistência. Representatividade porque utilizam um espaço público para comunicar suas experiências sociais que são, frequentemente, negadas ou ignoradas pelas mídias e narrativas dominantes; de resistência porque ocupam um ambiente hostil, marcado pelo masculino, ressignificando o espaço com a presença de seus corpos e comunicação. De acordo com os Estudos Culturais, a resistência


[...] trata-se, ao mesmo tempo, de uma declaração de independência, de alteridade, de intenção de mudança, de uma recusa ao anonimato e a um estatuto subordinado. É uma insubordinação. E se trata, ao mesmo tempo, de uma confirmação do próprio fato da privação do poder, de uma celebração da impotencia. (Hebdige, 1998, in Mattelart, 2004, p. 75)

Portanto, o Beco das Mina é um pedaço de resistência fundamental para compreender a vida das jovens periféricas na cidade de Sorocaba - e não só, uma vez que as comunicadoras abordam temas comuns às experiências das diversas jovens e mulheres brasileiras.

Discussão: Batalha Beco das Mina

Cresci escutando que somos todos iguais, que é o caráter que diferencia os falsos dos reais, que os reais nos bolsos não te faz melhor nem mais capaz. A falácia da meritocracia serve tapas com sua mão invisível na cara de vários menor do morro. (Mylena Celestina)

Realizada na praça Frei Baraúna, localizada na região central da cidade de Sorocaba/SP - Brasil, a Batalha Beco das Mina reúne mulheres diversas que se encontram para rimar sobre assuntos de seus interesses. Em pesquisa etnográfica na cidade. (Magnani, 2009; 2016). Realizada em dois encontros do Beco das Minas, sendo nos dias 17 de maio e 26 de junho de 2022, foi possível observar e coletar dados para compreender as comunicações das jovens sorocabanas envolvidas com a batalha.

Em entrevista semiestruturada, realizada no dia 26 de maio, no período de duas horas, com Letícia- fundadora e organizadora do Beco das Mina -, obtivemos a informação de que o Beco das Mina foi criado como uma alternativa às batalhas de sangue que são, predominantemente masculinas, onde também são comuns discursos racistas, homofóbicos, transfóbicos, sexistas, tornando o ambiente hostil para as minorias.

Assim, Letícia decidiu montar o Beco das Mina, um local que descreve como aberto e acolhedor a todas as jovens interessadas em rima. Com relação ao comportamento geral, Letícia revela que as jovens não se violentam verbalmente ou se esculacham como ocorre nas Batalhas de Sangue, sendo que os temas mais comuns são racismo, desigualdade social e homofobia, o que é justificado pelo fato de a maioria das participantes serem jovens negras entre seus vinte e poucos anos, e pertencerem ao grupo LGBTQIA+3. A organizadora ressalta o espaço é utilizado para apresentar arte de maneira segura e respeitosa e que o formato segue, predominantemente, como batalhas de poesia, ou seja, rimas pré-elaboradas, uma vez que “é bem difícil chamar meninas para rimarem no freestyle.

É importante destacar que, apesar de a Batalha Beco das Minas não incluir agressões verbais ou esculachos, Letícia não a entende como Batalha do Conhecimento já que não ocorre seguindo o formato proposto por MC Marechal, que inclui um tema previamente proposto. A fim de compreender melhor as comunicações das jovens participantes do Beco das Mina, realizamos a Análise de Conteúdo (Bardin, 1997) em rimas apresentadas durante o evento de 17 de maio de 2022. Isso porque não ocorreram apresentações no encontro de 26 de junho de 2022 pelo fato de não terem comparecido participantes suficientes.

Para a interpretação dos dados coletados, recorremos a documentos como matérias jornalísticas, artigos científicos e outros levantamentos que abordam os temas que foram mencionados com frequência nas comunicações. Importante destacar que procuramos conteúdos disponíveis, especialmente, no jornalismo das periferias que, de acordo com Rovida (2020, p. 143) “se trata de um jornalismo profissional, pautado pelo compromisso em lidar com uma parcela da cidade que é pouco noticiada pela imprensa mainstream”. A autora (2020) chama a atenção para o fato de que o jornalismo produzido por profissionais oriundos das periferias assume uma forma de “ativismo pela comunicação, sendo que a articulação de seus produtores pode ser entendida como um movimento social não institucionalizado e que tem o compromisso com a garantia do direito social à informação. Deste modo, buscamos inserir fontes mais dirigidas às situações sociais apresentadas pelas jovens do Beco das Mina.

