Por uma comunicação ambiental mais orgânica: a natureza mediadora da ecologia social em processos educativos

For a more organic environmental communication:

the mediating nature of social ecology in educational processes

Para una comunicación ambiental más orgánica:

la naturaleza mediadora de la ecología social en los procesos educativos

Jane Mazzarino

Universidade do Vale do Taquari – Univates Comunicação

E-mail: janemazzarino@univates.br

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6051-5116

Denise B. Scheibe

Universidade do Vale do Taquari – Univates Comunicação

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7985-8875

Bruno E. Petter

Universidade do Vale do Taquari – Univates Comunicação

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2206-1499

DOI: 10.26807/rp.v27i117.2050

Resumo

O artigo trata de intervenções em comunicação e educação ambiental em que foram explorados os sentidos, o lúdico, a arte, a interação e a contemplação. Atrelamos, a esta perspectiva metodológica vivencial, a ecosofia, que propõe a interdependência entre três registros ecológicos (meio ambiente, relações sociais e subjetividade). Problematiza-se a proposta ecosófica na criação de uma comunicação ambiental baseada na exploração de recursos que as atividades ao ar livre possibilitam. Com este questionamento imergimos no campo, munidos do método cartográfico. Durante o processo algumas linhas de força foram ficando nítidas, delineando o que veio a ser o objetivo do estudo: compreender a potência da natureza na mediação da ecologia social em um processo de comunicação. O que evidenciou-se com as intervenções é que a interação dinâmica provocada gerou uma coprodução entre crianças e natureza por meio de excitações orgânicas que explicitaram um emaranhamento de linhas do corpo-natureza com aquelas dos corpos-humanos que habitaram o bosque, formando, com seus círculos recursivos, um ecossistema socioambiental. A exploração da sensibilidade e do desejo em espaços naturais por meio de estratégias lúdicas possibilitou novas configurações existenciais para os participantes. Criamos outras possibilidades de educação ambiental e percebemos evidências de uma outra comunicação ambiental, orgânica, sem a centralidade midiática. O que esteve no centro foram os intercâmbios de fluxos energéticos.

Palavras – Chaves: Comunicação. Sensibilização ambiental. Ecosofia. Cartografia

Abstract

The article deals with interventions in communication and environmental education in which the senses, playfulness, art, interaction and contemplation were explored. We link to this experiential methodological perspective, the philosophy, which proposes the interdependence between three ecological records (environment, social relations and subjectivity). The ecosystem proposal is problematized in the creation of an environmental communication based on the exploitation of resources that outdoor activities make possible. With this questioning, we immersed ourselves in the field, using the cartographic method. During the process, some lines of force became clear, outlining what became the objective of the study: to understand the power of nature in the mediation of social ecology in a communication process. What became evident with the interventions is that the dynamic interaction provoked generated a co-production between children and nature through organic excitations that made explicit an entanglement of body-nature lines with those of the human-bodies that inhabited the forest, forming, with its recursive circles, a socio-environmental ecosystem. The exploration of sensitivity and desire in natural spaces through playful strategies made possible new existential configurations for the participants. We created other possibilities of environmental education and we noticed evidence of another environmental, organic communication, without media centrality. What was at the center were the exchanges of energy flows.

Key words: Communication. Environmental awareness. Ecosophy. Cartography.

Resumen

De acuerdo a los intereses y propósitos de investigación, el estudio tiene un El artículo trata sobre intervenciones en comunicación y educación ambiental en las que se exploraron los sentidos, la alegría, el arte, la interacción y la contemplación. Vinculamos a esta perspectiva metodológica experiencial, la filosofía, que propone la interdependencia entre tres registros ecológicos (medio ambiente, relaciones sociales y subjetividad). La propuesta de ecosistema se problematiza en la creación de una comunicación ambiental basada en la explotación de los recursos que posibilitan las actividades al aire libre. Con este cuestionamiento, nos sumergimos en el campo, utilizando el método cartográfico. Durante el proceso, se aclararon algunas líneas de fuerza, delineando lo que se convirtió en el objetivo del estudio: comprender el poder de la naturaleza en la mediación de la ecología social en un proceso de comunicación. Lo que quedó en evidencia con las intervenciones es que la interacción dinámica provocada generó una coproducción entre los niños y la naturaleza a través de excitaciones orgánicas que explicitaron un entrelazamiento de líneas cuerpo-naturaleza con las de los cuerpos-humanos que habitaban el bosque, formando, con sus círculos recursivos, un ecosistema socioambiental. La exploración de la sensibilidad y el deseo en espacios naturales a través de estrategias lúdicas posibilitaron nuevas configuraciones existenciales para los participantes. Creamos otras posibilidades de educación ambiental y advertimos evidencias de otra comunicación ambiental, orgánica, sin centralidad mediática. Lo que estaba en el centro eran los intercambios de flujos de energía..

Palabras clave: Comunicación. Sensibilización ambiental. Ecosofia. Cartografia

1 Introdução

O conceito de ecosofia proposto pelo psicanalista francês Félix Guatarri, em As Três Ecologias (1990), perpassa todos os campos científicos, transcendendo a psicologia. Para o autor, é necessária uma articulação ético-política do que ele denomina os três registros ecológicos: do meio ambiente, das relações sociais e da subjetividade humana, em uma ação que deve ser planetária, de ordem também social e cultural, e que envolva a sensibilidade, a inteligência e o desejo, em uma percepção complexa e multipolar, favorecendo a criação de novos territórios existenciais por meio da busca de outras intensidades compositoras de reconfigurações existenciais.

Entre outras ideias, Guattari (1990) afirma que adotar a perspectiva ecosófica significa desserializar-se, deixar de repetir-se, experimentar descentramentos e debruçar-se sobre dispositivos de produção da subjetividade, reinventando maneiras de ser e de ser em grupo. Para isso, sugere explorar novas suavidades, valorizar novas derivas e o incidente criativo, jogar o jogo da ecologia do imaginário, reconquistar a autonomia criativa e a ressingularização, com respeito às diferenças e à solidariedade.

Por alguns momentos o texto se assemelha a um manifesto sobre um caminho a ser seguido pelas ciências ao se depararem com a complexidade e a urgência de ação do mundo moderno, portanto a proposta vai além do “campo psi” como afirma o autor. Como pesquisadores interdisciplinares, adotamos esta perspectiva teórico-filosófica nas metodologias da pesquisa.

A proposta ecosófica foi disparadora de oficinas de educação ambiental realizadas por um período de três meses pelo grupo de pesquisa Ecosofias, Paisagens Inventivas (CNPq), atrelado ao Programa de Pós-Graduação Ambiente e Desenvolvimento (PPGAD) da Universidade do Vale do Taquari - Univates. O grupo social escolhido foi crianças de 11 a 12 anos de idade, alunas de uma Escola Municipal de Ensino Fundamental do Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul. Exploravam-se experiências ambientais de cunho sensível, onde os participantes acessavam sensações e sentimentos, muitas vezes adormecidos, em atividades que exploravam os sentidos, o lúdico, a arte, a interação e a contemplação.

As oficinas foram planejadas a partir da proposta do método do Aprendizado Sequencial, desenvolvido por Joseph Cornell (2005, 2008), o qual consiste em 4 fases: Despertar o Entusiasmo, Concentrar a Atenção, Experiência Direta e Compartilhamento. Os investigadores já desenvolviam atividades de sensibilização ambiental com este método, tendo como participantes adultos e crianças. Elas ocorriam sempre em um turno ou dois, do que surgiu o questionamento sobre a necessidade de ampliar temporalmente estas experiências para investigar a potência do método em uma proposta baseada na continuidade. Novas potências seriam desvendadas ou o método havia se esgotado? Como poderíamos problematizar a proposta ecosófica na elaboração de uma educação ambiental que explorasse os recursos que as atividades ao ar livre possibilitam?

A cartografia, método proposto por pesquisadores brasileiros inspirado em escritos conjuntos entre Guattari e Gilles Deleuze (1995), já perpassava os estudos do grupo de pesquisa neste período, mostrando sua proximidade teórica e adequação metodológica. Como propõe-se na cartografia, não tínhamos um objetivo de pesquisa logo de início, tínhamos os questionamentos disparadores.

Para investigar o que problematizávamos, era preciso encontrar um grupo que mantivesse um contato contínuo e que tivesse alguma proximidade física da Universidade, de modo a facilitar a operacionalização da pesquisa. Uma escola nos oferecia o atendimento destas necessidades. Além disso, o grupo de pesquisa demonstrava sentir-se especialmente tocado nas experiências anteriores com crianças. Assim, entramos em contato com a coordenação de uma escola pública próxima para oferecer oficinas para serem realizadas no turno inverso da aula.

A coordenação prontamente aceitou a ideia e identificou uma turma que se adequaria, por apresentarem algumas “dificuldades”. Ela se disponibilizou a enviar bilhetes aos pais das crianças, que tinham de 11 a 12 anos de idade. Seis crianças se inscreveram, 2 meninos e 4 meninas. Emergiu destas escolhas a percepção de que a coordenação da escola viu a proposta como uma forma de auxiliar com os problemas de relacionamento entre os alunos e/ou de aprendizagem.