Em 17 de maio de 2022, cinco jovens, sendo maioria mulheres negras, na faixa etária de vinte e poucos anos, apresentaram no formato de batalha de rimas. Assim, cada jovem rimou enquanto o público presente votou nas melhores manifestações.

Com relação ao conteúdo das rimas, foi possível detectar que o tema mais abordado foi violência contra a mulher, incluindo menções à cultura do estupro e feminicídio. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2022), foram registrados 583.156 casos de estupro e estupro de vulnerável no país em 2021, sendo que 88,2% das vítimas eram mulheres e 75,5% eram vulneráveis, categoria que inclui pessoas consideradas incapazes de consentir o ato sexual, incluindo menores de 14 anos. No caso do estupro de vulnerável, em 79,6% dos casos o crime foi cometido por um conhecido da vítima (pais, padrastos, avôs, irmãos, amigos e vizinhos).

Já com relação ao feminicídio no país, os dados apresentam que, entre 2020 e 2021, 2.695 mulheres foram mortas apenas pela sua condição de ser mulher. Nesse mesmo período, foi registrado um aumento de 23 mil novas chamadas de emergência para o número 190 solicitando atendimento para casos de violência doméstica. Os números sobre a violência contra a mulher são alarmantes e cresceram no período de 2020 e 2021 no Brasil:

Praticamente todos os indicadores relativos à violência contra mulheres apresentaram crescimento no último ano: houve um aumento de 3,3% na taxa de registros de ameaça, e crescimento 0,6% na taxa de lesões corporais dolosas em contexto de violência doméstica entre 2020 e 2021. Os registros de crimes de assédio sexual e importunação sexual cresceram 6,6% e 17,8%, respectivamente. (FBSP, 2022)

Além da violência contra a mulher, situações específicas sobre as mulheres negras foram mencionadas tais como a estereotipia sobre os corpos negros, hipersexualização, solidão da mulher negra, mãe solo e abandono paternal. Com relação ao poder masculino sobre as mulheres, Beavouir (1949), já na primeira metade do século XX, observou que o homem branco define a mulher a partir de si, ou seja, ele é o Sujeito e o Ser Humano, enquanto a mulher é o Outro, um objeto que advém do macho. Entretanto, as discussões acerca das opressões sobre as mulheres não incluíam as situações específicas enfrentadas pelas mulheres negras. Akotirene (2019) lembra que as pautas das mulheres negras eram também esquecidas e/ou silenciadas pelo movimento negro, pelas leis antirracistas e outras frentes que, apesar de abordarem situações enfrentadas pelas mulheres e pelos negros, não incluíam as especificidades das mulheres negras.

Assim, quando consideramos as questões que atravessam as mulheres negras, constatamos um poder ainda maior sobre elas, uma vez que os negros, de modo geral, também são percebidos como o Outro numa sociedade pautada pelo “racismo estrutural” (Almeida, 2019), como é o caso do Brasil. Sobre esse aspecto, ao discorrer sobre a localização social da mulher, Ribeiro (2017) conclui que a mulher negra é o Outro do Outro, pois, por não serem brancas e nem homens, sofrem violência de gênero e de racismo.

Sobre a hipersexualização da mulher - sendo uma violência que pode culminar no feminicídio – Silva (2021) esclarece ser uma visão masculina perpassada pela sociedade por muito tempo e com presença em diversas mídias e áreas da comunicação, tais como cinema, marketing, música, literatura entre outras. Por meio de uma visão mercantil, as mulheres são objetificadas e representadas como um produto de consumo. A respeito dos corpos de mulheres negras, Lima, Silva e Nepomoceno (2021) lembram que a história do Brasil é atravessada por processos de exploração, desumanização e subalternidade dos corpos negros e indígenas, sendo marcada pelo estupro. Os autores (2021, p. 27) ressaltam que corpos de mulheres negras são ainda considerados

[...] selvagens, suportando violências durante os atos sexuais (isso é muito discutido, sobretudo, em relação aos partos de mulheres negras, que eram submetidas a partos sem anestesia, pois eram tidas como fortes), durante a escravidão eram estupradas, outras vezes eram pressionadas a fazer sexo com homens brancos pela cultura do embranquecimento, ou como forma de sobrevivência.

Para os autores, essas situações ainda estão presentes na contemporaneidade e se revitalizam por meio de “novas engrenagens” que perpetuam o racismo e garantem posicionamentos segregadores, como a constante forma como os corpos femininos negros são representados na mídia dominante4.

Outro tema presente nos discursos é a violência do Estado contra mulheres e homens negros, e a negligência de pessoas privilegiadas. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2017 houve 63.880 mortes violentas no Brasil, uma marca de 175 pessoas por dia, sendo que 8% dessas mortes são causadas pela polícia - uma média de 14 pessoas por dia. Os dados apresentam um aumento de 20% de mortes causadas por agentes de segurança quando comparado ao ano de 2016 (Brito, 2018). De acordo com Brito (2018), para cada 100 pessoas mortas de forma violenta, cerca de 71 são negras, o que revela que a violência do Estado é cotidiana e decorrente do racismo estrutural.

Com relação aos marcadores que podem melhor revelar essa e outras situações acerca da violência no Brasil, a organização não governamental Instituto Sou da Paz, em sua quinta edição do estudo “Onde Mora a Impunidade? Porque o Brasil precisa de um Indicador Nacional de Esclarecimento de Homicídios”, realizado no ano de 2022, mostrou que apenas 37% dos casos de homicídios no Brasil geraram denúncia à justiça no ano de 2020, sendo que, dentre todos os estados brasileiros, só 19 deles mandaram dados completos para o estudo. Destes, apenas sete estados possuem informações completas a respeito do sexo das vítimas (Ceará, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraíba, Piauí, Roraima, São Paulo); sobre idade, apenas seis estados (Mato Grosso, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Roraima, São Paulo); e com relação à raça e cor, o mais preocupante, apenas três estados enviaram dados ainda que incompletos (Mato Grosso, Pernambuco, Rio de Janeiro).

O tema da desigualdade social também foi frequente e, nesse aspecto, à situação de famílias de mãe solo surgiu em uma rima que tratou sobre a falácia da meritocracia e as dificuldades de sobreviver em um núcleo familiar pobre e com a ausência do pai. Nesse mesmo discurso, citou-se a importância de jovens negros chegarem ao ensino superior. De acordo com a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), nos quatro primeiros meses de 2022, mais de 55 mil crianças foram registradas somente em nome da mãe, um aumento de 1,3%, quando comparado ao ano de 2018.

Com relação aos estudos, o Censo da Educação Superior 2017, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), apresenta que os jovens de 18 a 29 anos da camada mais pobre da população têm média de 9,5 anos de estudo, enquanto os mais ricos têm índice de 13,1. Com relação ao ensino superior, Sousa (2019) ressalta que desde o início da implantação das cotas raciais e sociais, em 2004, o número de pessoas negras dobrou nas universidades que adotaram a política. No entanto, o levantamento do IBGE de 2015 apresenta que, do total de jovens negros de 18 a 24 anos, 12,8% estão no ensino superior, frente a 26,5% de jovens brancos (Sousa, 2019).

Outros temas como escravidão, religiosidade, união e comunidade também surgiram. Embora com menos frequência na edição de 17 de maio de 2022, são temas comuns em conteúdos de hip hop, e que indicam a importância desses espaços de comunicação também como veículos de produção e promoção de identidade cultural. (Hall, 2003).