Entre os ditos “problemas” trazidos pela coordenação se encontravam a formação de uma “panelinha” entre duas participantes, que em algumas aulas mais práticas - como a de educação física - se negavam a participar, ficando sentadas ou em um canto conversando; a falta de interação em sala de aula de um participante, que se mostrava introvertido embora fosse acolhido pelos colegas; e, em especial, outro participante, que segundo relatos de professores se portava de maneira desafiante em sala de aula, falando palavrões, não prestando atenção em sala de aula e sendo excluído pela turma. Este havia entrado na turma neste ano e um dos fatores que mais preocupava a coordenadora era a falta de acolhimento pelo grupo e a sua inabilidade em se socializar com os colegas.

A partir da definição do grupo de participantes das intervenções e da realização das oficinas algumas linhas de força foram emergindo, demonstrando a sua potência para a investigação que propúnhamos e, assim, definiram o que veio a ser o objetivo do estudo: compreender a potência da natureza na mediação da ecologia social.

2 Planejamento das oficinas

O planejamento das intervenções levou em conta que os encontros teriam seis participantes, seriam semanais, durariam em torno de duas horas, para não serem cansativos, e deveriam ter continuidade, o que definiu uma série de 10 oficinas. Elas ocorreriam no bosque localizado ao lado da escola, onde havia uma diversidade ecológica e uma clareira com troncos deitados que formavam um círculo, bastante apropriado para a proposta do Aprendizado Sequencial. O planejamento foi criado com cada encontro tendo um tema central, que seria explorado através das quatro fases do método: Despertar o Entusiasmo, Concentrar a Atenção, Experiência Direta e Compartilhamento.

Na primeira fase, Despertar o Entusiasmo, são explorados o divertimento e a descontração, envolvendo os participantes nas atividades de modo a funcionar como um aquecimento para as vivências. A segunda fase, Concentrar a Atenção, tem como objetivo acalmar a mente, aprofundar a introspecção e focar a atenção dos participantes. A Experiência Direta busca expor os participantes às vivências em si, visto que estes já estão aquecidos e focados para as atividades que serão propostas, por isso, geralmente exploram fortemente a intuição e a percepção. Por último ocorre o Compartilhamento, quando os participantes podem contar o que lhes passou durante as vivências. Em cada fase são realizadas uma ou mais atividades em contato direto com o ambiente, que podem ser reelaboradas a partir do fluxo energético dos participantes e da criatividade dos pesquisadores. A aplicação livre do método é estimulada pelo seu criador.

Os temas ficaram definidos deste modo, do primeiro para o último encontro: aproximar-se para a criação de vínculo inicial, conhecer o ambiente do bosque e descobrir o que é natureza para os participantes, apreciação da natureza em ambientes não naturais (escola e seus corredores), o sagrado na natureza, o nosso papel no cuidado ambiental com a exploração da natureza no bairro, aproximação e empatia com a natureza, atividades voltadas para um recurso natural (água), o eu na natureza: sou um elemento natural, por que tememos e/ou não gostamos de certos animais da natureza e porque nós matamos ou destruímos a natureza, compartilhamento final com celebração.

No planejamento foi definido que uma atividade perpassaria todas as oficinas: a Carteira de Identidade da Árvore. No primeiro encontro todos os participantes escolheriam alguma árvore do bosque para acompanhar suas mudanças, relatando semanalmente em um diário. Esta atividade teve como objetivo gerar um fio condutor explorando a sensação de continuidade entre os encontros.

Além da coordenadora do grupo, quatro bolsistas envolveram-se no projeto. Uma aplicaria as atividades (função que a coordenadora assumiu também em alguns encontros), dois deles fariam os relatos cartográficos e outra bolsista ficou responsável pelos registros fotográficos e audiovisuais das oficinas, documentando as intervenções.

3 A cartografia como método para habitar

Entre os seis princípios rizomáticos propostos por Deleuze e Guattari (1995) encontra-se a cartografia, junto com a conexão, a heterogeneidade, a multiplicidade, a ruptura assignificante e a decalcomania. Esse elemento foi apropriado por pesquisadores brasileiros para proporem a cartografia tanto como um método para registro em diários de campo, quanto uma forma de habitá-lo.

Neste método o observador participante permite-se ser atravessado pelas mesmas forças que os observados, mergulhando na experiência e assumindo uma posição inventiva. Sua perspectiva é de que o mundo não está dado no campo, mas que é construído junto com o pesquisador ao observar e participar do mundo que descreve, compondo uma visão coletiva e acessando um plano comum que se constrói entre pesquisados e pesquisadores (Passos; Kastrup; Tedesco, 2014).

Cartografar é construir mapas com as linhas que atravessam o sujeito em sua experiência: linhas duras ou de segmentos determinados (família, profissão, classes), linhas flexíveis ou moleculares (que traçam desvios e modificações) e linhas de desterritorialização (movimento de fuga ou de fluxo) (Roos, 2014). Os territórios psicossociais são compostos por estas linhas que podem ser observadas e mapeadas. Uma é sempre composta também pelas outras duas, podendo desterritorializarem-se para reterritorializarem-se (Fonseca & Costa, 2013). Estes processos provocam emaranhados de interconexões que compõem os rizomas com suas ramificações múltiplas (Deleuze & Guattari, 1995, 2012; Moraes Júnior, 2011). Munido com sua atenção, o pesquisador busca compor mapas ao invés de decalcar. Diferente do decalque, o mapa é aberto a múltiplas entradas, conectável, suscetível a modificações constantes.

É importante notar que não somente os participantes que relataram os encontros em diários de campo assumiram a posição de cartógrafos, mas também as mediadoras das atividades, que durante todo o processo entendiam suas influências no processo quando planejavam as atividades. Ao conhecermos melhor as crianças que participaram das oficinas também facilitamos um processo de autoconhecimento, de descobertas de facetas de si e dos outros. Ainda, podemos pensar que também as crianças se tornaram cartógrafos de suas vidas, registrando não apenas em seus diários, mas em sua subjetividade e na forma de experienciar a vida.

4 As emergências ecosóficas

Um dos meninos é feito de intensidades, come muito, escreve grande, seus animais e árvores são grandes, é agressivo, visceral, tomado por fortes emoções. Grita, fala alto, fala palavrões. Em um dos encontros quebra uma pequena árvore. O outro escreve grande, não respeita as linhas quando o caderno as tem. Vaza para fora quando escreve. No caderno de desenhos, onde não tem linhas, explora a retidão. Uma das meninas explora detalhes. A outra a delicadeza. A terceira coloca o nome grande no caderno, para identificar que é seu. Logo percebemos que são feitos de diferenças e singularidades, linhas da subjetividade que se encontram no bosque.

Gostam de atividades livres e criativas, algumas geram empolgação e alguma competição. Quando sentam em círculos sobre os troncos, na clareira da mata, agem como conhecidos, têm uma certa intimidade, são colegas. Também se estranham. E juntos demonstram resistência ao menino feito de intensidades. Não são dados a muita paciência com a falta de jeito dele, criticam-no por suas características, sentem-se incomodados. Dizem que ele quer chamar a atenção. Mesmo quando sofre represálias do grupo, ele mantém-se na mesma atitude e fica sentado de frente para os outros. Um dia desses dos encontros, brinca com uma taquara formando um raio de proteção: desse modo ninguém se aproxima dele. Brinca em meio ao grupo, limita a interação. Está só dentro do círculo.

Enquanto os colegas coletam folhas para uma composição, ele as espalha. É o elemento mais disruptivo do grupo. Provoca o caos. Desordena, não se insere, se protege, às vezes se auto exclui para minimizar a exclusão. Na atividade de compor com as folhas diz que não consegue, o colega tenta ajudá-lo, ele não quer, volta-se para a taquara que o deixa só no círculo. Quando o menino das intensidades se sente incomodado por sua atitude ser desaprovada pelo grupo, e quer ir embora, a mediadora não possibilita. Age com firmeza sem agressividade. Ele aceita ficar.

Ele se sustenta socialmente pelo que o exclui: seu modo de ser. Um processo de retroalimentação, por ser assim é excluído e por ser excluído é assim. Quer chamar a atenção e a ganha em forma de xingamentos. Ganha atenção quando “chateia”. Assim, não fica isolado, está em interação, é uma forma de estar integrado em um grupo. Quando são convidados a encenar algo, ele quer ser o personagem principal. É participativo, oferece ajuda aos outros, se envolve no que quer, tem iniciativa, pulsão forte, lidera a seu modo. Gosta de compartilhar: chicletes, galhos, pedras, informações, histórias.

Quando brincam com argila, ele faz um ninho de ovos podres. O passarinho que cuidava dos ovos havia sido caçado. Os ovos, abandonados, apodreceram. Soubemos que fora abandonado pelos pais.