Conclusões: lideranças folkcomunicacionais

[...] Talvez eu só que esteja louca, para montar quebra-cabeça para falar de tanta coisa. E o pobre? O pobre não ganha uma luta. A esperança é só rede de mercado. E a união? Só fez açúcar. Realidade é nua e crua. De dentro de um condomínio se sabe pouco sobre a rua. Olho para o chão, tapete cinza. Ergo a cabeça e vejo a lua. Deus, eu sei que a vida não divide, mas tire dez dias felizes meus e dê para uma pessoa triste. Todos vão sentir uma revolta... Deixa eu vestir tua asa pra ajudar em outra história. (Paolex)

A partir das pesquisas, compreendemos que as jovens que participam do Beco das Mina são líderes-comunicadoras folk que se encontram para dialogar e refletir sobre situações que experienciam e que são fundamentais para a compreensão da vida na cidade.

De acordo com a folkcomunicação, campo que investiga a comunicação popular, a comunicação dos marginalizados são caracterizadas por processos onde as “mensagens são elaboradas, codificadas e transmitidas em linguagens e canais familiares à audiência, por sua vez, conhecida psicológica e vivencialmente pelo comunicador, ainda que dispersa” (Beltrão, 1980, p. 28).

Os (as) líderes-comunicadores (as) folk, neste caso, são pessoas marginalizadas que possuem opiniões caras ao grupo social ao qual estão inseridas e que, por meio da cultura popular, comunicam mensagens capazes de serem melhor compreendidas pelo público ao qual desejam comunicar. Cabe ressaltar que, de acordo com Beltrão (1980, p. 35), os (as) líderes-comunicadores (as) “nem sempre são ‘autoridades’ reconhecidas, mas possuem uma espécie de carisma, atraindo ouvintes, leitores, admiradores e seguidores [...]”. São bem considerados (as) nos grupos aos quais pertencem, pois possuem informações e opiniões sobre assuntos importantes ao grupo, provocando, assim, reações diversas. São, portanto, agentes de comunicação essenciais para a compreensão da vida em sociedade.

Do ponto de vista comunicacional, as jovens que se dispõem a enfrentar as noites dos domingos na praça Frei Baraúna e enfrentam adversidades ainda maiores na cidade, cumprem o papel de líderes-comunicadoras folk que resistem e dialogam sobre suas situações para além de seus territórios, uma vez que se encontram na região central da cidade a fim de levar suas mensagens para outras localizações por meio das demais participantes, sejam líderes-comunicadoras ou público presente. Apesar de Letícia, organizadora do evento, não considerar o Beco das Mina uma batalha do conhecimento, a pesquisa aponta que ela está muito mais próxima desse formato - que tem uma intenção social -, que as batalhas de sangue. Sabe-se que a batalha do conhecimento oferece um tema a ser debatido e, do ponto de vista de Letícia, a batalha organizada por ela não possui esse formato. No entanto, observamos que O Beco das Mina já possui seu próprio tema central, ainda que inclua outros que dialogam com ele: as experiências das jovens diversas na cidade, uma vez que o evento envolve jovens pertencentes ao “grupo urbano marginalizado” (Beltrão, 1980), negras, brancas e LGBTQIA+.

Neste sentido, a praça do centro da cidade de Sorocaba é ocupada e o obelisco ressignificado como ponto de encontro de jovens que vão realizar no espaço uma “batalha de resistência”, e que pode ser entendida como arena contemporânea para enfrentamento social por meio da comunicação rimada de experiências de jovens periféricas na cidade.

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1 Em algumas batalhas as rimas são previamente elaboradas e não construídas na hora do enfrentamento.

2 Os grupos culturalmente marginalizados são compostos por “indivíduos marginalizados por contestação à cultura e a organização social estabelecida, em razão de adotarem filosofia e/ou política contraposta a ideias e práticas generalizadas da comunidade” (Beltrão, ١٩٨٠, p. ١٠٣).

3 Grupo social que emgloba pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgênero, queer, intersexo, assexual e + identidades de gênero e orientações sexuais que não se encaixam no padrão cis-heteronormativo.

4 Os estudos de Lima, et. al. (2021), por meio do Grupo de Estudo em Gênero e Feminismos (GEGEF) do Instituto Federal da Bahia, discorrem sobre a representação da mulher negra na peça publicitária veiculada no período de 2010 e 2011, da cerveja Devassa fabricada pela empresa Brasil Kirin. No entanto, também abordam representações no cinema, novela, carnaval, entre outras discussões fundamentais para a compreensão do tema.