É aventureiro, não tem medo do mato, desbrava-o. O que causa medo nos outros, desperta sua curiosidade. No oitavo encontro são convidados a falarem de suas características. Como plano comum todos identificam-se como chatos e loucos. Esta percepção de proximidade gerou entrosamento. Neste dia são convidados a contar sobre algo de sua vida. Gera-se um sentimento de conexão. O menino cheio de intensidades contou sobre sua família. Sua história gerou curiosidade e perguntas. Quando ele fala que foi abandonado e adotado todos silenciam. Demonstra ter grande afeto pelos pais. O período de convivência em aulas formais não havia, ainda, criado uma situação que gerasse conhecimento sobre aspectos fundamentais sobre suas vidas, talvez porque a adoção fosse vista como um tabu. Para ele não parecia ser, demonstrava sentir-se acolhido.

Após este momento, são convidados a uma brincadeira pela mata, ele vai para o barranco que sempre demonstrou ser seu lugar preferido e diz que vai pular. Isso gera apreensão em todos, parece alto. Ele pula, as meninas o seguem, se divertem ao fazer o que ele faz. Provocam os mediadores a pular, pulamos. Todos riem. As crianças seguem brincando, correm pelo milharal, acham uma tenda, supostamente feita por escoteiros. Uma das meninas quer se aventurar num lugar que considera perigoso, chama o menino das intensidades para ajudá-la a enfrentar seus medos. Depois voltamos em silêncio para o lugar de origem. Eles fazem planos para novas aventuras juntos.

Deste dia em diante observou-se a elevação da empatia e o exercício da alteridade em meio a natureza. A natureza mediadora da aceitação do diferente em si. Neste dia havia duas meninas e ele no encontro, a menina que mais o repelia não estava, o que pode ter facilitado a empatia. Nos encontros seguintes, quando os pesquisadores chegavam, ele estava interagindo com o grupo, diferente do que acontecia antes, quando a interação com ele só começava com a chegada das mediadoras. Num desses encontros ele encontra um inseto e traz para o grupo, diferente de outros momentos, em que os colegas demonstravam nojo, desta vez sua atitude despertou interesse e o inseto gerou fascínio.

Quando os incômodos não eram tão intensos não suprimiam a interação, a natureza parecia naturalizar de algum modo também as relações sociais de pouca empatia. Quando propúnhamos que usassem os massageadores de madeira uns nos outros incluíam o menino das intensidades sem ressalvas. Quando ele estava mais calmo, o grupo demonstrava mais receptividade a ele. Comentaram que, por ser agitado, a professora dava muita atenção a ele, o que diminuía a atenção dispensada aos outros. Num dos encontros, o grupo diz que a mediadora estava agindo muito “de boas” com o menino das intensidades. Ela reflete entre os pesquisadores sobre o seu lugar: ele é adotado, agitado, disperso. Por isso é reprimida pelos outros, ela não quer este papel para si.

A existência do menino intenso agride, mas ele não é agressivo. Busca contato pelo olhar, busca formas de afeto no grupo. Ao longo de todos os encontros ele é a exceção, a curva fora, o desviante, o marginal. Os outros o interessam, mas também o desinteressam de algum modo. Faz constantemente uso de práticas de resistência. Ignorar que é ignorado é uma delas. Em um dos encontros as meninas pedem para ele deixar de ser criança. Todos têm entre 10 e 12 anos.

Noutro dia, uma das meninas ri do que ele faz, a outra diz para parar de chamar atenção. Logo, são elas que estão reprimindo-se da diversão com ele. O excesso de intensidade dele desperta uma linha dura nelas, o que reforça o comportamento intenso dele, criando linhas duras que se cruzam. Se elas se divertem com suas práticas desviantes, linhas flexíveis tomam as linhas duras, gerando-se intensidades lúdicas, todos ganham. Ele ganha atenção, elas ganham diversão, pois o elemento irritante desaparece.

Uma das meninas que nega a criancice do menino intenso quer ser adulta. Sensualiza nas vestes, usa batom. Lidera alguns processos interativos, tem personalidade impositiva. É criança, mas um devir adulto a atravessa. Seres híbridos: desejam o mundo infantil e adulto a um só tempo. Ela e o menino intenso, algumas vezes, se encontram por meio das linhas duras da agressividade, cada um tecendo-a a seu modo. Ambos querem salientar-se de formas diferentes: ela quer ser adulta, sensual. Ele parece querer atenção, talvez para enfrentar sua sensação de abandono. De algum modo, ela está constantemente atenta a ele.

Quando há duplas de amigas elas tendem a se manter assim nas atividades, fechando-se parcialmente para o restante do grupo. Implicam umas com as outras como é característico nas relações sociais nesta idade, apenas com o menino intenso a implicância de duas das meninas do grupo é maior do que em relação aos outros. Em atividades individuais todos se entregam, concentram-se, silenciam, com exceção do menino cheio de intensidades, que tende a relatar o que lhe atravessa.

Quando são convidados a observarem as linhas das mãos, logo comparam-nas entre si. Quando perguntados sobre o que sentiram durante as atividades, têm dificuldade de identificar em palavras. Quando lhes foi dada liberdade para explorarem os espaços, algumas vezes demonstraram insegurança.

Como o uso dos massageados gerava silêncio e relaxava o grupo, um dia, quando o menino cheio de intensidades estava bastante agitado, a mediadora solicitou que todos deitassem no chão da mata para se acalmarem. Ela então faz massagem nele. Os outros também quiseram. Depois ele pediu mais. Ele quer atenção. Como é intenso, quer chamar muito a atenção para ganhar muita atenção. E se esforça muito para isso.

Quer tudo muito, comer muito, enche muito a boca. Se é para ser árvore, ele quer ser duas. Se é para escolher um bicho, quer dois. Um dinossauro e um leão. São animais grandes, ferozes e vivem enjaulados, diz. Uma das meninas quer ser unicórnio, a mediadora não lhe conta que não existe. Não quer decepcioná-la. Outro dia queria ser sereia. O outro menino quer ser o seu próprio cachorro.

Identificamos três atividades estratégicas que foram especialmente geradoras de empatia em relação ao colega excluído: o uso de massageadores, a busca por características comuns e os relatos sobre suas histórias. Uma das meninas que escutou a história do menino das intensidades relatou-a à mãe, coordenadora da escola. A menina concluiu que “Nem todas as mães amam seus filhos”. Solidarizou-se.

Em um dos últimos encontros, uma das meninas disse que sentiria falta da mediadora quando terminassem as oficinas. Estas evidências de afetos emergentes a partir da interação em ambientes naturais apontam que estes processos de educação ambiental vivencial se constituem em espaço de intersubjetividade potente.

5 A natureza mediadora da ecologia social

O que emergiu com os registros cartográficos das intervenções evidenciou a força de algumas linhas, chamando a atenção dos pesquisadores sobre sua potência para a investigação. O objetivo do estudo foi definindo-se, assim, ao longo do processo, quando nos deparamos com os incômodos que permeavam as interações sociais no grupo, do qual como pesquisadores-cartógrafos também fazíamos parte. No transcorrer dos encontros, a ecologia ambiental mostrou sua potência como mediação da ecologia social.

Os pesquisadores-cartógrafos perceberam que as oficinas desencadearam a interação social e a empatia, o que não estava ocorrendo naturalmente durante as aulas do turno normal. O menino feito de intensidades foi gradualmente incluído nas atividades pelos colegas, inicialmente de forma sintética devido à condução dos mediadores e, posteriormente, de forma natural, sendo aceito pelos colegas. Segundo relato da coordenadora pedagógica, ela observava um maior engajamento com as atividades e nas trocas sociais das turmas.

6 A captura da atenção

Durante as oficinas o menino intenso era bem agitado, corria bastante, em alguns momentos não prestava atenção ou até demonstrava uma resistência inicial para realizar as atividades propostas. Fazia piadas e brincadeiras como uma forma de procurar atenção. Os colegas, na maioria das vezes, reagiam isolando-o, criticando-o ou fingindo não prestar atenção no que ele falava. Este aparecia como um aluno isolado, que de alguma maneira tentava se inserir na turma.

As oficinas permitiram a construção de momentos que facilitaram a empatia e a comunicação no grupo, para o que foi necessário um habitar menos neutro no campo pelos pesquisadores, possível por meio do método cartográfico, que permitiu, ainda, aos mediadores, intervirem durante as atividades, a fim de gerar empatia nas relações sociais, o que só exigiu a inserção de atividades no planejamento que o tornassem mais efetivamente parte da turma. Queríamos criar algum disparador de empatia entre as crianças.

Os relatos cartográficos, em sua maioria, falavam sobre o menino das intensidades. A atenção dos pesquisadores-cartógrafos pousou por muito mais tempo nele. Ao tomar nossas atenções, determinou inclusive mudanças no planejado. A subjetividade dos pesquisadores ficou evidente quando buscaram estratégias para gerar uma inserção homogênea no grupo, o que de fato ocorreu, entretanto, disso decorreu uma escassez de relatos sobre os outros participantes, gerando uma análise quase que particular do menino das intensidades.

Em relação a esta captura da atenção dos pesquisadores pelo menino das intensidades, cabe uma reflexão sobre a análise de implicação, desenvolvida por Lourau (1993), quando buscam analisar o próprio interventor, gerando uma autorreflexão sobre a implicação deste com seu objeto de pesquisa, com o local em que se realiza a pesquisa, nas implicações sociais que geraram a encomenda e as demandas da intervenção, das implicações sociais e históricas dos modelos utilizados e das implicações na escrita do trabalho (Paulon, 2005). Este método vai ao encontro dos métodos utilizados, pesquisa intervenção e relatos cartográficos, pois partem de uma não neutralidade do pesquisador, considerando-o um construto sócio histórico, atravessado por inúmeras instituições (Lourau, 1993).

7 Por uma comunicação ambiental mais orgânica

O processo de educação ambiental desencadeado por meio das intervenções evidencia que se trata de uma experiência efetiva do que denominamos comunicação ambiental ecosófica O indivíduo mantém-se em interação dinâmica, em um processo de coprodução com o ambiente, como afirma Bougnoux (1994). O meio age por excitações que fazem sentido ao organismo, que tem certa margem de interpretação, de tempo, de resposta ou liberdade. O sentido é biológico, sensível e reconhecido pelo corpo, segundo Bougnoux (1994). “A necessária tomada de consciência do meio ambiente revela a complexidade de nossas vidas (jamais solitárias, sempre emaranhadas) e complica-nos o pensamento” (Bougnoux, 1994). Nesta perspectiva, coisas fixas são substituídas por fluxos, sistemas e interações, dialéticas e círculos recursivos.

O que evidenciou-se com as intervenções é que a interação dinâmica provocada gerou uma coprodução entre crianças e natureza por meio de excitações orgânicas que explicitaram um emaranhamento de linhas do corpo-natureza com aquelas dos corpos-humanos que habitaram o bosque, formando, com seus círculos recursivos, um ecossistema socioambiental. Um no outro, natureza e humano, tudo uma coisa só, como propõe Ingold (2015).

Tim Ingold (2015, p. 62) reflete sobre o “incessante intercâmbio respiratório e metabólico entre suas substâncias corporais e os fluxos do meio”, considerando os seres humanos como um organismo entre outros tipos. Para ele:

As coisas estão vivas e ativas, não porque estão possuídas de espírito – seja na e da matéria – mas porque as substâncias de que são compostas continuam a ser varridas em circulações dos meios circundantes que alternadamente anunciam a sua dissolução ou – caracteristicamente com seres animados – garantem a sua regeneração. O espírito é o poder de regeneração desses fluxos respiratórios que, em organismos vivos, estão ligados em feixes ou tramas firmemente tecidas de extraordinária complexidade. Todos os organismos são feixes desse tipo. Despojados do verniz de materialidade eles se revelam não como objetos quiescentes, mas como colmeias de atividade, pulsando com os fluxos de materiais que os mantêm vivos. E a este respeito os seres humanos não são exceção. Eles são, em primeiro lugar, organismos, não bolhas de matéria sólida com uma lufada adicional de mentalidade ou agência para animá-los. Como tais, eles nascem e crescem dentro da corrente de materiais, e participam desde dentro na sua posterior transformação (Ingold, 2015, p. 63).

Materiais fluem, misturam-se e modificam-se, para Ingold (2015). Ele cita o caso da “pedregosidade” da pedra, sujeita a variações em sua materialidade conforme a luz, a umidade, a sombra, o movimento, a secura.

A pedregosidade emerge através do envolvimento da pedra com todo o seu ambiente – incluindo você, o observador – e da multiplicidade de maneiras pelas quais está envolvida nas correntes do mundo da vida. As propriedades dos materiais, em suma, não são atributos, mas histórias (Ingold, 2015, p. 69).

Os intercâmbios subjetivos, sociais e orgânicos provocados com as intervenções dinamizou as trocas entre o que Guattari (1990) denomina como os três vasos comunicantes da ecosofia. A exploração da sensibilidade e do desejo em espaços naturais por meio de estratégias lúdicas possibilitou novas configurações existenciais para os participantes. Criamos outras possibilidades de educação ambiental e percebemos evidências de uma outra comunicação ambiental, orgânica, sem a centralidade midiática. O que esteve no centro foram os intercâmbios de fluxos energéticos. Como pesquisadores, desserializamo-nos um pouco, nos repetimos um pouco menos, reinventamos maneiras de ser sujeitos e de fazer pesquisa. Explorando suavidades, valorizando criativamente os desvios, todos conquistamos um pouco mais de autonomia em nossas vidas.

8 Uma proposta metodológica para a comunicação orgânica

A experiência relatada, neste artigo junto com outras do grupo de pesquisa Ecosofias, Paisagens Inventivas, leva a propor uma metodologia de pesquisa-intervenção denominada Ecosofia NAT, que articula o contato com a natureza, a arte e as tecnologias sociais e de mídia (Mazzarino, 2021). O contato direto com a natureza inspira-se no método do Aprendizado Sequencial proposto por Joseph Cornell, o qual articulamos com a exploração das tecnologias de mídia, inspirada nas práticas educomunicativas com recursos de informação e das artes. Para a dinamização dos encontros contribuem as tecnologias sociais, entre elas a Investigação Apreciativa, a Pedagogia do Círculo, o Dragon Dreaming, o Trabalho Que Reconecta (TQR), as Conversas Significativas e a Comunicação Não Violenta (CNV).

A arte tem se mostrado uma forma de integrar as experiências, de modo a compartilhar em grupo o que emerge individualmente. Diversas sensibilizações dos aspectos sensório, motor, perceptivo, afetivo, cognitivo, simbólico, criativo e intuitivo são realizadas como exercícios de imaginação e expressão (colagens, fotografias, escrita e desenhos e outras formas são usadas para este momento dos registros, que se contituem também espaço para produção de dados para a pesquisa, assim como ocorre durante a observação das atividades com a natureza e do que surge com as tecnologias sociais).

Nosso desejo é acolher as derivas investigativas baseadas em experiências sensoriais e imagéticas, cartografar movimentos que constituem a experiência estética de habitar o território socioambiental enquanto uma interação comunicacional permeada por disparadores da sensibilidade, criadores de acontecimentos que vêm a compor a narrativa da experiência enquanto uma autobiografia socioambiental (Mazzarino, 2021, p. 49)

A Ecosofia NAT é um “parangolé metodológico” que tem se revelado provocador de experiências estéticas geradoras de um plano comum, um campo de ressonâncias entre os participantes, relativas às três dimensões da ecosofia (subjetiva/social/ambiental). Assim, a Ecosofia NAT oferece-se como uma proposta de design para uma comunicação orgânica bastante atualizada em relação aos grandes desafios contemporâneos.

Considerações finais

Guattari compõem, com Arne Naess e Michel Maffesoli, as bases teóricas mais trabalhadas da ecosofia. Neste artigo optamos por aprofundar a proposta de Guattari, mas consideramos relevante deixar alguns fios para futuros estudos sobre outras vertentes, complementares a este autor, que ajudam a pensar em uma comunicação orgânica..

Maffesoli (2010, 2021) escreve que a negação da sensibilidade trouxe como consequências este conhecido  desencanto, a desconexão do sensível e da potência do fogo sagrado e dinonisíaco. Recuperar essa dimensão pouco ou cada vez menos vivida é uma forma de habitar a vida ecosoficamente, retomando a magia, a poesia e o encantamento, a conexão humana com sua dimensão natural, animal.

Para Naess (2010), o contato com a natureza possibilita observar e sentir a unidade. “A vida urbana não matou a fascinação humana frente à natureza livre [...] o modo de vida na natureza livre é sumariamente eficiente para estimular os sentidos de unidade, totalidade e identificação profunda” (Naess, 2018, p. 261). Para o autor, 

Não podemos compreender o desenvolvimento de uma pessoa a não ser tendo em conta muitas partes do corpo e muitas partes da mente, e apenas quando consideramos a pessoa como uma parte ou fragmento da natureza (NAESS, 2010, p. 267).

A ecosofia de Naess é uma proposta  filosófica pessoal: uma filosofia de vida conectada com todas formas de vida, como caminho para a autorrealização por meio da ecologia profunda singular de cada um. 

Esta experiência de unidade orgânica, como Naess denomina, ou sensível e selvagem como prefere Maffesoli, encontra-se com a perspectiva de Guattari (1990, 2015), quando propõe uma resposta à crise ecológica, que para ele envolve sensibilidade, inteligência e o desejo, para a criação de novos territórios existenciais por meio de uma articulação ético-política do que ele denomina os três registros ecológicos: mental ou subjetivo, social ou comunitário e ambiental. Desses ecossistemas em interação depende a recomposição das práxis humanas e a ressingularização de indivíduos e coletivos, diz.

Propomos avançar a reflexão epistemológica sobre a comunicação aprofundando os referenciais teóricos da ecosofia, ampliando-os, analisando-os e  criando outras relações conceituais que aportem para a comunicação ecosófica e, consequentemente, para a Ecosofia NAT, como uma proposta orgânica para a Área da Comunicação.

Referências

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